sábado, 16 de dezembro de 2017

O ódio à escola

7h00. O despertador toca e Mauro enrola-se nos cobertores, assim que consegue silenciar o maldito aparelho. A situação acaba por repetir-se mais quatro vezes, até que a mãe irrompe pelo quarto, ameaçando-o de dedo em riste. O menino decide então arrastar-se até à casa de banho, enquanto amaldiçoa a sorte que lhe calhou na rifa da vida.
 7h30. Daqui a uma hora, o Mauro estará dentro do carro do pai a caminho da escola. Até lá, apenas corridas entre a casa de banho, o quarto, a cozinha… corridas vertiginosas entremeadas por gritos de urgência, interrompidos pelo veloz beijo de despedida da mãe, invariavelmente atrasada.
8h40. Dez minutos de atraso e o pai atira a mochila de Mauro para o banco de trás do carro. Alguns instantes depois, seguem os dois a toda a velocidade pela estrada fora, enquanto na rádio se fala do trânsito infernal na capital e da chuva que tarda em chegar. Lei de Murphy: raio dos semáforos escolhem sempre o dia errado para ficarem vermelhos!
9h00. Mauro está à porta da escola, o pai toca-o docemente na testa e permanece parado alguns instantes a vê-lo desaparecer para além do portão. Arranca depois a toda a velocidade rumo ao escritório. É forçoso recuperar os 5 minutos que leva de atraso.
9h05. Mauro irrompe pela sala de aula. O professor exige a sua saída imediata e pede-lhe para bater à porta antes de voltar a entrar. Ainda estremunhado, lá obedece. Senta-se, começa a retirar os livros da mochila: Inglês, Português, Matemática, Expressões e Estudo do Meio. Depois, perfilam-se os cadernos das Fichas de Actividades e o volumoso dossier do caderno diário, acompanhado do estojo. A mesa é pequena e o colega do lado faz-lhe sentir o descontentamento com um subtil pontapé na tíbia. Mauro sabe que não convém tugir nem mugir, pois o intervalo chega depressa e as mãos do colega são conhecidas pelos pares de galhetas que vão, benevolentemente, distribuindo.
 9h15. A sala do 3.º ano pode enfim começar a produzir. Hoje, o dia amanhece com a disciplina de Inglês, o esperanto dos tempos modernos, que abre a porta do paraíso para todos os pecadores:
Let’s study the family! Open your books on page eleven – e os meninos aprumam-se perante uma língua ainda tão estranha e distante.
Cerca de meia hora depois chega a vez da Matemática. A entrada do professor titular torna o ambiente mais rigoroso:
– Abram os livros na página 31. Vamos ler, interpretar e explorar gráficos de barras e tabelas. Moda, diagrama-de-caule e folhas, amplitude, dados quantitativos e qualitativos. O silêncio petrificava a sala.
Faltava cerca de um mês para o fim das aulas e o derradeiro teste escrito anunciava-se. Todos suavam e os cadernos inundavam-se de nervosismo. Mauro tentava concentrar-se em tudo, mas o perfeccionismo traía-o, não o deixando fazer quase nada:
– Onde está o teu diagrama-de-caule e folhas? – o grito lancinante do professor arrancou-o da indecisão. Alguns instantes depois, quando o intervalo chegou, mal conseguia sentir os dedos.
11h00. Após 30 minutos de vadiagem pelo recreio, recomeçavam os trabalhos, agora com o Português socrático trazido pelo desacordo ortográfico:
– Gramática. Vamos aprender a escrever. Como sabem, no ano anterior, a Prova de Aferição foi um desastre completo. Copiem para o caderno…
            Lição número 1 – Determinante artigo;
            Lição número 2 – Determinante possessivo;
            Lição número 3 – Determinante demonstrativo;
            Lição número 4 – Paráfrases…
            Os exercícios iam e vinham, interminavelmente. O quadro enchia-se e apagava-
-se a uma velocidade estonteante. Os cadernos dos meninos também, que mais não fosse de rabiscos e gatafunhos. Muito frequentemente, lá vinha um grito do Mestre e a cópia correcta reiniciava-se. Não havia tempo a perder, que a gramática era uma deusa perante a qual todos tinham de inclinar-se: ALELUIA! Começava, então, o maestro:
– O que é “o”?
– Determinante artigo definido – respondia o Mauro.
– O que é “um”?
– Determinante artigo indefinido – acertava a Matilde.
– O que é “do”?
– Contracção da preposição “de” mais o determinante artigo definido “o” – e o professor respirava finalmente, quando o Mauro e a Matilde acertavam em uníssono a última pergunta da Bíblia linguística. Os outros meninos podiam enfim respirar, quando o sucesso de alguns camuflava o insucesso de quase todos.
Logo a seguir, era a vez da poesia. Cecília Meireles chegava do outro lado do Atlântico, trazendo consigo “A pescaria”:
“Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.

Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.

As mãos do mar vêm e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.

As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.

Por isso chora, na areia,
a espuma da maré cheia”.
Após uma vertiginosa leitura, chegava a vez de esquartejar as estrofes, os versos, identificar as rimas, explorar figuras de estilo e sonoridades. No meio disto tudo, bem lá do fundo da sala, o Pedro, que ainda mal conseguia identificar metade das letras do alfabeto, lembrou-se de levantar a mão e interromper:
– Professor! Posso fazer uma pergunta?
– Fala, fala para aí… mas rápido, que é preciso avançar!
– A poesia é um cesto de peixes?
– Valia mais estares calado! – e todos se riram em uníssono. A contagem tinha, contudo, de ser rapidamente retomada. Os números eram depois confirmados um a um pelo Mestre, que, de resto, já limpava o suor da testa com tanto somatório. A poesia, aqui para nós, também nunca fora o seu forte, neste país em que quase todos são poetas, mas quase ninguém lê poesia. Isto para já não falar da História, da Literatura e outras quejandas artes dos pré-históricos capazes de viver um dia afastados dos smartphones.
Quando o toque que anunciava o recreio chegou, a imagem do cesto de peixes, que ilustrava o poema esquartejado, permanecia projectada no quadro. E Pedro saiu para o intervalo a pensar que a poesia devia estar relacionada com as tarefas piscícolas… Quanto ao professor, com mais de 30 anos de serviço, sentia-se extenuado. Pensava em tudo o que ainda tinha de leccionar até ao final do ano e sentia-se a tremer. Os programas eram a Bíblia e tudo tinha de ser sumariado, custasse o que custasse, doesse a quem doesse. Como se isso já não bastasse, depois das aulas, aguardavam-no ainda os relatórios para preencher, as fichas para corrigir, as aulas para preparar, os pais para atender, as faltas e os sumários para registar. Havia ainda a acção de formação do Reiki que nunca mais acabava. E as metas do sucesso para alcançar mandavam às urtigas todas as energias positivas que bem tentava atrair... Burocracias e mais burocracias, problemas e mais problemas para solucionar que o levavam a desejar estar longe de tudo e de todos (síndrome de burnout, dirão alguns) . Certo é que quando finalmente se sentava no carro para regressar a casa dava sempre por si a pensar há quanto tempo não conseguia ler um livro ou simplesmente sorrir com um sorriso dos seus meninos.
No período da tarde, chegava Estudo do Meio. E a corrida era retomada, hoje em torno da função excretora… Logo a seguir, que o tempo era escasso, chegavam as Expressões, com mais conceitos e conceitos que deveriam ser sumariados. Teorias que o pobre do professor, confinado às paredes daquela escola dos primeiros anos, mal poderia imaginar que voltariam depois, ano após ano, ciclo após ciclo, a ser novamente repetidas. No fim do dia, iludia-se em surdina: talvez houvesse ainda oportunidade para fazer um desenho e deixar os meninos sonhar. Mas a verdade é que raramente o tempo permitia outros voos e os sorrisos continuavam sempre a ser adiados.
17h30. Fim das aulas e o Mestre regressa a casa. De seguida, há um intervalo e as actividades extra-curriculares podem enfim começar. O professor das AEC’s (Actividades Extra-Curriculares, para os mais distraídos) vem de outra escola e quase sempre chega atrasado, mas os alunos esperam-no sentados no recreio, já cansados. Depois da Educação Física, começa o hip-hop e o yoga. Por volta das 18h00, o pai do Mauro há-de vir buscá-lo, pois a maratona do Ironman ainda vai no adro.
