quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O meu filho é sobredotado: vantagem ou problema?

Em Portugal, estima-se que existam entre 3 e 5% de crianças e jovens com características de sobredotação nas escolas. Às aptidões excecionais de aprendizagem, os sobredotados somam muitas vezes dificuldades de integração. Mas há associações atentas, a orientar alunos, pais e professores

A energia é palpável pelas salas e corredores do Colégio Paulo VI, em Gondomar, onde está sedeada uma das delegações da Associação Nacional para o Estudo e a Intervenção na Sobredotação (ANEIS) espalhadas pelo País. Todos os sábados de manhã são ali conduzidas atividades de enriquecimento curricular, para ampliar e diversificar as aprendizagens dos alunos sobredotados em função dos seus interesses, aptidões e necessidades. Na sala dos intermédios e avançados, grupos de adolescentes dedicam-se a sofisticados jogos de estratégia. “São importantes para trabalharem cooperativamente, percebem que se não tiverem orientação no mesmo sentido, não conseguem resolver o problema”, explica Alberto Rocha, um dos coordenadores. Entre os participantes está Diana, de 14 anos, recém-chegada à ANEIS. “Tem sido muito bom descobrir pessoas com interesses em comum. Fico ansiosa pelos sábados, aí carrego as energias para a semana”, conta.

Diana sempre foi uma criança com altas capacidades de aprendizagem – aos 18 meses fazia puzzles com 250 peças e chegou ao primeiro ciclo já a saber escrever – muito perfeccionista e extremamente exigente consigo própria. Mas tinha dificuldades de integração na escola e isolava-se dos outros meninos. Em casa, com os pais, descarregava a frustração. “Foi muito difícil, mas agora está mais calma, ganhou outra paz”, assegura a mãe. O acompanhamento pela ANÉIS permitiu-lhe alargar horizontes e, sobretudo, sentir-se incluída e reconhecida pelos seus pares.

É esse, igualmente, o caso de Guilherme Soares, 10 anos, que também participa nas atividades de enriquecimento curricular. “É com muita alegria que venho para aqui”, confessa. Até ser avaliado como sobredotado, penou com a incompreensão de professores, queixosos quanto ao seu desassossego nas aulas. Entretanto, ter encontrado escapes para a sua curiosidade e sede de saber – as aulas de piano foram decisivas –, permitiu que os problemas de adaptação na escola se atenuassem. “O comportamento melhorou e sinto o meu filho muito mais feliz e descontraído”, conta a mãe, Cátia Rodrigues. Enfermeira, não aceitou a subscrição de Ritalina feita a Guilherme por uma pedopsiquiatra, convencida de estar perante um caso de hiperatividade e défice de atenção. Um erro de diagnóstico, infelizmente, bastante comum entre as crianças sobredotadas.

Em Portugal, estima-se que existam entre 3 e 5% de crianças e jovens com características de sobredotação nas escolas. Tradicionalmente definida pelo elevado quociente de inteligência (QI), hoje reconhece-se que o conceito não se circunscreve à inteligência, incluindo aspetos como a capacidade de liderança, as competências sociais, a persistência, a criatividade, a originalidade ou o sentido crítico.

O certo é que poucos sobredotados estão sinalizados e muitas vezes chegam à idade adulta sem desenvolver essas aptidões excecionais. Quem melhor pode identificar estes miúdos são os professores. Contudo, reina o desconhecimento sobre o tema dentro da classe. “Recebemos pouquíssimos pedidos de formação em escolas e a maior parte são de escolas privadas”, diz o coordenador da ANEIS. Curiosamente, é nas ilhas, onde a ANEIS tem protocolos com a secretaria regional de Educação da Madeira e dos Açores, que a diferenciação, flexibilização e enriquecimento curricular já está a funcionar no terreno. “Na Madeira está mais avançado, fazemos ações de identificação, acompanhamento às equipas multidisciplinares de apoio à educação inclusiva e a legislação já fala destes alunos, com as respostas que devem ser desenvolvidas nas escolas”, aponta Alberto Rocha.

Ao contrário do que muitos pensam, os alunos com altas capacidades podem não se destacar em todas as áreas do currículo escolar e, em algumas, até podem estar abaixo do padrão. Daí a necessidade de adequar os métodos e as estratégias de aprendizagem às suas necessidades. Algo que, no continente, é permitido no decreto-lei sobre a educação inclusiva, mas que “tem dado para muito pouco, porque continuamos a não ter respostas das escolas, estamos sempre dependentes da boa vontade e sensibilidade dos diretores e dos professores”, sublinha Alberto Rocha.

Trabalhar em equipa

É fácil ficar fascinado com estes pequenos génios, mas associadas às capacidades intelectuais, estão muitas dificuldades de integração social e de desenvolvimento emocional. “Nas escolas são muitas vezes entendidos como alunos em conflito com o sistema educativo, porque questionam as práticas, muitos deles são considerados hiperativos, outros mal-educados”, aponta Alberto Rocha. A desadaptação ao contexto escolar pode ser dramática. “Já tivemos casos graves, em que esteve em causa a saúde mental destas crianças”, acrescenta o coordenador da ANEIS.

