Na Mata do Choupal, o rumor da cidade ouve-se de forma ténue. A ferrovia passa sobre o Mondego ali ao lado, de resto pouco se faz notar a proximidade ao centro de Coimbra. É ali, nas imediações de uma antiga casa florestal, que um grupo de crianças entre os 3 e os 4 anos passa os dias a brincar e a aprender.
A indumentária não é a mais usual no dia-a-dia de um jardim de infância comum. As crianças têm como material obrigatório galochas e impermeáveis e a descrição das atividades pode ajudar a explicar a sua necessidade: “É fundamental que as crianças estejam confortáveis para que possam usufruir do programa. Os fatos permitem esse bem-estar, para que possam saltar nas poças de lama, correr à chuva, apanhar chuva com a língua e desenvolver a sua atividade”. As palavras são de Isabel Duque, uma das educadoras de infância do programa Limites Invisíveis.
O programa resulta de um consórcio entre a Escola Superior de Educação de Coimbra (ESEC), o CASPAE e a Universidade de Aveiro e leva atualmente 18 crianças do jardim de infância dos Serviços de Ação Social da Universidade de Coimbra (SASUC) a passar 8 semanas na Mata Nacional do Choupal, de segunda a quinta-feira.
No Choupal, são os miúdos que decidem que caminhos trilhar, que atividades a desenvolver e por onde andar. Isabel Duque, tal como a colega Luana Pinho, passou um período na Dinamarca, onde esta prática é mais comum, a especializar-se em educação outdoor e explica que da entrada da mata até ao espaço onde passam parte do dia o trajecto é opcional.
Há o “caminho das poças”, “o caminho dos escorregas”, o caminho direto para a casa e outras opções. As possibilidades multiplicam-se. O rácio de crianças por adulto permite essa flexibilidade, diz a educadora.
Um restaurante é um castelo
Chegando à casa, já bem dentro da mata, encontram-se várias pequenas estruturas constituídas por canas e fios. O significado pode não ser imediato aos olhos de quem por ali passa, até porque são as crianças a atribuí-lo. “As construções que aqui se vê foram feitas com as crianças”, explica Isabel. Começou com duas canas espetadas no chão. Uma porta, portanto. Depois de várias etapas passou a ser um restaurante. “O grupo seguinte transformou aquilo num castelo e o seguinte transformou noutra coisa. São as crianças que vão atribuindo significado às coisas que vão construindo e encontrando”, diz a narra a educadora.
Não há um guião fixo e tudo pode ser alterado, oscilando ao ritmo da curiosidade dos mais pequenos. Todos os dias há uma planificação por parte das educadoras, com base no que se passou no dia anterior. Todos os dias essa planificação é ajustada ou complemente eliminada.
“O pilar básico das práticas que aqui se desenvolvem é a livre exploração, o brincar livre. O tempo que damos às crianças para brincar é indispensável todos os dias”. Para isso, não há barreiras físicas.
Na área onde decorre o Limites Invisíveis não se observam cercas nem muros, o que sugere uma explicação para o nome do projeto. Há apenas alguns arbustos a rodear uma zona onde estão as construções. “Durante os percursos de exploração os limites são o meu campo de visão e o campo de visão das crianças” diz Isabel, “e até onde alcança a voz”, completa o responsável dos SASUC.
A docente da Escola Superior de Educação de Coimbra especializada em educação pré-escolar, Ana Coelho, diz que objetivo era “desafiar algumas ideias feitas”, como a de que as crianças adoecem mais quando estão na rua ou que não se organizam por elas próprias. “isto não está vedado e nenhuma delas fugiu até hoje”, aponta.
O programa é sinónimo de uma autorregulação das crianças, seja em termos de espaço ou de tempo. “As crianças em geral hoje têm muito pouca qualidade de vida, uma estrutura muito rígida e muito dirigida pelo adulto” lamenta a docente, e o tempo passado na natureza ajuda contornar essas limitações. “O tempo é um fator essencial nesta abordagem” descreve Isabel Duque, que fala na natureza como sendo igualmente um “cenário ativo” que participa com as crianças.
É a partir da natureza que os grupos assimilam as informações e têm possibilidade de desenvolver os temas que vão explorando. Este grupo, descreve a educadora, já se interessou muito por buracos. “No primeiro dia encontraram logo tuneis de toupeiras. E por isso é que este se chama o «grupo das toupeiras»”. Foram as crianças que identificaram a espécie e “tomaram o seu nome para si”. É a partir destas descobertas que vão aprendendo.
Início do projeto
Emília Bigotte, presidente do CASPAE, uma IPSS que trata da logística do Limites Invisíveis, assegura que o objetivo é que o programa seja “tendencialmente gratuito” para as crianças e que ninguém fique de fora por incapacidade financeira. Para já, o único encargo que os pais têm é com o transporte
Este não é o primeiro grupo a explorar a mata. O primeiro grupo, que arrancou com a fase piloto em março de 2016, tinha 8 crianças. Depois foi crescendo até ficar com os atuais 18. Depois deste grupo outro o renderá, sendo que a capacidade máxima, diz a responsável, é de 24.
