“Idealizei três bebés normais, como aqueles que vemos nas revistas e nas outras famílias. Os meus filhos tinham os olhos todos saídos para fora e fechados. Muitos escuros e com as veias todas à vista, a pele ainda não estava formada; os dedos ainda não estavam completamente abertos nem as orelhas totalmente formadas. Pareciam uns pássaros acabados de nascer. De bonito não tinham nada. Mas eram meus e, para mim, eram os melhores do mundo.” Andreia Rodrigues, 38 anos, lembra-se bem da noite de domingo de 15 de julho de 2007. Estava na maternidade Júlio Dinis, no Porto, prestes a ser mãe depois de alguns tratamentos de fertilidade falhados.
Hoje os trigémeos têm dez anos. Os rosto são diferentes, os traços, as alturas, a cor dos cabelos… é difícil encontrar-lhes a semelhança. Está lá, mas não se percebe bem no quê. A prematuridade também lhes trouxe a diferença. Afonso e Tomás têm paralisia cerebral, provocada por hemorragias no cérebro nos primeiros dias de vida; Bernardo é completamente saudável.
A Afonso foi diagnosticada tetraparesia, ou seja, além das dificuldades cognitivas, as funções motoras dos braços e pernas apenas respondem parcialmente. Tem 96% de incapacidade. Já Tomás tem algumas dificuldades a nível motor, do lado direito (hemiparesia).
Uma couve-flor cabe na palma da mão. Também um bebé com 25 semanas (prematuro extremo). Apesar de grande parte das vias respiratórias já estarem desenvolvidas, é nesta fase que as narinas começam a abrir, que surgem os primeiros cabelos. Começa a agarrar o pés e a fechar as mãos. Às 25 semanas já se pode terminar cá fora o que a natureza não terminou no útero. É possível, mas nem sempre é fácil, ainda mais quando são três.
Nascer antes do tempo pode trazer sequelas a curto e longo prazo. Segundo dados da Sociedade Portuguesa de Neonatologia, 4% dos bebés prematuros de muito baixo peso têm paralisia cerebral.
930 GRAMAS: AFONSO
“O Afonso está ali”, aponta Tomás, enquanto se encaminha até um ginásio cheio de cor, numa clínica de reabilitação em Espinho. Com Bernardo ao lado, explica com detalhe os exercícios que o irmão está a fazer, para que servem, os músculos que estão a ser estimulados. “Eu também tinha de fazer aquilo no espaldar”, continua. Aquilo são flexões de braços. Sobe e desce, sobe e desce. E repete.
Quando os meninos nasceram - a mãe trata-os sempre por “meninos” –, Andreia sabia que por serem três haveria a hipótese de um deles não sobreviver ou ter complicações no pós-parto. Nunca pensou que fosse Afonso. Era o maior e o que tinha um quadro mais estável.
Os pais não podiam ficar nos cuidados intensivos com os bebés. Às 22h, Andreia saía do Porto, conduzia por 120 quilómetros até Vila Real. Chegava a casa, comia, tomava um banho. Deitava-se um pouco. Voltava a pegar no carro e ia para a maternidade. Às 9h estava lá à porta. Todos os dias, sem faltas ou atrasos. “O meu coração parecia que começava a acelerar. Nunca sabia o que iria ouvir.”
Num desses dias, Andreia encontrou a incubadora de Afonso tapada. Durante a noite tivera uma hemorragia cerebral e uma forte convulsão. O bebé poderia viver minutos, horas ou dias. “Não sei se a mãe é católica ou se o quer batizar. Aqui, podemos batizá-lo se quiser. O Afonso não tem qualquer hipótese de sobreviver”, recorda ter ouvido de uma enfermeira. Os meninos tinham dez dias de vida.
“Caiu-me tudo. Na minha ideia, estavam a dizer-me que os meus três filhos iam morrer. Se o Afonso, que era o maior, não conseguia sobreviver, os outros também não.” Nessa noite, Andreia e Nuno, o pai, sentaram-se à porta da maternidade e choraram muito, revoltaram-se ainda mais.
À equipa médica pediram apenas uma coisa: serem avisados quando os sinais vitais enfraquecessem. “Quero que o meu filho me morra nos braços. Quero tirá-lo da incubadora e quero que acabe nos meus braços.” Andreia está a chorar enquanto conta isto, mas enxuga as lágrimas ao passo que caem. Não é mulher de lamentos.
Passaram os minutos, as horas e os dias. Ao contrário de todas as expectativas, Afonso conseguiu viver. Disseram a Andreia que o filho nunca iria andar, falar, ver ou ouvir. Mas Afonso anda, fala, vê e ouve.
Todas semanas são mais de 30 horas em reabilitação: fisioterapia, terapia da fala, terapia ocupacional, hipoterapia e natação. Hoje, foram três horas de “Therasuit”, um programa intensivo para Afonso ganhar força muscular. “Isto fá-lo sofrer. Isto faz sofrer os meus três filhos, que estão a abdicar de muita coisa porque não aceitei que o Afonso fique numa cadeira de rodas. Às vezes questiono isso…Ainda hoje acho que não aceitei tudo o que aconteceu. Aliás, acho que no momento em que aceitar, não faço os faço passar por tanto sofrimento.”
