domingo, 8 de outubro de 2017

Pode um autista ser médico? Talvez um em milhões

Shaun Murphy é um jovem cirurgião que sofre de autismo e da chamada síndrome de Savant, também conhecida como a síndrome do sábio. Tem habilidades mentais extraordinárias, como a memória, mas revela grandes dificuldades em relacionar-se com os outros. Contratado para trabalhar na cirurgia pediátrica do Hospital San José St. Bonaventure, Shaun luta diariamente contra o preconceito e a desconfiança.

Esta é a história da série The Good Doctor, da ABC, que estreia em Portugal no dia 25 de outubro, trazendo para a ribalta as perturbações do espectro do autismo (PEA). Contactados (...), os especialistas nestas perturbações dizem que não são conhecidos casos semelhantes na vida real, pelo que a série pode dar uma imagem "poética" das PEA. No entanto, destacam a importância de se falar sobre o tema e dizem que existem casos, embora pouco frequentes, de autistas com capacidades intelectuais muito acima da média.

"São casos extremamente raros, raríssimos. Situações extraordinárias, uma em milhões", diz Carlos Nunes Filipe, psiquiatra e diretor clínico da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo-Lisboa. Não conhece nenhum caso na medicina, mas destaca, por exemplo, o pianista Glenn Gould. "É bom falar sobre o autismo, chamar a atenção que há capacidades, competências nessas pessoas que podem e devem ser potenciadas." No entanto, frisa, é importante lembrar que "há um espectro, desde casos com boa funcionalidade até à dependência total". Aquilo que a pessoa será capaz de fazer "varia imenso com as suas competências e as incapacidades", já que, em muitos casos, estas não permitem que se adapte às exigências do mundo profissional.

Ressalvando que não conhece a série, Guiomar Oliveira, pediatra do neurodesenvolvimento e coordenadora da Unidade de Autismo do Centro de Desenvolvimento da Criança do Hospital Pediátrico de Coimbra, teme que possa "dar uma perspetiva poética" de uma doença "grave, crónica e sem inclusão social", que, segundo os últimos dados disponíveis, afeta uma em cada mil pessoas em idade escolar em Portugal.

"A maioria tem défice cognitivo associado. Há uma percentagem muito reduzida que pode ter um nível intelectual muito acima da média ou uma capacidade especial para decorar, saber datas e outras coisas, mas geralmente isso tem pouca aplicação em termos funcionais. É mais um conhecimento retórico", explica a pediatra. Por outro lado, destaca, "a integração social completa é muito difícil". Integrada no espectro do autismo está a síndrome de Asperger, cuja designação desapareceu da classificação internacional, mas que diz respeito aos "indivíduos com autismo, com elevado nível intelectual e verbal e que, teoricamente, não teriam tido atraso de linguagem".

Depois de ouvir um breve resumo da história, a presidente da Federação Portuguesa de Autismo, Isabel Cottinelli, refere que "um cirurgião tem de ter uma flexibilidade de pensamento que as pessoas com autismo, mesmo aquelas que têm mais capacidades, à partida não têm". Mas "há pessoas muito boas em muitas coisas". "Sou amiga de um autista que é professor universitário de estatística em Londres. Além de ser barra em estatística, ensina muito bem."

Ana Guimarães Martins, psicóloga clínica especializada em autismo, sublinha que "dentro do espectro, há crianças que não adquirem linguagem, mas temos outras com síndrome de Asperger que podem ser o que quiserem".

Poucos vão para a universidade

Segundo o psiquiatra Carlos Filipe, as incapacidades mais comuns dos autistas passam pelas dificuldades na interação social, rigidez no comportamento, incapacidade de se adaptarem a novas situações, alterações na comunicação (quer na produção quer no entendimento), bem como dificuldades motoras e sensoriais. Mas, se por um lado têm dificuldades em ter uma visão global, têm uma melhor visão de pormenor, razão pela qual se destacam pela memória fotográfica ou enciclopédica ou pelo ouvido absoluto. "São mais habilidades do que competências, mas, em casos raros, podem tornar-se competências."

Em consultório, o psiquiatra já acompanhou casos de autistas que entraram na universidade, "mas a maior parte não concluiu". Aí, refere, colocam-se problemas em relação a determinadas matérias, aos métodos de ensino, à necessidade de procurar informação. "E depois outro problema: O que fazer com o curso? A integração no mercado de trabalho é complicada", lamenta.

Nas escolas, diz Guiomar Oliveira, "as coisas estão mais ou menos programadas" para a integração das crianças e jovens com PEA. "Onde estamos mais carentes é na transição para a vida adulta", pois "as nossas escolas não têm ligação com o mercado de trabalho, para ensinar os jovens a executarem uma tarefa fora da escola". Segundo a pediatra, apenas uma pequena percentagem dos autistas consegue ter emprego, já que "a maioria não é autónomo".

Carlos Nunes Filipe diz que "há casos de pessoas com PEA no mercado de trabalho que são excelentes profissionais e que desempenham funções como outros", regra geral em postos de trabalho com diferenciação muito específica.

Falar sobre autismo

Para Rita Nolasco, de 42 anos, que descobriu há dois que tem síndrome de Asperger, "é fantástico que as pessoas percebam que os Asperger ou autistas têm capacidades muito para lá do que imaginam". Editora de imagem, Rita revela que tem conhecido "advogados, psicólogos, professores, psicoterapeutas que têm perturbações do espectro do autismo, mas não assumem porque têm medo do julgamento". Do lado oposto, "há muitas pessoas que se perdem", porque a sociedade "não vai ao encontro das suas capacidades".

Ana Guimarães Martins realça que séries como The Good Doctor "são importantes para que as pessoas com autismo se identifiquem e para dar a conhecer as perturbações, que muitas vezes não são percebidas pela sociedade".

Fonte: DN por indicação de Livresco

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