“– Parece uma caixa. E há coisas a abanar lá dentro!”
“– Vamos abrir” – e abriram.
Dentro do embrulho, um tabuleiro de xadrez. Diogo, com uma mão a segurar o inseparável smartphone e a outra a agarrar o novo brinquedo, deixou escapar um breve suspiro de desalento. Nesse momento, o pai decidiu voltar à carga:
“– Sabes, quando eu tinha mais ou menos a tua idade, descobri que nesta casa havia uma passagem secreta. Uma porta escondida…” – e Diogo nem o deixou concluir a frase. Agarrou-se-lhe à perna e reclamou:
“– Onde é? Para onde vai? Leve-me lá!” – sorrindo, António segurou-o pela mão e fez-lhe sinal para se sentar. A “lição de Sissa” iria começar...
“– Olha, isso vais ter de ser tu a descobrir. E a resposta encontra-se dentro deste tabuleiro de xadrez”.
Depois, enquanto retiravam os últimos papéis que escondiam a caixa, o pai foi explicando:
“– Hoje, vamos fazer um duelo. Peças brancas contra as peças negras. Como se fosse uma guerra…”
“– Mas, pai… os homens brancos e os homens negros são inimigos?”
“– Não, meu filho! Hoje, já não são. A cor da nossa pele não interessa para nada. Todavia, há alguns séculos atrás, os homens brancos fizeram escravos muitos homens negros”.
“– Olhe, pai, se eu pudesse mandava pintar as peças. Seriam azuis contra vermelhos!”
“– E deixa-me adivinhar… tu ficavas sempre com os vermelhos, certo?” – riram em uníssono.
Na verdade, António ficou com as peças negras e Diogo com as brancas (depois de saber quem começava a jogar, o menino nem hesitou na escolha!). Entrementes, o pai disse:
“– De todas as tuas peças, existe uma que tem de ser sempre muito bem protegida: é o rei”. Ao ouvir isto, o menino sentenciou:
“– Então, eu sou o rei! Sou o mais importante”.
Nessa altura, o pai desabafou:
“– Sabes, quando tu nasceste passaste a ser o rei desta casa. Eu e a tua mãe começámos a viver em função de ti” – e Diogo ria-se de orelha a orelha.
Logo a seguir, António esclareceu o valor de cada peça e o modo como se movimentavam:
“– A rainha vale 9 peões. Pode avançar em todas as direcções. A torre vale 5, anda sempre a direito – na horizontal e na vertical. O cavalo vale 3 peões, movimenta-se em “L”. O bispo também vale 3 peões, mas anda e captura na diagonal…” – e por aí fora, sempre com as peças a saltarem no tabuleiro de um lado para o outro, sob o olhar atónito do menino.
Às duas por três, quando já estavam no meio da primeira partida, muito lentamente, o pai foi capturando uma a uma todas as peças do menino. Quando apenas lhe restava em cima da mesa o amedrontado rei, o pai desafiou-o:
“– Vá! Podes jogar”. Diogo, quase a soluçar, atirou:
“– Mas… assim não é justo! Estou sozinho e ninguém me pode defender”.
Sorrindo, o pai devolveu-lhe os peões, perguntando:
“– Estás mais satisfeito?”
“– Sim, mas ainda não tenho as minhas torres, os bispos, os cavalos…”
“– Então, meu filho, qual é a tua peça mais importante?”
“– Todas são importantes, pai!”
“ Olha, há quem diga que foi esta a lição que um indiano chamado Sissa quis ensinar a um rei muito mau. Não sei se é verdade ou mentira, mas há até quem acredite que foi ele que inventou o xadrez. Certo, certo é que esta é uma lição valiosa para todos nós…”
Nessa altura, a mãe chegou à sala. Vinha chamá-los para o jantar. Ao olhá-la, o pai não resistiu e exclamou:
“– Olha, filho, e ainda te faltava a rainha!” – Dona Maria não compreendeu, mas sorriu delicadamente, ao perceber que falavam dela.
