segunda-feira, 1 de julho de 2019

João Costa. “O secundário está completamente refém do acesso ao ensino superior”

Em termos gerais, como descreveria o panorama educacional português? 

Portugal tem uma evolução, na educação, admirável. Temos 45 anos de escola democrática e o que foi conseguido é muito, embora por vezes não tenhamos noção disso. Estamos sempre a falar mal das escolas, dos professores, dos alunos e dos pais, mas as taxas de escolarização, alfabetização, insucesso escolar e abandono precoce têm evoluído de forma notável. Temos muitas conquistas: basta ver que, por exemplo, hoje, as taxas de frequência dos ensinos secundário e superior são extremamente mais elevadas do que antes do 25 de Abril. Temos, contudo, ainda questões para resolver e uma delas é o facto de sermos um dos países onde os alunos reprovam mais: o cerne da questão não é a retenção por si só, mas sim o facto de esta estar associada à condição socioeconómica dos alunos. Ou seja, o insucesso escolar é um problema de justiça social porque já respondemos bem aos mais favorecidos e não encontrámos resposta para aqueles que mais precisam da escola.

Do ano letivo de 2010-2011 até agora perderam-se cerca de 175 mil alunos em todos os níveis de escolaridade. Por exemplo, há menos 43 mil crianças nos jardins-de-infância. Isto deve-se às alterações demográficas?

Sim, essencialmente. Temos uma demografia muito deprimida, um problema sério para o país, e um dos eixos principais do programa eleitoral do PS é esse mesmo: centrar a ação política na questão demográfica. 

No âmbito do programa “Gratuitidade dos Manuais Escolares” foram emitidos 2,8 milhões de vales para que os alunos dos 1º e 2º ciclos tivessem acesso a manuais, sendo apenas 107 mil livros reutilizados. A sustentabilidade do programa está em causa pela fraca reutilização?

Sempre foi afirmado pelo Governo que a gratuitidade tem de estar associada à reutilização. A minha colega Alexandra Leitão [secretária de Estado Adjunta e da Educação] tem dito várias vezes que a reutilização é um caminho a trilhar. Não há esta tradição, mas temos de pensar que não falamos apenas de sustentabilidade financeira, mas sim ambiental. Se pensarmos que temos uma média de seis manuais por aluno num país que não reutiliza, isto significa, anualmente, mais de seis milhões de livros deitados ao lixo. Num momento em que todos dizemos estar preocupados com as alterações climáticas e o ambiente, a reutilização é um dever civilizacional.

Muitos pais queixam-se de serem obrigados a apagar aquilo que os filhos escreveram nos manuais e de terem de pagar pelos livros porque supostamente estão em mau estado. O que não está a funcionar bem?

Existe um compromisso da reutilização: para eu receber um voucher, tenho de garantir que o aluno que receberá os livros no ano seguinte os terá em bom estado. Quanto à obrigatoriedade, as soluções são muito diversas: em alguns casos, são os próprios alunos que, no final do ano letivo, numa atividade ligada à cidadania, fazem este trabalho. Noutros casos, são os pais ou outros adultos. Colocar a questão em termos de obrigatoriedade é o mesmo que questionar se somos obrigados a separar o lixo e a reciclar: sim, somos, civicamente. Este ato compromete-nos a todos.

Segundo dados divulgados esta quinta-feira pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, as taxas de retenção são as mais baixas desta década, mas os alunos reprovam mais nos anos iniciais de cada ciclo. Por exemplo, no ano letivo de 2017-2018, 9,8% dos estudantes do 7º ano ficaram retidos, enquanto, no 9º ano, apenas 6,5% não transitaram de ano. A que se devem estes números?

