É um novo mundo, um novo ano. O ensino em regime de monodocência termina e começa um outro ciclo de aprendizagem com mais professores, mais disciplinas e uma nova escola. As crianças têm de ser mais autónomas e organizadas, têm mais cadernos, mais docentes, deixam de ser as mais velhas do 1.º Ciclo e passam a ser as mais novas do 2.º Ciclo. Tudo muda. Já não há apenas um professor numa sala, há várias salas, mais docentes e tarefas de estudo.
Quando um novo ano letivo coincide com um ano de transição é preciso redobrar as atenções. O 1.º e o 2.º ciclos são diferentes em vários aspetos. Cada disciplina tem o seu horário semanal predefinido no 2.º Ciclo e há mais matéria do que no 1.º Ciclo. A monodocência passa a pluridocência. A escola normalmente é maior, há mais alunos, mais salas para percorrer, mais intervalos durante a manhã e a tarde, e há o toque da campainha a avisar das horas.
“Todas estas diferenças apontam para a necessidade de uma autonomia crescente. As crianças vão precisar de saber consultar o seu horário e movimentar-se na escola, para se dirigirem à sala correspondente a cada disciplina, na hora exata. Vão ter de prestar atenção aos toques e respeitá-los. A seu cargo, ficará a decisão de qual ou quais os intervalos em que devem ou precisam de realizar algumas tarefas, tais como lanchar, comprar senhas para a cantina ou ir ao quarto de banho”, refere Armanda Zenhas, professora, autora de livros na área da Educação, licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, mestre em Educação, doutorada em Ciências da Educação.
Toda a ajuda é importante porque as rotinas mudam. Gerir mais e diferentes tarefas, saber consultar o horário, selecionar os livros e o material para levar para a escola no dia seguinte, preparar a mochila, decidir o que estudar em cada dia, almoçar ou não almoçar na escola. “As fases de transição de ciclo de escolaridade e a integração numa nova realidade escolar introduzem grande complexidade no percurso escolar das crianças”, escreve Armanda Zenhas na sua tese de doutoramento “A experiência de crianças na sua integração numa nova escola e num ano de transição de ciclo”, apresentada na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Um trabalho académico em que acompanhou uma turma de 5.º ano do ensino articulado de música ao longo de um ano letivo, utilizando a metodologia etnográfica, complementada com entrevistas semiestruturadas, diários das crianças, atividades participativas, questionários aos pais, conversas com professores, diretora de turma, assistentes operacionais, entre outros processos utilizados.
O diálogo é bom conselheiro e uma estratégia que facilita a adaptação a novos métodos. Conversar de forma aberta, franca, e amigável, ajuda a resolver problemas, alguns que não se detetam facilmente. “Tal como Roma e Pavia, também a integração numa nova escola ou num novo ciclo de ensino não se faz num dia. É importante que os pais tenham bem presente que, se estiverem muito ansiosos, essa inquietude e preocupação será transmitida aos filhos. Aos primeiros dias ou semanas de ansiedade segue-se, normalmente, uma adaptação progressiva e uma vivência saudável da nova escola. Os pais precisam de dar tempo ao tempo e de deixar espaço aos filhos”, escreve Armanda Zenhas, num artigo publicado no EDUCARE.PT. “Sem descurar, com a continuação dos dias de aulas, a atenção (sem ansiedade) a sinais que possam indiciar a eventualidade de dificuldades na integração, há que criar condições para que ela corra o melhor possível, com alegria e com confiança”, acrescenta.
Medo, curiosidade, desafios
Transição e integração são conceitos complexos, com múltiplas dimensões, processos distintos que se interligam. O estudo de Armanda Zenhas, no âmbito da sua tese de doutoramento, mostra vários elementos que se conjugam numa mudança de ciclo. “A integração das crianças foi facilitada pela mobilização dos vários tipos de capital acumulado no seio da família, repercutido na riqueza do nível de linguagem, na capacidade de lidar com conceitos abstratos e na capacidade de apropriação criativa de atividades para-curriculares”, escreve Armanda Zenhas que, por outro lado, indica a diferença de estatuto face aos alunos mais velhos, as características arquitetónicas da escola, as regras de circulação e uso dos espaços como fatores que dificultaram a integração. “As crianças concebem estratégias criativas para contornarem obstáculos à sua integração. A integração ativa das crianças pelas escolas nos anos de transição é essencial, principalmente na ausência de capital cultural, social e económico familiares”, sustenta.
A transição e a integração escolares mexem com emoções, interpretações da realidade, ritmos diferentes. A integração da turma do 5.º ano observada por Armanda Zenhas durante um ano letivo não aconteceu ao mesmo tempo por todos os alunos. A integração curricular, pedagógica e disciplinar estava concluída no final do 1.º período do ano escolar. “As primeiras experiências apresentaram-se marcadas por sentimentos mistos de medo, curiosidade e desafio, alimentados por representações de novas disciplinas, difíceis mais interessantes”, descreve. E a linguagem rica em vocabulário e estruturas frásicas permitiu aos alunos uma rápida apropriação dos conceitos das diferentes disciplinas.
A integração nos espaços da escola foi lenta, enquanto as atividades extracurriculares foram oportunidades de descoberta e superaram as expectativas da escola. Segundo Armanda Zenhas, “uma turma, enquanto grupo de pares infantis, por muito harmoniosa e homogénea que pareça, encerra sempre complexidade e diversidade nas relações interpessoais que comporta. É marcada por relações diferenciadas entre os seus elementos, por grupos de amigos com maior consistência ou volubilidade, alianças entre pares e interações estabelecidas com base em diferentes emoções e finalidades, existência de conflitos de gravidade e duração variáveis”.
Mudar de ano, mudar de ciclo, mudar de hábitos, tentar corresponder às expectativas. Tudo isso implica empenho, esforço, dedicação por parte dos alunos. “As crianças perfilham o objetivo de alcançar sucesso escolar - elevado, em muitos casos - e intentam responder às solicitações da escola e da família nesse âmbito. Mostrando graus diferentes de autonomia, procuram, quando o fazem, estar envolvidas num processo de familialização ou, pelo contrário, optam pela individualização”. Todo o apoio é importante, como demonstra o estudo realizado. “As crianças encontraram na família e em elementos da escola um apoio estrutural forte que propiciou condições para o desenvolvimento da sua agência ao longo do processo de integração e de todo o ano letivo”.
Nas recomendações, Armanda Zenhas sustenta que as transições de ciclo de escolaridade e de escola precisam de um olhar atento e de uma intervenção refletida, cuidada e intencional para facilitar uma integração harmoniosa das crianças, em todas as dimensões. Por isso, as crianças devem ser ouvidas e envolvidas, ou seja, é fundamental considerar o ponto de vista dos alunos em fase de transição, como atores centrais desse processo que não é assim tão simples quanto parece à primeira vista.
Fonte: Educare