“Proteger crianças compete a tod@s” é o nome da campanha nacional que sensibiliza para os maus-tratos na infância e reforça o trabalho feito pelas comissões de proteção de crianças e jovens ao durante o confinamento e em tempos de isolamento. Um dos objetivos da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ) é facilitar a comunicação de situações de perigo. A linha telefónica Crianças em Perigo, no número 96 123 11 11, criada durante a pandemia, recebeu, desde maio do ano passado, 854 chamadas e 1412 comunicações.
A iniciativa pretende chamar a atenção em toda a linha: sociedade civil, familiares, amigos, vizinhos, conhecidos. Todos têm responsabilidade de comunicar casos que conheçam. Há uma brochura, um vídeo e uma ficha de comunicação de situações de perigo, no site da CNPDPCJ, divulgada pelo Ministério da Educação junto das escolas. Uma metodologia inovadora e adaptada ao período de ensino à distância que capacita os estabelecimentos de ensino para a sinalização de situações de perigo.
“É muito importante que as crianças compreendam que, apesar de estarem em casa, continuam a ser protegidas por todos: familiares, vizinhos, amigos, professores/educadores, médicos, polícias, bombeiros, Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), tribunal”, escreve Rosário Farmhouse, presidente da CNPDPCJ, na brochura. “É muito importante que os clubes, as salas de estudo, os amigos, os psicólogos, pedopsiquiatras, telefonem para as crianças e perguntem como estão, se precisam de alguma coisa, e que falem mesmo com elas de forma intermitente (liguem sem ter combinado o dia e a hora) e escutem atentamente, registem o que parece estranho ou preocupante”, acrescenta.
Em 2020, cerca de 18 mil crianças, entre os 0 e os 3 anos de idade, foram acompanhadas pelas comissões de proteção de crianças e jovens. A violência sobre crianças em contexto familiar é um grave problema social e a proteção é um assunto que tem de envolver toda a comunidade. Os maus-tratos acontecem. Agressões físicas repetidas e brutais, tortura psicológica e emocional. Por isso, toda a atenção importa. Observar, escutar, perguntar se está tudo bem, perceber reações, entender a linguagem verbal e corporal. A CNPDPCJ insiste que a indiferença não pode abafar o dever de proteção.
Abril é o Mês Internacional da Prevenção dos Maus-Tratos na Infância, o mês do laço azul que simboliza o combate à violência sobre crianças. O país ficará pintado de azul, edifícios históricos, como castelos, o ascensor da Nazaré, o marco geodésico de Vila de Rei, os paços do concelho de Lisboa, entre outros monumentos e lugares.
“A violência não educa”
No início de abril, a CNPDPCJ, para assinalar a abertura da Campanha do Mês da Prevenção dos Maus-Tratos na Infância, em parceria com a Fundação Nossa Senhora do Bom Sucesso, organizou uma conferência virtual com o nome “Cuida bem de mim – Os desafios da primeira infância”. Rosário Farmhouse, presidente da CNPDPCJ, alertou para a urgência de desconstruir alguns mitos. “Os maus-tratos são transversais a todas as classes sociais, não existem mais maus-tratos numa classe ou noutra, podem existir contextos que potenciam os maus-tratos”, referiu. É necessário quebrar ciclos e ideias formatadas. “A violência não educa”. E a palmada educativa não faz sentido.
O presente é extremamente importante a vários níveis. “Aquilo que fizermos às nossas crianças é aquilo que vamos ter no futuro”, vincou Rosário Farmhouse. Se o contexto é de comportamentos agressivos e violentos, então “a probabilidade de replicação é muito elevada” e o ciclo de violência não tem fim. “Quem protege as suas crianças está a trabalhar para um futuro melhor”, sublinhou a presidente da CNPDPCJ.
A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, abriu o encontro online e deixou várias mensagens. A proteção de crianças e jovens é “um desígnio de todos”. “Hoje, mais do que nunca, cabe a todos acautelar e proteger as crianças e os jovens numa situação nova e excecional que atravessamos. A resposta de agir e de proteger é um desígnio de todos nós”, disse.
“O tempo em que as crianças não têm de estar presencialmente nas escolas, creches e jardins de infância comprometeram a capacidade de atenção e de vigilância, mas as comissões de proteção de crianças e jovens não baixaram nunca os braços. Mantêm-se firmes, reinventaram-se e diariamente mantêm a sua atenção, contacto e acompanhamento de milhares de crianças e famílias que diariamente precisam de especial ajuda e apoio”, sustentou a ministra.
