terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A culpa é dos pais?

1.
Ao longo dos tempos, foram sendo escritos inúmeros artigos sobre a responsabilidade que as mães teriam no comportamento dos seus filhos. Quer quando eles tinham dificuldade em comer, dificuldades em adormecer ou em dormir, como quando tinham crises asmáticas ou problemas do comportamento. Porque as mães pareciam ser responsabilizadas por tudo aquilo que parecia não estar bem com os seus filhos, passei a ironizar com esse jeito de "culpar as mães" (quase por tudo e por nada) dizendo que isso só seria possível porque, no entretanto, os pais (que as responsabilizavam), em vez de se implicarem na educação dos filhos iam escrevendo artigos sobre a importância delas nas dificuldades dos filhos. Ao mesmo tempo que fui tentando relativizar este lado de "a espada era a Lei", de muitos textos sobre as doenças psicológicas das crianças (fossem elas semelhantes a meras "constipações" como associadas a quadros muito, muito graves), não deixei de escutar, sempre que chamo a atenção para a forma como as crianças muito difíceis têm, quase sempre, a ver com pais em grandes dificuldades (dando a entender que as famílias estragam - involuntariamente mas, todavia, muitas vezes - as qualidades que criam nas crianças), como se fosse um slogan fácil e utilitário, que isso de "culpar os pais" não está certo.

Porque é que eu acho que muitos pais têm dificuldade de se pôr em causa? Porque apesar de reconhecerem os pequenos erros que vão "costurando" e que, depois de acumulados, criam as grandes dificuldades das crianças, lhes falta humildade. E, já agora, falta também um bocadinho de culpabilidade: aquela qualidade que, por vezes com exagero, nos leva a perguntar, sempre que somos "premiados" com algum acontecimento que nos magoa: "em que aspetos é que eu me sinto responsável nisto tudo?". São, justamente, estes pais que, sempre que alguém lhes fala de um presumível "defeito de fabrico" dos seus filhos se agarram a ele com as duas mãos, como se nessa conjetura encontrassem um álibi mais que perfeito para a imensa dificuldade de aceitarem que só quem erra é que aprende e que fugindo dos erros nunca se cresce.

2.
Entretanto, as tendências explicativas (que funcionam como modas, infelizmente) têm mudado. E em vez de falarmos da importância das mães nas dificuldades dos filhos (com tudo o que isso tinha de injusto e de precipitado), entrou-se numa deriva (um bocadinho pateta) em que os genes passaram a "pagar a fatura" de problemas de comportamento, de dificuldades diante da organização da autoridade ou perante perturbações dos ritmos das crianças, fazendo dos pais muito mais vítimas do que eles são. Repito que alguns pais agradeceram esta "tendência" que começa a morrer aos bocadinhos. Mas, seja como for, talvez seja importante falarmos da culpa dos pais. Assim:

a) Tirando raríssimas exceções, os pais não são nem calculistas, nem premeditam as perturbações que os seus filhos vêm a desenvolver. Não têm, portanto, "a culpa" do que se passa com eles. Ou, se preferirem, não pende sobre eles a intenção de promover o seu sofrimento, ou de lhes causar dolo ou danos.
b) Os pais são responsáveis por (quase) tudo aquilo que os filhos conquistam. São responsáveis pela forma como as suas qualidades se expandem e se refinam e são responsáveis pelas dificuldades que eles vão desenvolvendo.
c) Serem responsáveis e serem culpados não significa a mesma coisa. Até porque a responsabilidade dos pais se dá, seguramente, movida por intenções de bondade, de proteção e de amor. E a presunção da culpa nos levaria a supor que, fosse o que fosse que eles seriam capazes de promover, se faria com indiferença diante do sofrimento cumulativo que iriam suscitando nos seus filhos.
d) A responsabilidade dos pais nos erros das crianças faz com que eles não deixem de ser boas pessoas. A sua culpa torna-os maus pais e más pessoas.