Afonso está cansado, mesmo cansado. Cansado como quem acabou naquele momento de correr uma maratona. Assim que a sessão termina e atravessa a porta da rua, Bernardo pega-lhe na mão, passa-lhe o braço pelos ombros e agarra-o. Tomás aproxima-se também.
720 GRAMAS: BERNARDO
Os primeiros passos dados por Bernardo foram na sala de espera das urgências. Nunca teve qualquer problema de saúde, mas passou boa parte da vida a entrar e a sair de hospitais. Ou Afonso estava doente. Ou era Tomás.
“Não vi o meu Bernardo a gatinhar. Foi tudo tão rápido que nem houve tempo para usufruir, aconteceu no intervalo de tudo o resto. Aqueles pequenos momentos que devem ser vividos com grandes alegrias para os pais foram sempre vividos em aflição porque um dos outros estava mal”, explica Andreia.
Na clínica de reabilitação que a família conhece há mais de seis anos, Tomás desaparece por momentos. Bernardo nota logo: “Onde é que ele está?” Os pais procuram-no sem aflição, estará provavelmente na casa de banho. Bernardo continua em alerta e não pára até lhe colocar a vista em cima. “Oh, Tomás”, suspira quando reencontra o irmão. Bernardo é o mais parecido com o pai, à exceção dos cabelos alourados. O ar meigo, a postura direita e as mãos nos bolsos enquanto espera fazem-no parecer um homem crescido.
“Viu-se privado de ter dez anos, porque não pode ter. Por exemplo, está na escola e está a pensar se o irmão Tomás comprou a senha do almoço. Para ele, é intuitivo.”
Os três estão agora no quinto ano, na mesma turma. Desde sempre que é assim. Quando Bernardo percebe que Tomás não está a fazer um exercício ou está distraído, arranja forma de se levantar para ir discretamente chamar o irmão à atenção. “Meu filho, já te disse tantas vezes: nunca vais ser feliz por seres tão protetor”, diz a avó.
510 GRAMAS: TOMÁS
“A minha turma é muito faladeira.” Tomás é o mais irrequieto dos três. É também o mais pequeno e magrito. “Faladora, é faladora que se diz”, corrige logo Andreia. “Pronto, a minha turma é muito faladora.”
Foi ainda durante a primária que os professores perceberam que Tomás tinha dificuldades em acompanhar os estudos. Afinal haveria algo mais do que os problemas motores. Aos 15 dias de vida dos meninos, e ainda a aguardar os desenvolvimentos da situação delicada de Afonso, Andreia e Nuno tiveram outro choque. Tomás sofreu também uma hemorragia cerebral. Não era comparável à do Afonso, mas poderia deixar marcas. E deixou.
“O Tomás olhava para o quadro ou escrevia, não conseguia fazer as duas coisas ao mesmo tempo. É mais fácil aceitarem o Afonso, que tem algo que se vê logo, do que aceitarem o Tomás, em quem fisicamente não se nota nada.” Só aos três anos começou a andar e fez sempre fisioterapia. Hoje são duas vezes por semana (“era preciso mais”).
Afonso está no ensino especial. Os pais tentaram o mesmo com Tomás, mas não resultou. “Não aceita que é diferente e lida muito mal com isso. Então a maneira dele reagir é bater, responder, ser impulsivo. A sociedade ainda não está pronta para a inclusão. É muito fácil dizer coitadinho, mas na hora de ajudar ninguém ajuda.”
OS PAIS: “HUMILHANTE AJUDA”
Entre banhos, jantares, trabalhos de casa (“que são cada vez mais”) e arrumações para o dia seguinte, há sempre tempo para se sentarem em círculo no chão da sala. Ir para o chão é muito deles. Em tempos, quando Bernardo e Tomás já se sentavam direitos no sofá, Afonso ainda não conseguia. Então, a mãe resolveu o assunto: iam todos para o tapete e sentavam-se como queriam. E dura até hoje.
“Letra A. Queremos nomes começados por A”, anuncia Andreia enquanto agarra num quadradinho de cartão.
“André”, diz Nuno.
“Ana”, responde Bernardo.
“Afonso”, atira Tomás.
Por fim, é a vez de Afonso: “Andreia”.
A mãe agarra num molhe de letras, agita e tira uma nova letra. Lá vai mais uma ronda de nomes, desta vez começados por E.
Quando os meninos vieram para casa, Andreia abdicou do trabalho, tinha um loja. Agora, presta assistência a terceira pessoa – assim designa a lei -, só Nuno trabalha - é vendedor. Todos os meses precisam de dois mil euros para terapias, para os programas intensivos de reabilitação são mais uns milhares. Depois há todos os outros gastos normais de qualquer criança.
“Por mais que as pessoas me chamem mãe guerreira, sou muito sincera: preferia não ser. Era bom sinal. Essa história é toda muito bonita contada, porque eu preferia estar sossegadinha a trabalhar e com os meninos na escola, que era bem mais fácil.” Os pais não querem parar as terapias, sabem que Afonso está quase a caminhar e a ser autónomo. Porque Afonso quer ser bombeiro. E Bernardo mecânico. E Tomás farmacêutico.