Devia ter-se chamado Ana Raquel, mas como nasceu a 13 de Maio, numa reviravolta inesperada, acabou por ficar Lúcia Jacinta. Não me lembro de muitas coisas sobre a doença dela porque, com seis anos, as minhas preocupações estavam centradas em saber se podia ser a Navegante da Lua na brincadeira do recreio ou se, mais uma vez, teria de me contentar em ser a Navegante de Júpiter. Mas lembro-me de um dia lhe perguntar porque é que não tinha unhas. Ela encolheu os ombros e disse que não sabia e, a bem da verdade, aquilo pouco me chateou. Imagino que, na minha cabeça de criança, as unhas não fossem uma coisa assim tão importante.
Há uns tempos, andava em arrumações e encontrei uma daquelas clássicas fotografias de turma em que aparecemos alinhados em duas filas. E lá estava ela. Mas agora, já adulta, os meus olhos viram o que a inocência de criança nunca me deixou ver: o rosto dela era o típico rosto de gnomo que associamos à síndrome de Williams. A boca larga, os dentes pequenos, os olhos grandes e puxados... E depois lembrei-me de que ela cantava muito e quase sempre. E esta é, também, uma das características típicas desta alteração no cromossoma 7. Vinte e nove anos depois de entrar para a escola primária percebi que a minha colega de turma era uma raríssima. Mais uma entre tantas que celebramos hoje.
Não sei porque é que a Lúcia não tinha unhas, uma vez que nada do que li atribui essa característica aos portadores desta condição. Mas consigo imaginar que esta síndrome não vivesse sozinha naquele corpo franzino de menina que falava demais (portadores de síndrome de Williams são, em regra, extremamente sociáveis e conversadores — há quem diga, inclusivamente, que esta síndrome é o oposto do autismo). Não sei onde a Lúcia está agora, o que faz da vida, como foi o seu desenvolvimento ou qual foi o diagnóstico exacto que lhe atribuíram em criança. O que sei é que ela faz, seguramente, parte dos 6% da população portuguesa que sofre de uma doença rara.
Utilizando a definição da União Europeia, são consideradas doenças raras as que afectam menos de cinco pessoas em cada dez mil. E estão, actualmente, descritas cerca de seis a oito mil doenças deste tipo. Algumas delas, dentro da “raridade”, acabam por atingir um número significativo de indivíduos, mas outras são tão absolutamente raras que o seu diagnóstico é quase sempre tardio, o prognóstico desconhecido (por existirem tão poucos casos no mundo que não é possível prever a evolução da doença) e a experiência de as vivenciar, como portadores ou como pais, acaba por se assemelhar a uma travessia no deserto.
Ter um filho diferente é uma prova muito dura. Ter um filho tão diferente que não há forma de saber o que nos espera é o corolário da solidão. Sabiam que há pais que nunca chegam a ter um nome para a doença dos filhos? E, por experiência própria, garanto-vos que ter um diagnóstico grave é muito doloroso. Mas é infinitamente pior viver sem ter diagnóstico nenhum. Porque isso impede que se façam planos, que se tracem metas realistas, que se antecipem problemas. Viver na escuridão é estabelecer morada num purgatório de onde desapareceram todas as certezas.
O meu primo Tiago tem vinte e cinco anos. E há cerca de vinte e três que os pais lutam, todos os dias, para lhe dar uma boa vida. Não sei quantas especialidades o seguem neste momento nem quantos tratamentos diferentes já foram tentados. Sei que o diagnóstico definitivo não aparece. Tem epilepsia, tem défice cognitivo, tem problemas hormonais severos e perdeu a capacidade de andar. Mas tem sido impossível juntar todos os sintomas e chegar a uma conclusão. Tudo o que parece nunca é. Todas as suspeitas caem em saco roto. E os pais do Tiago, filhos únicos, desesperam pelo dia em que faltem ao filho.
Este desespero é, aliás, transversal a todos os pais de “raros” com quem falei. Se de um lado existe sempre o horror dos números que diz que 30% das crianças com doenças raras morrem antes dos cinco anos, do outro existe o medo pelo futuro dos filhos no dia em que os pais lhes faltarem. Ser raro, neste contexto, está longe de ser uma mais-valia. Ser raro é uma prova de fogo.
Todos os anos, no último dia de Fevereiro, se celebra o Dia Mundial das Doenças Raras. E o objectivo do dia de hoje é sensibilizar a população para este tipo de doenças e para as dificuldades que os seus portadores enfrentam para obterem um diagnóstico, um tratamento ou, quando possível, uma cura. E por falar em tratamentos e curas, sendo que um dos objectivos da indústria farmacêutica passa pelo lucro, é óbvio que existe uma enorme relutância em desenvolver medicamentos para estas doenças, uma vez que o pequeno mercado a que se destinam dificilmente conseguirá retornar a quantia investida na investigação e no desenvolvimento dos fármacos.
Quem é que não se lembra do caso da pequena Matilde, a bebé portuguesa com atrofia muscular espinhal tipo 1, que viu um país inteiro unir-se ao esforço dos pais para adquirir o Zolgensma, que custa a módica quantia de 1,9 milhões de euros? E se é certo que o fármaco acabou por ser comparticipado pelo Estado, também é certo que existe um longo caminho a percorrer no que toca aos medicamentos órfãos — é esta a designação dos fármacos que têm como função específica o tratamento de doenças raras. Ainda que na União Europeia exista, desde 1999, uma política comum sobre os medicamentos órfãos e que se tenham implementado incentivos para que as empresas de saúde e tecnologia se dediquem a esta área, do ponto de vista puramente comercial o desenvolvimento e a investigação destes fármacos continuam a ser pouco atractivos. Tal como quase tudo na doença, não é?
A doença é incómoda, repele e fica mal nos feeds coloridos do Instagram. Também não origina grandes comentários no Twitter. Até porque, na época em que vivemos, é quase de bom-tom não trazermos alguns assuntos para cima da mesa. Porque a gente até sabe que eles existem, mas gosta de poder esquecer-se deles em paz. E é isso que o dia de hoje tenta combater.
É imperativo que paremos com a “coitadinhização” dos doentes raros e famílias ao mesmo tempo que encolhemos os ombros e soltamos um “o que é que eu posso fazer, não é?”. Porque a verdade é que podemos fazer muita coisa. E a primeira de todas é olharmos com atenção para as Lúcias Jacintas desta vida e pararmos para lhes perguntar, a elas e às suas famílias, o que sentem ou do que é que precisam. É que elas até podem ter nascido a 13 de Maio e ter o nome de duas das pastorinhas que viram Nossa Senhora. Mas estão longe, muito longe, de terem sido abençoadas.
Carmen Garcia
Fonte: Público