No Colégio de Gondomar, na sala dos iniciados, entre os quatro e os nove anos, um grupo entusiástico dedica-se à construção de uma maqueta do sistema de sete planetas rochosos, semelhantes à Terra, que circulam na órbita da TRAPPIST-1, uma estrela anã vermelha. A professora Ana Almeida distribui pequenas bolas de esferovite e argila colorida entre os alunos, para reconstituírem os exoplanetas. “Fizemos projeção de slides sobre o sistema e, numa das sessões, até acabamos por falar sobre a exploração do espaço durante a Guerra Fria, por sugestão de um deles… muitas vezes, levam-nos por outros caminhos”, conta. Com a ajuda de uma ficha de orientação da pesquisa, reuniram toda a informação, explanada num cartaz. “Procuramos que sejam organizados na pesquisa, que tenham metodologia de trabalho e o saibam fazer em equipa, porque estão muito habituados a trabalhar sozinhos”, acrescenta.

Não é fácil dar resposta à diversidade dos interesses dos alunos. “Temos um aluno apaixonado pela História da Rússia, outro que quer estudar Mecânica Quântica, outros que gostam de Engenharia Aeronáutica… Procuramos profissionais especializados nas áreas, para responder a estas necessidades e interesses profundos”, conta Alberto Rocha.

Aceleração académica: a melhor solução?

A área que mais atrairá Carlota Costa, de quatro anos, ainda é uma incógnita. É a mais nova do grupo dos iniciados – nesta idade, fala-se em precocidade e não em sobredotação –, mas já chegou a casa a falar de pulmões, aranhas e vulcões. “Vamos sair daqui e temos marcadas outras atividades, porque é uma criança extremamente enérgica, não para todo o dia”, conta a mãe, Mafalda Martins. O primeiro sinal de precocidade ocorreu antes dos dois anos, quando a família passava uns dias num hotel, e Carlota, de fralda e chucha na mão, começou a ler os números dos quartos em inglês. Os pais trabalham com empresas que lidam com o mercado internacional e, em casa, ia apanhando as conversas em inglês ao telefone. “Não valorizamos muito, não tínhamos casais amigos com filhos desta idade, por isso não havia termo de comparação”, aponta o pai, Vasco Costa.

Na creche, aos dois anos, uma educadora levantou a hipótese de Carlota ter a síndrome de Asperger, por isolar-se das outras crianças e não participar nas atividades. “Nessa noite não dormimos, lemos tudo o que havia sobre as perturbações do espetro do autismo e as características não encaixavam”, relata a mãe. Na consulta com uma pedopsiquiatra, o comportamento tornou-se claro: sempre que na sala de aula entravam em competências que dominava, Carlota desligava. A solução aconselhada foi retirar de casa todo o tipo de estímulos, para perceber se as capacidades cognitivas eram inatas ou baseadas numa mera repetição. Poucos meses depois, a menina começou a juntar as letras e, enquanto viajavam de carro, entretinha-se a ler os placards de publicidade.

Carlota saltou da sala dos três para os quatro anos, mas continuava a isolar-se. Os pais falaram com outro colégio, onde estava inscrita para começar o primeiro ciclo, para perceberem se podiam antecipar a sua entrada, mas não aceitaram, “por ser uma criança que daria muito trabalho”. Não foi fácil encontrar uma escola inclusiva, mesmo no privado. O Colégio das Escravas, no Porto, foi o único capaz de apresentar um programa paralelo, capaz de a estimular e assegurar a integração na turma. “Lá existe uma preocupação com o bem-estar das crianças, foi um alívio vê-la finalmente a brincar no recreio”, asseguram os pais. O contacto com a ANEIS permitiu à família ter outro acompanhamento. Desde logo, a avaliação da precocidade, que permitiu a aceleração académica. Ao mesmo tempo, preparam a Carlota para as frustrações que irá encontrar no futuro, quando estiver numa sala com meninos a aprender o AEIOU. “Não aconselharam a entrada no primeiro ciclo com quatro anos, por falta de maturidade emocional”, contam.

Esta é sempre a maior preocupação quando se fala na aceleração académica, assegurar que a componente social e emocional acompanhe o desenvolvimento cognitivo. O neuropsicólogo Paulo Dias alerta para os perigos de uma transição mal feita: “Se não há um acompanhamento emocional para ajudar essas crianças a integrarem-se de uma forma diferente, parece que são forçadas a ser ‘adultos’ antes do tempo. E isto só pode criar bloqueios na criança, que até podem não ser muito visíveis na infância, mas depois revelam-se na idade adulta. A depressão, de mãos dadas com a ansiedade, ainda é um dos fatores desenvolvimentais no adulto que podem estar muito correlacionados com esta dificuldade de adaptação”. Quanto a Alberto Rocha, não tem dúvidas em defender a aceleração. “Não tomamos medidas repentinas, são estudadas e testadas na ANEIS, falamos com a escola, trabalhamos alguns pormenores e, depois de a medida avançar, continuamos com o acompanhamento, para que a transição ocorra com a maior normalidade possível. Todas as medidas de aceleração que tivemos aqui tiveram sucesso e motivaram os alunos”, sustenta.

Se muitos destes meninos conseguem desabrochar, cumprir o seu potencial e ser felizes, devem-no maioritariamente aos pais. Ministérios, escolas e professores continuam a ignorar o problema. E mais pobres são as sociedades que não estimulam e desenvolvem os seus talentos.

Fonte: Visão, sem imagens

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