quarta-feira, 29 de abril de 2020

Língua Gestual Portuguesa: Uma língua "como qualquer outra" que ainda não é vista como tal

A Língua Gestual Portuguesa (LGP) é uma das três línguas oficiais de Portugal. Este reconhecimento do Estado, em 1997, foi um passo importante na divulgação e apoio à língua. No entanto, ainda há muitos preconceitos a desmistificar e desigualdades a corrigir. Barreiras que Sofia Figueiredo e Luís Oriola, dois intérpretes de LGP que por estes dias vemos com frequência nos ecrãs nacionais, nos ajudam a perceber.

Um dos preconceitos mais recorrentes é assumir que o “L” da sigla LGP se refere a “linguagem” e não a “língua”. Linguagem é o termo que se refere a um qualquer meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais, entre outros. Por outro lado, a língua abrange o sistema de representação constituído por palavras e por regras que as combinam em frases que os indivíduos de uma comunidade linguística usam como principal meio de comunicação e de expressão. É na última definição que a LGP se enquadra.

Sofia Figueiredo, intérprete de LGP há cerca de uma década, desmistifica igualmente o erro de acreditar que só existe uma língua gestual global. Não é verdade, “há tantas línguas gestuais quanto línguas orais“. A língua tem a ver com “a cultura própria de cada comunidade, de cada país, de cada região”. A LGP tem características específicas e palavras próprias devido a ser uma língua de Portugal.

E, se em todos os países lusófonos a língua de expressão oral é equivalente, “as línguas gestuais não o são”. Quem o refere é Luís Oriola. O intérprete desde 2009 usa o exemplo do Brasil, que também tem uma língua gestual específica – a LIBRAS.

Como a língua oral, a Língua Gestual Portuguesa também tem “sotaques ou regionalismos”, como explica Luís. “Encontramos de norte a sul do país expressões próprias de determinadas regiões e na língua gestual acaba por funcionar da mesma forma”, diz. Todos os falantes conseguem entender-se, mas há “gestos que são mais habituais numa determinada região”.

À semelhança do que tem acontecido com a língua oral, Sofia Figueiredo refere que os regionalismos da LGP “acabam por se diluir” com o maior contacto entre pessoas e a maior difusão de gestos. Um fenómeno “tanto positivo como negativo”, pois apesar de estabilizar os gestos da língua, tem o custo de perder a riqueza linguística.

A Língua Gestual Portuguesa é uma língua “tal como qualquer outra”, mas ainda não é vista dessa forma. Há um ” tratamento desigual da LGP na sociedade portuguesa”. Parte do problema surge de preconceitos que começam na educação das crianças, ou até antes.

O condicionamento da educação

Ao contrário do que se possa imaginar, “existem ainda pessoas surdas que não falam Língua Gestual Portuguesa“, conta Sofia Figueiredo. Uma das explicações é a tendência de “achar que devemos ser todos iguais”. Quando uma criança surda nasce numa família ouvinte, os pais costumam tentar que a criança “seja o mais parecida com eles”.

A LGP não deve ser vista como uma desvantagem da criança surda face às outras. “É uma ideia errada. O bilinguismo é uma coisa positiva”, reforça Sofia. A intérprete realça que não se põe em causa o bilinguismo entre duas línguas orais, como por exemplo português e francês, e também “não se devia por em causa o bilinguismo de crianças surdas“.

Luís Oriola lamenta que a área da saúde costume indicar que a criança surda não deve fazer uma aproximação à Lingua Gestual Portuguesa, por poder prejudicar o desenvolvimento da fala. O intérprete defende ser uma ideia errada, porque “felizmente temos inúmeros casos de crianças surdas em que a LGP ajudou ao seu desenvolvimento”. A pessoa surda que domine as duas línguas tem uma vantagem comunicacional. E as crianças que não aprendem língua gestual procuram a aprendizagem “numa fase muito mais tardia”.

A restrição da aprendizagem de LGP para promover a oralidade e a terapia da fala são um “esforço demasiado exigente”. Mesmo que crianças surdas consigam pronunciar certas palavras ou formar determinadas frases, há uma falha “na compreensão e perceção de conceitos e significados”.

“A telescola é uma oportunidade de ouro desperdiçada”

Existem, atualmente, 17 escolas de referência para a educação bilingue, quatro delas no Norte – três no Porto e uma em Braga. Com a pandemia da COVID-19 e o Estado de Emergência, também as crianças surdas são obrigadas a recorrer ao ensino à distância. Os conteúdos televisivos educacionais do #EstudoemCasa, a nova telescola, ficam aquém das necessidades destes alunos.

Sofia Figueiredo destaca que o “ensino pré-escolar, na RTP2, não tem qualquer tipo de Língua Gestual Portuguesa”. As crianças surdas dessa fase escolar estão “isoladas duplamente: não só fisicamente, mas também linguisticamente“.

O quadrado do intérprete de LGP nos restantes conteúdos do #EstudoemCasa “chega a ser menor que o maior quadrado que a RTP utiliza – para o Telejornal”, refere a intérprete. Além da qualidade nem sempre ser boa, o quadrado é “às vezes colocado em locais que nem sequer fazem sentido”. Aliás, nenhuma televisão portuguesa cumpre a deliberação de 2016 da Entidade Reguladora para a Comunicação (ERC) de exibir o quadrado do intérprete num sexto da imagem transmitida. Para uma criança a tentar adquirir conteúdos escolares, não é suficiente.