Quando lançámos o Programa de Promoção do Sucesso Escolar, em 2016, convidámos as escolas a ter um olhar cuidado sobre os anos iniciais de cada ciclo, pois são os grandes focos de retenção. Em primeiro lugar, criámos documentos curriculares coerentes, isto é, as aprendizagens iniciais têm a mesma estrutura em todas as disciplinas e em todos os anos - isto permite a leitura vertical, nas transições, e a leitura horizontal, numa planificação integrada. Outro fator importante foi o facto de termos começado a estimular trabalho conjunto entre professores nas transições de ciclo: não é possível um professor de 5º ano não conhecer as orientações curriculares do 4º, por exemplo. Estive recentemente numa escola em que prescindiram de algumas reuniões de departamento para investirem em conselhos de transição. 

No entanto, no 12º ano, 24,5% dos alunos reprovaram. Isto ocorre devido aos exames nacionais?

É sobretudo pelo fim de ciclo. O ensino secundário é organizado por disciplinas e podemos ter taxas de retenção no 10.º e 11º anos que são um pouco mais baixas porque os alunos vão progredindo com disciplinas por fazer. O efeito cumulativo dá-se no 12º ano, mas não tanto pelos exames nacionais, que têm um peso de 30% nas notas finais. Apesar de termos taxas significativamente negativas, estas nem sempre se repercutem na classificação final de uma disciplina.

A partir de setembro, as turmas do ensino científico-humanístico terão um mínimo de 24 e um máximo de 28 alunos. No profissional, o mínimo será de 22 e o máximo de 28. Qual seria o número ideal?

E nas turmas do científico-humanístico que integram alunos com necessidades educativas especiais, o máximo é o mínimo: não pode ultrapassar os 24. Temos de olhar para estes números e para aquilo que se faz com os mesmos de uma forma integrada: reduzir o número de alunos por turma é começar a trilhar um bom caminho e, ouvindo os professores, todos entendemos que isto é positivo e tinha de ser feito. Contudo, quando estudamos o efeito do número de alunos por turma nos resultados escolares, comparando somente alunos comparáveis - com a mesma condição socioeconómica -, não encontramos relações preditivas muito fortes. A redução tem de se associar à estratégia pedagógica. No ano passado 

introduzimos o despacho de constituição de turmas: a diferença entre a turma administrativa e a liberdade que damos à escola para reconfigurar estes grupos, em diversos momentos do ano, para fins pedagógicos. 

Em maio do ano passado foi aprovado o regime jurídico da educação inclusiva. Deixar de ter um número significativo de jovens com necessidades específicas em espaços físicos ou curriculares segregados é o objetivo primordial. Que passos foram dados até agora nesta direção?

Esta legislação tem alguns traços específicos: um é alargar o conceito de necessidades educativas especiais, portanto, não nos focarmos apenas na deficiência, mas nos outros focos de exclusão, como a condição socioeconómica, alunos refugiados e migrantes, outros que estão em situações transitórias como a viver momentos de stresse emocional. Isto convida-nos a olhar para todos aqueles que não estão a conseguir aprender. Sabemos também que quando os alunos não estão em grupos à parte, se houver, associada à integração destes alunos com outros, um tipo de abordagem diferente, os estudantes progridem mais. 

E quais são os pilares dessa abordagem?

Outro pressuposto da legislação é realizar um trabalho multidisciplinar: a inclusão é um trabalho de todos, desde os professores de educação especial até ao diretor de turma, passando pela associação de pais. Não podemos dizer que queremos uma educação inclusiva e termos encarregados de educação a fazer pressão junto da direção para que o seu filho não esteja na turma de alguém de etnia cigana: esta é uma mensagem que tem de ser transmitida às famílias para que termine a aversão à inclusão. Se eu cresço ao lado de alguém que tem mais dificuldades também sou beneficiado, porque contacto com a diferença e aprendo a ajudar. É importante perceber que todos temos potencial para aprender: não se pode desistir de ninguém, pois o papel da escola é levar cada um ao limite das suas capacidades. Passos dados: muito trabalho de formação e de acompanhamento, mas também a noção de que estamos no início e este é o período de apropriação da legislação. O objetivo é que um dia não seja necessário falar de inclusão porque a escola será naturalmente um espaço inclusivo.