Logo depois, já à mesa, o menino voltou à carga. Queria mesmo saber onde se encontrava a tal porta misteriosa. Como se já não bastasse a ansiedade do miúdo, a mãe ainda ajudou à festa:
“– António! Lá andas tu a ensinar coisas perigosas ao nosso filho! Eu já te disse que essa porta é só para os adultos”. Os olhos de Diogo pareciam prontos a saltar para fora das órbitas.
Quando se levantaram os últimos pratos da mesa, foram todos até ao presépio. Debruçados sobre o berço, António perguntou:
“– Diogo, quem é a personagem mais importante do nosso presépio?”
O menino ainda hesitou, mas lembrou-se da lição do xadrez e respondeu:
“– O menino é o nosso rei. Mas sem os pais, os animais, as estrelas, os reis magos… o que seria dele?” – os pais entreolharam-se. A noite de Natal estava quase a findar, mas o mais importante ainda vinha a caminho...
Então, o pai ajoelhou-se junto à manjedoura do Menino e começou a contar-lhe o segredo da porta desconhecida.
“– A tua bisavó Maria era, como sabes, a minha avó. Um dia, quando eu tinha mais ou menos a tua idade, ela disse-me que nesta casa havia uma porta secreta que dava acesso a um mundo maravilhoso. Ora, quando eu ouvi essa história, fiquei de tal modo curioso que passei a noite em claro, sem dormir. Vasculhei cada recanto desta casa, examinei com todo o cuidado todos os lugares, mas a verdade é que não consegui encontrar o mais pequeno sinal da tal porta mágica. Desanimado, deitei-me em cima da cama e chorei como nunca tinha chorado.
Logo pela manhã, a tua bisavó, uma das pessoas mais inteligentes que conheci em toda a vida, reparou nas minhas olheiras, serviu-me o pequeno-almoço e abraçou-me (nunca esquecerei aqueles abraços). Deitado no seu regaço pude então ouvir esta maravilhosa história:
“– Seu tontinho… a porta sobre a qual te falei é a porta da sensibilidade. É uma espécie de ferida aberta que apenas algumas pessoas se podem orgulhar de possuir. É um dom”.
“– E para que serve essa ferida, avó?”
“– Essa ferida boa ajuda-te a ver melhor o mundo: a chorar com aqueles que choram, a sofrer com aqueles que sofrem; a ver o que os outros tantas vezes não vêem. Sim, faz doer, mas apenas para te ajudar a compreender…”
Intrigado, voltei à carga:
“– E isso é importante, avó?”
“– Muito, meu netinho! Ajuda-nos a criar um mundo melhor!”
Ao proferir aquelas derradeiras palavras, o pai voltou-se novamente para o filho, fixando-o ternamente, olhos nos olhos:
“– Sabes, meu rei, quando tu nasceste, essa porta de que falava a tua bisavó voltou a abrir-se dentro desta casa. E foi a primeira vez, desde que a tua bisavó morreu – já lá vão mais de 20 anos –, que voltámos a fazer o presépio. Que voltámos a sentir o Natal” – e as lágrimas iluminavam-lhe a face.
Quanto ao menino, bem pequenino como todos os meninos, olhava ternamente os pais, talvez sem compreender muito bem o sentido exacto de todas aquelas palavras – os poemas que, ao longo da vida, nos escapam pelas mãos!
Talvez um dia, bem lá no futuro, aquele menino recordasse aquelas palavras e decidisse até recontá-las ao seu próprio filho. E talvez dissesse que foi naquela longínqua noite que a porta secreta se abriu, pela primeira vez, mesmo à sua frente. A tal porta secreta que o Natal nos ajuda a recordar e a nunca deixar fechar. Por muito que as pedras afiadas inundem as calçadas por onde vagueamos.
Afinal, apesar de todas as cinzas que acumulamos nas mãos, quando Dezembro ecoa nas ruas e as luzes cintilam dentro de nós, tudo volta a ser possível. É através dessa ferida aberta, da qual brotam as lágrimas que nos lavam por dentro, que chega até nós o sentido do Natal...
Renato Nunes
(renato80rd8918@gmail.com)