A desigualdade é um dos problemas mais difíceis de resolver no nosso sistema de ensino. De facto, os rendimentos dos nossos pais vão influenciar muito as circunstâncias em que crescemos, e os recursos e escolas a que temos acesso. A pobreza é assim um fator que influencia muito a capacidade de os alunos terem melhores resultados na escola, ou seja, de adquirirem mais conhecimentos, que lhes permitam lutar, em adultos, por uma vida melhor.
Quando olhamos para o caso de Portugal, vemos que, ao longo das duas primeiras décadas do século XXI, os alunos mais pobres tinham cerca de dois anos de atraso nos conhecimentos, quando comparados com os colegas nascidos em famílias de maiores rendimentos. Como termo de comparação, e usando os dados dos testes do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), concluímos que, em Inglaterra, no final da década de 2010, esse mesmo fosso era inferior a metade, ou seja, os alunos mais pobres tinham um atraso de cerca de 11 meses em relação aos colegas.
Mas onde começam estas desigualdades? A resposta pode ser surpreendente para alguns. Na verdade, uma parte importante desta desigualdade no sistema de ensino acontece até aos três anos de idade, ou seja, antes mesmo de uma criança entrar na escola.
Vamos usar os dados disponíveis para o caso inglês que, infelizmente, não existem para Portugal. Em parte, isto acontece porque, em Inglaterra, existem recolhas de dados muito completas e até alguns estudos longitudinais. Este método de investigação segue uma criança do nascimento à idade adulta, permitindo analisar o que acontece ao longo da sua vida.
Uma análise recente, coordenada por Sir Angus Deaton, vencedor do Prémio Nobel, para o Institute for Fiscal Studies olhou para dois grupos acompanhados nestes estudos longitudinais: um de pessoas nascidas em 1970, outro de nascidas em 2000. A estes dados, juntaram outros questionários que lhes permitiram chegar a três conclusões.
Em primeiro lugar, confirma-se que as crianças desenvolvem as suas competências de forma muito desigual logo quando são muito pequenas. Aos três anos, as crianças nascidas nos agregados familiares com mais rendimentos apresentam uma probabilidade três vezes superior de ter elevadas competências cognitivas, sociais e emocionais do que as crianças de famílias mais desfavorecidas.
A segunda conclusão é que muitas destas diferenças acontecem por causa do ambiente em que a criança cresce, o que inclui pelo menos três fatores: educacionais (tais como a escolaridade dos pais ou acesso à creche), materiais (por exemplo, a habitação ou a alimentação) e emocionais (como as relações entre os pais, conflitualidade, a hora de deitar da criança ou a saúde mental dos progenitores). O relatório dá como exemplo o impacto que a pobreza tem nas mães, que, sabemos, também em Portugal é um dos fatores que mais influencia o desenvolvimento dos filhos, e também as suas notas na escola.
Por exemplo, as mães mais pobres têm 11 vezes maior probabilidade de sofrer de problemas de saúde mental como ansiedade, depressão ou stresse elevado, fatores que vão influenciar o desenvolvimento da criança logo aos três anos. Por outro lado, também há diferenças significativas quanto ao comportamento e aos estímulos dos pais: o relatório realça que 76% dos pais em famílias de maiores rendimentos leem histórias aos filhos todos os dias, número que representa quase o dobro das famílias mais desfavorecidas.
A última grande conclusão é que os primeiros anos vão ter uma influência muito grande quando crescemos, e até nos nossos salários na idade adulta. Aqui, também a escolaridade das mães parece ser um fator importante: as crianças com mães mais escolarizadas terão, em adultas, rendimentos cerca de um terço superiores às das outras crianças com mães menos escolarizadas. Metade destas diferenças salariais em adulto podem ser explicadas pelo desenvolvimento das crianças nos primeiros anos.
No essencial, o relatório pinta uma realidade com consequências importantes: uma parte muito substancial da desigualdade na educação já está vincada antes mesmo de uma criança entrar para a escola, entre os cinco e os seis anos.
Outros dados que temos disponíveis, por exemplo, os do Education Policy Institute, confirmam que, antes mesmo de entrarem para o 1.º ano, os alunos desfavorecidos já têm quatro meses e meio de atraso em relação aos colegas. Esse atraso vai crescendo proporcionalmente, de forma mais ou menos linear, conforme o tempo passa, duplicando no final do ensino primário e aumentando também no ensino secundário.
Ora, isto quer dizer que uma criança começa a escola já com um atraso nos conhecimentos, e esse atraso, que já lá estava, apenas vai aumentando à medida que o aluno progride no sistema de ensino. Leva-nos isto a uma questão muito importante: será que, se combatêssemos a desigualdade antes de as crianças entrarem na escola, podíamos diminuir de forma substancial a desigualdade à saída?
Os investigadores têm explorado algumas formas interessantes de o fazer, designadamente investindo na educação na creche e no pré-escolar ou mediante apoio financeiro direto às mães com menos rendimentos.
Infelizmente, em Portugal, por vezes o nosso sistema faz com que estas soluções sejam aplicadas do avesso, agravando problemas que deviam resolver. Por exemplo, de acordo com o relatório Portugal, Balanço Social, as crianças nascidas em famílias de maiores rendimentos tinham mais acesso à creche, e quase 60% das crianças de contextos desfavorecidos não frequentam a creche até aos três anos. Será que, se investíssemos mais cedo nas crianças que mais precisam, poderíamos acabar com a desigualdade?
As opiniões expressas neste artigo são exclusivamente do autor e não refletem os princípios ou posições das organizações às quais está associado.
Miguel Herdade
Fonte: Iniciativa Educação