quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O direito e o dever de educar

Naturalmente, o conceito de família tem evoluído ao longo dos tempos e o direito português tem acompanhando essa evolução, quer através de alterações legislativas, quer através de decisões judiciais que reconhecem um conjunto crescente de direitos e deveres à família “alargada” e às novas formas de família. No entanto, essas alterações têm mais a ver com uma reinterpretação do conceito de família (o que é “a” família) do que com qualquer modificação relevante dos direitos e deveres dos pais e dos filhos.
Podemos dizer que a evolução natural do estado de direito social vai no sentido de reconhecer o papel essencial da família na sociedade, afastando-se progressivamente de teses mais afoitas que, em tempos não muito distantes e em espetros ideológicos bem distintos, privilegiaram uma conceção mais estatal da educação, incumbindo as escolas e outras entidades públicas de substituir os pais na sua tarefa educativa.

Um debate a fazer

Surpreendentemente, ou talvez não, a relação entre família e escola não parece constituir um foco de tensão ou, tão-pouco, de debate no nosso sistema educativo, que se caracteriza, entre outras coisas, por debater ad nauseam quase tudo o que lhe diz respeito. Ao contrário do que sucede noutros países (em França ou nos Estados Unidos da América, por exemplo), em que diferentes grupos pretendem que seja atribuído um papel determinante às famílias na definição da orientação do ensino nas escolas, originando acesas polémicas, entre nós, a relação entre escolas e famílias está acomodada à figura “administrativa” do encarregado de educação e ao papel bastante limitado das associações de país, cingindo os focos de maior tensão à reivindicação periódica de medidas muitos concretas que atendem a problemas específicos, sejam eles a defesa de uma ação social mais robusta ou do direito a medidas de âmbito fiscal que reconheçam o peso efetivo das despesas com educação na economia familiar.
É pena que assim seja, porque este é um tema que merece atenção. Num sistema em que toda a gente mete a sua colherada (académicos, dirigentes da administração pública, políticos, sindicatos, organizações profissionais, autarquias, representantes da sociedade civil), é desejável que se discuta o estado da relação entre pais/encarregados de educação e as escolas porque esta constitui uma das dimensões essenciais do sucesso educativo. 

Educar e ensinar

O artigo 36.º, n.º 5, da Constituição da República (CRP) estabelece que “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos”. Desta norma decorre, entre outros, o dever do Estado “cooperar com os pais na educação dos filhos” (artigo 67.º, n.º 2, c, CRP), sendo que, em ambas, a expressão “educação” tem um sentido diferente de “ensino”, devendo ser lida num sentido amplo que inclui a transmissão do conhecimento, propriamente dito, mas também a miríade de valores sociais, culturais e outros, realizáveis dentro da família. É esse, de resto, o sentido atribuído pelo Código Civil (CC) à responsabilidade parental que confere aos pais o dever de “no interesse dos filhos (...) dirigir a sua educação” (artigo 1878.º CC), dever esse que se concretiza pela promoção “...de acordo com as suas possibilidades...” do respetivo “...desenvolvimento físico, intelectual e moral...” (artigo 1885.º CC). 
Ou seja, enquanto a educação é uma incumbência da família (com o apoio do Estado), o ensino é uma incumbência essencial do Estado que garante a todos o “direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar” (artigo 74.º CRP). 
No entanto, é bom de ver que a fronteira entre educação e ensino nem sempre é clara, porque a primeira inclui, fora do contexto escolar, dimensões que podem contender com a segunda. 
Se é certo que a Declaração Universal dos Direitos do Homem confere aos pais a “prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos” (artigo 26.º, n.º 3), e que “o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas” (artigo 43.º, n.º 2, CRP), também é verdade que, olhando para este último preceito, não podemos deixar de concluir que é impossível autonomizar totalmente os métodos de ensino, as práticas pedagógicas e os conteúdos programáticos das dimensões filosóficas, estéticas, políticas e mesmo ideológicas ou religiosas que, parece, se quer reservar em exclusivo aos pais.
Um bom exemplo do que acaba de ser dito é o da educação sexual. Trata-se de um tema potencialmente controverso que mereceu, entre nós, um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República (33/82) no já longínquo ano de 1982. É curioso ler o que aí é dito sobre o perigo de “doutrinação” inerente à atividade letiva e a recomendação de que os conteúdos lecionados se limitem unicamente à transmissão de informações de carácter biológico e ao seu enquadramento no âmbito de uma relação humana e afetiva. Hoje, esta tese soa algo caduca, mas se convoco o exemplo (que tomei de empréstimo ao Professor Jorge de Miranda) é porque ele mostra que existem áreas de intervenção da escola potencialmente conflituosas com a comunidade que a rodeia e, por outro lado, porque ele revela que a perceção da comunidade face a algumas temáticas educativas varia muito, de acordo com a perceção que se vai construindo no espaço público. 

Um caminho a fazer

A lei enquadra a intervenção dos pais e encarregados na comunidade escolar através do Estatuto do Aluno e da Ética Escolar (Lei 51/2012), estabelecendo um conjunto de responsabilidades parentais e um sistema sancionatório para os casos de incumprimento dos deveres dos pais e dos encarregados de educação. Trata-se de um sistema de gestão da relação família-escola que respeita, no essencial, à relação individual de cada aluno e dos seus encarregados de educação com a escola, deixando algo a desejar quanto à participação das famílias nas grandes decisões da comunidade educativa. 
Esse papel é conferido às associações de pais, as quais, de resto, estão presentes nos conselhos gerais dos agrupamentos e atuam, por essa via, como os representantes dos pais na definição dos projetos educativos e nos processos de decisão nas escolas.
Sem pôr em causa o papel importantíssimo de muitas associações de pais na vida das respetivas comunidades educativas, não deixa de ser um sistema institucional, que perde alguma eficácia porque está refém dos formalismos típicos das nossas instituições. 
Num país com uma cultura cívica relativamente pobre, é desejável que a escola seja um exemplo de integração e participação comunitária e, nessa matéria, há muito a fazer. 

Tiago Saleiro

In: Educare

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