A apoiar a atividade do programa está uma antiga casa florestal, entretanto desativada e cedida ao Linhas Invisíveis pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). Uma forma de ajudar dinamizar aquela parte do Choupal, entende António Borges, do ICNF.
Em 2015 e 2016 o espaço sofreu intervenções de estudantes do programa Erasmus, que ajudaram a melhorar o edifício. Agora as paredes gastas no exterior escondem a recuperação que já foi feita nas divisões do interior.
Apesar das obras, a casa é utilizada apenas “pontualmente” e serve mais como “apoio”, explica a educadora Luana Pinho. “Raras foram as crianças que preferiram ficar dentro” da casa”. A educadora conta que uma criança já lhe descreveu o tempo passado no programa dizendo que “todos os dias é um piquenique”.
Ana Coelho diz que, à chegada à entrada da casa uma criança lhe agarrou pela mão e perguntou “onde é que tu vais? As coisas estão cá fora”. “Portanto eles não têm o menor interesse” em ir para dentro da casa, conclui.
Ainda não há resultados científicos, mas os pais estão satisfeitos
Não são só as crianças que aprendem com o Limites Invisíveis. O programa também tem uma componente científica que é acompanhado pelo Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro (UA), com enfoque nas áreas da educação, saúde e psicologia.
As investigadoras do Centro de Investigação em Didática e Tecnologia na Formação de Formadores, Aida Figueiredo e Marlene Migueis pretendem perceber os efeitos da estadia no Choupal. Para isso a metodologia passa por recolher dados, fazer gravações, analisar a intensidade do movimento das crianças antes, durante e depois do programa na mata e fazer entrevistas aos pais e às crianças.
A recolha de dados terminou em janeiro deste ano, pelo que ainda não há resultados científicos da monitorização – devem começar a estar disponíveis no último trimestres do ano, estimam – mas Marlene Migueis conta que uma análise preliminar às entrevistas aos encarregados de educação mostra que “100% consideram esta experiência como positiva para as crianças”. Os pais dizem mesmo que sentem que as suas crianças “mais observadoras, mais atentas às questões da natureza e mais dinâmicas em termos de movimento”.
Também as próprias crianças gostam da iniciativa, menciona Aida Figueiredo, que diz que a maioria “refere a experiência como positiva”. A investigadora nota também uma apreensão de vocabulário por parte das crianças ao longo do processo.
Nuno Freitas é o coordenador pedagógico do jardim de infância dos SASUC e ele próprio tem uma criança a frequentar o programa. Diz que é uma oportunidade que seria impossível “dentro de quatro paredes”. Ao início pode ter havido “alguma resistência” de alguns pais. “Se estiver a chover não vão, pois não?”, perguntavam-lhe. “Vão”, respondia.
Menos doenças e mais máquinas de roupa
Paula Cravino diz não ter tido dúvidas nem grandes receios ao inscrever os seus filhos e fala de uma “oportunidade única”, uma vez que as crianças passam hoje “muito tempo fechadas”. Algo que, entende, acontece por algum proteccionismo por parte dos pais, mas também devido aos horários de trabalho.
Com uma filha no infantário dos SASUC que já participou no programa e um filho no primeiro ciclo que também vai poder passar pela Casa da Mata, esta mãe já tinha alguns conhecimentos sobre o que significava educação outdoor, pelo que não teve receio, conta.
O caso da segunda das filhas de Inês Prazeres a frequentar o Limites Invisíveis é singular. A criança tem uma condição médica que inspira cuidados especiais e o facto de passar quatro dias por semana a brincar ao ar livre está, segundo a mãe, a ter “efeitos muito positivos”. “Muitas vezes os pais pensam que vão ficar com gripe e ficar doentes”, diz. Mas antes pelo contrário.
Ana Coelho, da ESEC, confirma essa ideia. “As crianças que tendem a adoecer menos, a usar menos as bombas nos casos das doenças respiratórias”, afirma. Os acidentes constituíram outra das questões levantadas quando o projeto foi lançado. O terreno acidentado da mata podia ser a causa, bem como os materiais disponíveis na natureza. Mas acabou por não se verificar, conta Ana Coelho que explica que o único incidente até agora “foi com uma criança a tentar descascar uma maçã”.
Tanto Paula como Inês moram em zonas urbanas de Coimbra, pelo que os seus filhos não teriam hipótese de ter um contacto tão prolongado com a natureza, admitem. No meio dos pontos positivos encontram alguns negativos, como a quantidade extra de roupa com a lama e pó, mas acaba por compensar. “Alguns pais podem não estar muito felizes com isso, mas as crianças estão”, atira Paula Cravino.
Fonte: Público
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