De acordo com a OCDE, Portugal é um dos países onde o ensino privado é mais elitista, pois o financiamento das instituições está a ser reduzido. O ensino privado deve ser mais apoiado?

O que o estudo mostra é que temos, na globalidade, alunos com uma condição socioeconómica mais elevada no ensino privado - porque é pago -, mas também que há mais segregação dentro de cada um dos sistemas do que propriamente entre sistemas. Há, por vezes por via do urbanismo, focos de separação entre alunos com meios financeiros distintos. A nossa linha política é de apoio da escola enquanto serviço público, direito universal e até um dever: compete ao Estado providenciar este serviço público de qualidade. Ter uma lógica de financiamento do privado, tendo este fontes de recursos próprios, seria desviar investimento da escola pública e, como ainda há muito a fazer nesta, essa é a nossa prioridade.

A estratégia do Plano Nacional das Artes foi apresentada há duas semanas. Como serão articuladas as ofertas culturais, o envolvimento das escolas e as parcerias com entidades públicas e privadas?

Antes da apresentação da estratégia fizemos um levantamento das escolas que quereriam, voluntariamente, acompanhar o início do plano. Estamos a iniciar um trabalho intensivo com estas instituições para que construam o seu projeto cultural, para que a cultura e a arte façam parte do ADN da escola. Isto será feito através da planificação das atividades curriculares, vendo sempre o potencial da arte em cada uma das disciplinas, mas também da exploração do quilómetro quadrado, como foi referido pelo comissário Paulo Pires do Vale [presidente da Associação Internacional de Críticos de Arte], isto é, ver as parcerias que podem existir com o teatro municipal, a academia de dança, artistas locais, etc., e ter as escolas a trabalhar a arte num sentido muito amplo. Não queremos que seja lecionada apenas a dança ou apenas o cinema: pretendemos que o máximo de artes e formas de expressão artística cheguem aos alunos.

E as escolas aderiram a este projeto?

Sim, na verdade tivemos de travar a adesão para fazermos um trabalho de qualidade, porque a intenção foi manifestada por muitas escolas. Mas, a partir das experiências destas cerca de 40 instituições, que aderiram espontaneamente, poderemos ampliar o plano. 

O relatório “Avaliação das Aprendizagens dos Alunos do Ensino Secundário” mostra que a Inspeção-Geral de Educação e Ciência (IGEC) interveio junto de 12 escolas que inflacionavam as notas dos alunos. Desse conjunto, sete estabelecimentos de ensino são privados. Porque é este fenómeno mais acentuado fora das instituições públicas?

Na generalidade, sim, é mais acentuado nas escolas privadas. Mas estamos a falar de 12 escolas num universo de milhares. Também detetámos este fenómeno em escolas públicas, tanto de inflação - é uma fraude, também do ponto de vista da formação dos alunos - como de deflação - os alunos trabalham, esforçam-se e as notas não correspondem àquilo que fizeram. No caso concreto da deflação, muito conhecido numa escola pública de Lisboa, há um mito de procurar que a escola tenha, nas notas internas, o mesmo resultado que na avaliação externa, e isto é uma má representação dos diferentes instrumentos de avaliação. Isto é grave porque prejudica muitos alunos. Temos de pensar que, nas opcionais do 12º ano, a inflação ocorre mais e isto acontece muito por via do modelo de acesso ao ensino superior que temos, pois o ensino secundário está completamente refém do acesso e deve haver um debate profundo, calmo e onde se oiça todas as partes: os alunos, os professores, os pais e até outros países. Andamos sempre a dizer que as situações não estão bem, mas não as corrigimos. Isto tem de mudar.