Às 18h30 iniciam-se as explicações. Três vezes por semana, a carrinha vem buscar quase todos os meninos à escola, logo a partir do 1.º ano, que é de pequenino que se torce o pepino... Lá no centro, a cerca de 15 minutos de viagem, fazem os trabalhos, organizam os cadernos, dissipam dúvidas, treinam mais exercícios, ensaiam novos exames, enquanto o Mauro estuda desalmadamente Inglês. Nos restantes dois dias da semana, o adulto em miniatura vai para o Taekwondo, a natação e a dança. Tudo para descomprimir e relaxar, que ao sábado de manhã há Inglês naquela escola conceituada onde também estudou o irmão, agora no internato em Medicina, enquanto o domingo é deixado para estudar e fazer os trabalhos em família, depois de ir à missa. E, claro, para o Mauro poder jogar no computador durante toda a tarde. Sim, que também é fundamental relaxar os sentidos e desfrutar das excelentes classificações arrancadas a ferro e fogo das mãos dos mestres…
Às últimas horas do domingo, como quem cumpre uma rotina, o pai abeira-se do Mauro e, invariavelmente, pergunta-lhe:
– Amanhã começa a escola! Estás feliz?
– Não! – e o menino olha sofregamente para o ecrã da playstation, a sua mais recente prenda por ter conseguido ser o melhor da turma no teste de Português.
O pai ainda exclama, profundamente desalentado:
– Não entendo… no meu tempo eu gostava de ir à Escola. Hoje, não querem saber de nada. Que geração! Põe, pelo menos, os olhos no teu irmão…
Mas Mauro já não ouve nada. Quando, finalmente, se levanta, arrasta-se penosamente até à cama e recorda-se da sexta-feira passada. Faz um esforço para recapitular o que aprendeu nas aulas, mas não lhe vem nada à cabeça. Apenas consegue lembrar-se do seu amigo Pedro, que não tem dinheiro para comprar o equipamento para jogar futebol e menos ainda para andar no Centro de Explicações. E enquanto tenta adormecer, Mauro, um menino de 9 anos, que as pautas ratificam como um excelente aluno, pensa no ódio que sente sempre que imagina a escola, e não compreende. Simplesmente não compreende. Adormece.
No dia seguinte, a pista de fórmula 1 estará novamente à sua espera…
 Aprender exige tempo para amadurecer e pensar. Quando nos lembraremos disso?
O actual sistema educativo continua agarrado ao velho adágio: “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. Por isso, numa espécie de tentativa de acelerar o tempo, transformou-se o primeiro ciclo (a antiga Escola Primária) na antecâmara da universidade e passa-se o resto dos anos a repetir em dó maior o que já se tentou leccionar em dó menor. E os exames repetem-se uns atrás dos outros, com relatórios e mais relatórios, como se deles resultasse o milagroso remédio para todas as doenças.
É altura de transformar o sistema numa escadaria, com patamares ajustados e interligados. Rever os programas, garantir que os directores sejam eleitos pelos seus pares e reduzir, de modo realmente significativo, o número de alunos por turma seria o início de uma revolução, pelo sucesso de todos os alunos e pela saúde mental de todos os professores. O problema, perdoem-me a ousadia, é que as grandes causas continuam a não mover moinhos…

Renato Nunes 
(renato80rd8918@gmail.com)

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