Maria do Carmo Vale, pediatra do neurodesenvolvimento, abordou a importância dos primeiros anos de vida, fundamentais para o desenvolvimento emocional e intelectual da criança. “Quando a criança nasce há uma influência ambiental extremamente importante que vai fazer, validar, vincar, aperfeiçoar, e até estilizar, essa rede neuronal de forma a que a criança desenvolva todas as competências com as quais nasceu”. É uma rede, explicou, “que se vai densificando consoante a consistência, a repetição de estímulos, a inovação, a experimentação, que a criança vai fazendo e que os adultos ajudam a fazer”. Os adultos como modeladores ou provocadores de aquisição de competências das crianças. Como peças essenciais para o crescimento da criança.
A pandemia é um momento crítico. “O que parece que sobressaiu foram os problemas de equilíbrio mental parental, despoletados pela agressividade do isolamento que teve de ser imposto, e que se refletiu nas crianças. Os mais prejudicados são os mesmos, os que têm dificuldades em casa”, lembrou Maria do Carmo Vale. O que se pode fazer? Apoiar crianças e famílias, diagnosticar situações mais cedo, ganhar terreno na parte de socialização e na aquisição de competências.
Ana Teresa Brito, professora do ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida, doutorada em Estudos da Criança, lembrou a necessidade de cuidar uns dos outros. Os profissionais que estão perto das crianças, as famílias que também precisam de ser cuidadas. “Os profissionais precisam de perceber que a criança é ela e a sua circunstância e as famílias são muito importantes”. Se a pobreza atinge maioritariamente as crianças, é preciso, em seu entender, parar para pensar neste assunto. “Devia ser objeto da nossa atenção, como podemos contrariar isso”.
Sinais de alerta. O choro e o silêncio
A brochura da campanha, acessível em formato digital em vários websites, enumera sinais de alerta. São vários. O choro repetido ou um silêncio perturbador numa casa com crianças. Crianças que não são vistas à janela, nas varandas ou quintais, como se tivessem desaparecido. Adultos que choram discreta e disfarçadamente. Marcas físicas como nódoas negras, hematomas, queimaduras, dentadas, abanões, pontapés, empurrões, agora mais difíceis de ver e de identificar devido ao isolamento.
O abuso psicológico e emocional com insultos, ameaças, culpabilização, falta de afeto e de atenção, rejeição afetiva. A suspeita de abuso sexual. Segundo o Conselho da Europa, uma em cada cinco crianças já foi vítima de abusos sexuais. “A criança é usada para diversas práticas que visam a gratificação e a satisfação sexual de adultos ou jovens mais velhos em situações de poder e controlo”. É outro grave flagelo a que as crianças podem estar sujeitas.
Negligência parental, o sofrimento causado à criança com a omissão de cuidados básicos e essenciais. Acidentes domésticos por falta de vigilância, quedas, ingestão de medicamentos ou produtos cáusticos, queimaduras, alimentação inadequada, falta de higiene, fome, clausura. A saúde de uma criança é um aspeto muito importante, seja física, seja mental.
“Também as crianças com problemas de saúde mental, em acompanhamento psicológico ou em pedopsiquiatria, podem revelar uma maior propensão para a irrequietude, turbulência, sono agitado, pesadelos, insónias e terrores noturnos. Muitas vezes, também isso agrava a tensão familiar, desencadeando medidas repressivas ou castigos, que podem facilmente evoluir para maus-tratos/abusos”, avisa a CNPDPCJ.
“Os bebés, não conseguindo expressar em palavras a sua tristeza, medo, insegurança, desconforto e ansiedade, usam o choro para chamar a atenção dos pais/cuidadores. Alguns adultos ‘perdem a cabeça’ com esse choro insistente e podem abaná-los violentamente, provocando graves lesões cerebrais e hemorragias que podem mesmo conduzir à morte do bebé. Torna-se, pois, urgente e absolutamente necessário que todos possamos garantir o especial dever de proteção das nossas crianças/jovens”.
O isolamento social não pode enfraquecer o cuidado de proteger as crianças e impedir de agir. Todas as crianças merecem uma infância feliz. Por isso, é necessário, sublinha a campanha, “ajudar as famílias que se encontram a atravessar momentos particularmente difíceis fazendo com que possam nesta fase ter comportamentos que não comprometam o bem-estar das suas crianças”. A campanha pede para agir e não calar. “Vamos sinalizar para que as famílias possam ter acesso a ajuda e a atenção de que precisam para reparar os seus danos”.