As crianças surdas que não têm conhecimentos de Língua Gestual Portuguesa estão ainda mais condicionadas. Não há atualmente uma opção de legendagem dos conteúdos emitidos, quer na RTP Memória, quer na RTP Play, o que impede certas crianças de conseguir captar o que os professores estão a dizer.

Luís Oriola não tem dúvidas: “A telescola é uma oportunidade de ouro desperdiçada“. A preocupação do Governo em arranjar uma alternativa à educação “deve-se felicitar”, mas não cumpriu o propósito de “chegar a toda a gente”. A ausência da Língua Gestual Portuguesa como conteúdo lecionado no #EstudoemCasa não só pode prejudicar alunos surdos que estavam a aprender, como impede que muitas crianças tenham contacto com a língua pela primeira vez.

A COVID-19 “veio amplificar dificuldades”

Não é só em criança que as pessoas surdas enfrentam obstáculos. Esta comunidade portuguesa tem de lidar com desafios e barreiras um pouco pela vida toda. Luís Oriola afirma que “são poucas as pessoas, os serviços, as instituições” que estão preparados e adaptados para encarar as pessoas surdas com naturalidade. “Faz com que não só as crianças, mas também os adultos questionem o que podem fazer no futuro”, explica.

“É um problema de maiorias em relação a minorias”, considera Sofia Figueiredo. Problemas que ganharam maior dimensão com a pandemia atual. Para Luís Oriola, a COVID-19 “veio amplificar as dificuldades”, mas também precipitar progresso.

Esta semana foi anunciado que o Serviço Nacional de Saúde vai ter uma plataforma para atender diretamente pessoas surdas – algo inédito em Portugal. É aconselhado evitar-se dirigir a centros de saúde ou hospitais em caso de sintomas, mas Sofia Figueiredo refere que as pessoas surdas “estavam limitadas”. Era necessário dirigirem-se em pessoa para poderem comunicar qualquer tipo de mal-estar. Com o novo serviço do SNS, passa a haver videochamadas em Língua Gestual Portugesa e chats para surdos que não consigam falar a língua.

Outra evolução na área da Saúde aconteceu apenas no ano passado. O serviço MAI112 finalmente permitiu a pessoas surdas contactar diretamente com a rede 112. Um “passo urgente” semelhante ao que foi agora dado no SNS.

Perdidos na tradução

A fraca disseminação da Língua Gestual Portuguesa implica que, muitas vezes, as pessoas surdas têm de recorrer aos intérpretes, mas nem sempre é possível. Luís refere a proteção de dados que em muitas ocasiões implica o problema de “não estar a falar diretamente com a pessoa”. Falta a sensibilização de que o intérprete é “meramente o mediador da comunicação”, sem assumir outro papel.

“As pessoas, às vezes, dirigem-se ao intérprete e não à pessoa surda – que é a entidade responsável – só porque é outro a dar-lhe voz”, revela Luís. “Um completo disparate” que se verifica constantemente.

Sofia Figueiredo levanta igualmente o problema de ser “mais fácil aceitar a presença de um tradutor de uma língua oral do que um tradutor de língua gestual”. No caso do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) existe uma linha de tradutores a contactar sempre que é necessária uma interpretação. No caso de uma pessoa surda, tem de ser a própria a levar um intérprete. “Há determinados serviços em que é mais fácil recorrer a um tradutor de uma língua estrangeira que a uma língua deste país“, realça.

Problemas que surgem da diferença de estatuto entre línguas orais e línguas gestuais. “A LGP é essencial, sem ela a maior parte das pessoas surdas não consegue perceber o que está em causa”, explica Sofia. É a “tal questão das maiorias” que coloca a língua gestual num patamar abaixo das línguas orais.

Formação insuficiente para intérpretes

Todos os anos, vários intérpretes de Língua Gestual Portuguesa são lançados para o mercado de trabalho, a partir das três Escolas Superiores de Educação com esta licenciatura – em Setúbal, Coimbra e Porto. Luís Oriola dá conta que “durante muitos anos verificavam-se poucas oportunidades de trabalho”, mas agora tem havido um aumento progressivo.

O serviço de interpretação de LGP não era visto como uma prioridade, o que levou “muitos a terminarem os cursos com baixas expectativas de trabalho e a encontrarem carreiras alternativas“. A área da administração pública tem contrariado essa realidade nos últimos anos e conseguiu converter muitos intérpretes em regime precário para efetivos da função pública. As empresas também “começam a ter mais consciencialização das necessidades” de pessoas surdas.

As próprias licenciaturas são insuficientes no seu formato corrente. “Tem de haver uma formação continuada”, pede Sofia Figueiredo. Há também a necessidade de criar opções de especialização em áreas “como a saúde e a educação”, onde é preciso conhecimentos mais técnicos.

Luís Oriola complementa com a sugestão de um estágio curricular que podia servir de elo de ligação entre “o fosso do fim da formação e do início do emprego”. Desta forma, estabelecia-se uma ponte com as empresas, enquanto se “estendia o processo de aprendizagem”.

Fonte: JPN por indicação de Livresco

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