Segundo o estudo “A Equidade no Acesso ao Ensino Superior”, os estudantes das classes mais favorecidas frequentam cursos como Medicina, Direito e Engenharia, enquanto os que têm menos posses estudam sobretudo nos institutos politécnicos. Isto deve-se ao facto de os mais ricos terem acesso a explicações e colégios privados e, assim, conseguirem entrar em cursos com médias mais elevadas?

Esse estudo não tem nada de surpreendente. Se sabemos que ao longo da escolaridade existe, associado aos resultados e ao próprio sucesso escolar, um grande preditor que é a condição socioeconómica, não me espanta que, nos cursos com notas mais altas, sejam estes alunos a frequentá-los. É apenas a manifestação, no acesso ao ensino superior, daquilo que estamos a tentar resolver. Interessa continuar este caminho que iniciámos por meio do reforço da Ação Social Escolar - começá-la logo no pré-escolar -, da identificação das aprendizagens essenciais - o currículo tem de libertar espaço para a diferenciação - ou das tutorias lançadas para os alunos com menos sucesso. Estas são medidas de combate às desigualdades, porque cada aluno é único e estamos a tentar encontrar respostas menos massificadas para que a escola cumpra a sua missão de elevador social.

O Agrupamento de Escolas Solano de Abreu, em Abrantes, deixará de avaliar os alunos com notas, mas sim através de menções descritivas do seu desempenho. 

Abrantes está a fazer um trabalho extremamente interessante. A partir dos instrumentos de avaliação que já usa, está a tentar compreender como é possível dar um reporte aos alunos que não seja apenas uma nota, passar com grande pormenor aos estudantes aquilo que está por detrás de um número, e isto permite que os jovens entendam aquilo que fazem bem e aprofundem aquilo que fazem menos bem. Há uma separação entre o conteúdo, a capacidade de análise, a capacidade de pensamento sobre o item, a interpretação, etc. Este processo é muito rico pois, ao invés de ver um 15 na pauta final, suponhamos, recebo uma avaliação absolutamente detalhada. 

O que mudou na educação desde o início do seu período de governação?

Há questões infraestruturais que mudaram: voltámos a ter o Orçamento do Estado a subir na área da educação, houve um claro investimento na escola pública até em termos humanos, havendo mais professores, mais assistentes operacionais e mais cerca de 300 psicólogos nas escolas. Temos obra a sair do papel em todo o país e mudou também o olhar sobre a escola: quisemos afastar-nos de uma escola desenhada para a elite e da ideia de que se tem de separar os alunos o mais cedo possível, como através de exames ou de testes psicotécnicos. Na altura introduziram-se conceitos, a meu ver, totalmente absurdos como turmas homogéneas [um projeto-piloto do último Governo possibilitou a existência de turmas com ritmos de aprendizagem diferentes]. Costumo dizer que sou míope e, se tirar os óculos, os estudantes ficam todos homogéneos, mas, no fundo, não vejo ninguém. Desenvolvemos a autonomia, a flexibilidade, modelos de avaliação internos e externos, tutoriais, o Plano Nacional das Artes. Relançámos o Plano Nacional de Leitura, fazemos um trabalho muito intenso com a rede de bibliotecas escolares, temos o programa “Cientificamente Provável”, que visa intensificar a promoção do conhecimento e contribuir para o enriquecimento do percurso formativo, porque estabelece formas de ligação mais próximas entre as instituições de ensino superior e as escolas básicas e secundárias, com a intermediação das bibliotecas escolares. Reforçámos o desporto escolar... Todas estas iniciativas não são finalidades: são instrumentos para que consigamos atingir certos objetivos, pois quisemos centrar a política educativa em três pilares: sucesso - entendido como aprendizagem e construção de um perfil dos alunos que vai para além de saber coisas que se esquecem, e não como estatística; inclusão - a escola tem de ser para todos e há que contrariar o fatalismo da pobreza -; e cidadania: a escola tem de nos capacitar para uma cidadania ativa e informada.

Fonte: Jornal I

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