Mas vejamos, agora, onde entram os pais nalgumas dificuldades escolares dos seus filhos?
a) Será que a vontade dos pais diante dos bons resultados escolares é responsável por muitas más notas? É! Basta que queiram os filhos a aprender mais depressa, com menos erros e sem oscilação de resultados às mais diversas disciplinas e tudo isso é bom amigo das más notas.
b) Será que a intenção de os ajudarem muito - estudando com eles, estudando por eles ou exagerando nos tempos escolares, nas explicações ou nos centros de estudos - pode interferir na forma como os prejudica na relação com a escola? Pode! Basta que as crianças não aprendam a aprender, não aprendam a discorrer (em tempo real) diante da resolução de problemas de complexidade sempre crescente ou que não aprendam a errar, e os pais (movidos por alguma vaidade, que "equipa" todos os bons pais) têm a responsabilidade de dar à escola mais importância do que ela tem e de disfarçar as dificuldades das crianças imaginando-as com competências escolares com "cotação" muito acima do que elas valem.
c) Será que o desejo de lhes dar uma formação ampla e plural faz com que os pais exagerem nos tempos letivos, roubando tempo para os recreios, e tempo para as relações, para as experiências de vida, para as experiências de jogo e para as experiências de brincar e tudo isso torna os pais responsáveis pela delapidação de muitas competências indispensáveis para o crescimento saudável dos seus filhos? Sim! Por mais que estes "objetivos de curto prazo" comprometam o "longo prazo" e o "futuro"? Sim.
d) Será que, ao não lhes darem tempo para brincarem todos os dias (duas horas, pelo menos...), os pais contribuem para que os filhos se tornem mais "certinhos" e menos afoitos? Sim. E prejudica-os na escola? Claro!
e) Será que, ao resolverem demasiadas vezes problemas às crianças, os pais as ajudam a ser menos autónomas e menos expeditas, levando-as a exigir que o mundo lhes dê provas muito antes de elas conquistarem o seu respeito? Sim. E isso "engasga" os seus desempenhos escolares? Claro!
f) Será que ao pactuarem com trabalhos de casa absurdos, sobretudo se se considerar o tempo de trabalho diário das crianças, os pais são responsáveis pela forma como com eles se vai estragando o seu amor pelo conhecimento? Sim! E isso "conserta-se"? Com muitas dificuldades...
g) Será que tanta responsabilidade junta faz dos pais os verdadeiros culpados de tudo o que corre mal na vida das crianças, nomeadamente, daquilo que vai correndo mal nas escola? Não!
h) É claro que se os pais não são responsáveis por tudo aquilo que acontece aos seus filhos, têm sobre si a responsabilidade de "ler" o comportamento dos seus filhos e, de uma forma nem demasiado impulsiva nem "medricas" para além do razoável, os resgatarem das situações que os estão a magoar, para que um sofrimento episódico não se transforme numa dor "um bocadinho crónica". Sofrimentos episódicos não estragam as crianças. Mas as "dores crónicas" podem comprometer o seu desenvolvimento, se não forem revertidas e "costuradas" como deve ser.
i) E se os pais são responsáveis por muito daquilo que vai acontecendo aos seus filhos - porque não estão em todos os lados ao mesmo tempo, porque nem sempre são tão competentes (como eles desejariam) para interpretarem e contribuírem para resolver o que vai estando "desarrumado" com eles, e nem sempre conseguem solucionar (de forma discreta, rápida e eficaz) aquilo que os preocupa - eles são, também, os maiores responsáveis pelas qualidades dos filhos: pela sua sensibilidade educada, pela sua acutilância, pela garra e pela genica, e pelo caráter e pela beleza que eles não deixam de ter. Os pais só são responsáveis porque são pais!
j) Os pais saudáveis erram muitas vezes. E erram mais - é verdade - quanto mais erros tentam evitar. E erram mais, à medida que têm menos experiência como pais. E erram mais, quanto mais amam e menos ousam repreender. Os erros dos pais são quem melhor os educa. Pais que não erram nunca aprendem. Quanto mais erram mais os pais criam as oportunidades de se tornarem melhores pais!

3.
Se os pais são tão indispensáveis e preciosos para o crescimento das crianças, quanto mais os ajudarmos a ser melhores pais, e mais comparticipamos nas suas responsabilidades, mais eles serão melhores pais. Estarmos atentos às responsabilidades dos pais não significa esticarmos o dedo em direção a eles como se nenhum de nós fosse capaz de se colocar no seu lugar e nos limitássemos a eleger a sua culpa, como se os seus erros fossem movidos pela premeditação.

Tudo isto ignora os pequenos "defeitos de fabrico" das crianças? Não! Mas recordo que as crianças têm uma plasticidade fantástica que compensa as dificuldades que eles poderiam suscitar. Sobretudo porque os pais, ao serem coerentes e constantes, e aos darem-lhes ritmos, rotinas e regras criam uma espécie de software cerebral que corrige essas presumíveis dificuldades. O que não é legítimo é que (como quando, dantes, se falava de "lesões cerebrais mínimas", que ninguém identificava, ou de "epidemias atípicas de dislexia", que levava muitíssimos professores a remeterem para elas as dificuldades escolares das crianças) hoje, todas as dificuldades das crianças sejam da responsabilidade dos genes. Como se a biologia, que ninguém explica, explicasse tudo. E se ilibasse, com isso, os pais e os professores da responsabilidade que têm nas dificuldades das crianças.

Ora, sempre que uma criança tem dificuldades escolares, a responsabilidade divide-se entre os pais, os professores e a escola. Sempre! E se tivermos a humildade de perceber onde cada um destes agentes comparticipa em cada dificuldade escolar de uma criança, mais nos poderemos ajudar uns aos outros. Já quando as crianças têm dificuldades ou insucesso escolar, ou quando constipam o português, a matemática ou a físico-química, ou quando estão (aparentemente) desatentas, não é legítimo que a responsabilidade pareça não ser nunca dos pais, dos professores ou da escola. Mas seja, unicamente, culpa delas! Ou, na melhor das hipóteses, dos presumíveis "defeitos de fabrico" que as "equipam". E aí, enquanto elas têm negativas, os pais, os professores e as escolas parecem ter classificações muito próximas daquelas que alguns profissionais conquistam quando são, corporativamente, avaliados pelos seus iguais. 

4.
Sejamos, pois, claros: é feio fugir às responsabilidades. E, em função delas, aos erros. Sendo certo que sem erros as crianças não teriam oportunidades-extra (e, até, atípicas) que lhes dão problemas mais refinados para aprender melhor. Sendo assim, é mau que os pais se sintam responsáveis pelas dificuldades das crianças? Não! É lisonjeador. Porque nos diz o quanto sem os pais e sem os seus erros não há crescimento! Já baralhar responsabilidade e culpa é batotice. E só favorece os pais que, reconhecendo as suas responsabilidades em muitos aspetos menos adequados dos seus filhos, usam e abusam da noção de culpa (que eles, mais do que ninguém, atribuem a si próprios) como forma de se tornarem vítimas. Mas, muito poucas vezes, responsáveis. E, menos ainda, pais.

Por Eduardo Sá

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