“Tenho ideia que fiquei gago aos 14, 15 anos, quando entrámos para o liceu. Foi na brincadeira com amigos, por causa do Howard Stern, um programa de televisão. Na altura estávamos a imitar o tique de um gago. Brincadeira puxa brincadeira, ficámos os três a patinar desde aí”, recordou. Apesar deste relato, o 14.º ponto de uma lista da APG, que visa chutar para canto alguns mitos, diz que a gaguez não é possível “apanhar-se de alguém” ou aprendendo com alguém. “O pensamento fica mais acelerado do que a fala. Atrapalho-me todo”, vinca, embora confrontado com a informação.
Daniel Neves da Costa, membro da direção da Associação Portuguesa de Gagos, explicou ao Observador que normalmente os casos de gaguez têm derivações genéticas e neurológicas, logo “é improvável que surjam de brincadeiras”. A APG tem várias valências, seja na informação que presta à sociedade civil ou no acompanhamento de casos individuais ou institucionais. “Percebemos que existe uma grande falta de informação sobre a gaguez em Portugal, e isso conduz a um conjunto de estereótipos e respostas desajustadas”, explicou.
Gaspar admite que sente algum constrangimento e que ponderou várias vezes ir a um terapeuta da fala. A falta de tempo e a preguiça não permitiram. “Tenho noção que preciso de terapia. Quando fico nervoso, então… Aí nem falo, que é melhor. Faço mímica”, reconhece, explicando ainda que no trabalho tem de “manter a calma” para controlar a situação. Apesar de conviver com este fenómeno, que afeta quatro vezes mais os homens do que as mulheres, Gaspar tem um trabalho que o obriga a lidar diretamente com clientes. Seduzi-los e angariar clientes para uma famosa cadeia de ginásios é a missão. Recentemente até ocupou o top nacional de vendas da marca, o que contribui para desdramatizar a disfluência no discurso de que se queixa.
“Há certas letras que são complicadas — o ‘T’ e o ‘C’, por exemplo. Muitas vezes, para desviar a atenção ou não dar a entender que gaguejo, substituo a palavra que sei que vou patinar. Ou digo “e” antes para facilitar a junção das palavras”, explica.
Mas, afinal, qual é a origem da gaguez? Para começar, e como já vimos, a genética: 60% dos gagos tem um familiar que gagueja. Depois, surgem argumentos neurológicos e psicossociais, explica a APG. No primeiro caso, os estudos mais recentes revelam que pessoas com gaguez usam áreas neuronais distintas das pessoas que não gaguejam. No segundo cenário entram as exigências do meio envolvente e até a forma como a própria família lida com os primeiros sinais de gaguez. O desenvolvimento linguístico na infância também tem relevância.
Uma coisa é certa: crianças e adultos que sofrem de gaguez, a tal patinagem no discurso, não têm mais problemas emocionais do que aqueles que gozam de fluência no discurso. A gaguez surge normalmente no terceiro aniversário das crianças, sendo que pode florescer entre os dois e os cinco anos. “A melhor forma de lidar com a gaguez é falar-se de forma aberta com os interlocutores”, explicou Daniel Costa.
A Associação Portuguesa de Gagos dá uma especial atenção aos mitos urbanos, digamos assim, criados sobre a gaguez. E pretende fechar a porta ao estigma. Deixamos aqui alguns exemplos de ideias erradas: pessoas que gaguejam são menos inteligentes; ajuda dizer à pessoa que gagueja: “respira fundo”, “pensa antes de falar”; pessoas que gaguejam são nervosas, tímidas, inseguras, stressadas, etc; o nervosismo é a causa da gaguez; o stress provoca gaguez; um susto pode ser a causa da gaguez. E a lista não fica por aqui…
Um bom exemplo que desmistifica e desdramatiza a gaguez foi o de António Franco, que fez um brilharete no “Quem Quer Ser Milionário”, em 2003, e meteu ao bolso 250 mil euros. “Não vou dizer que ser gago é fantástico, mas vou procurar explicar que uma pessoa por ser gaga não tem qualquer limitação”,
disse ao Diário de Notícias, em 2009. “Aliás, se deixasse de ser gago perdia o meu elemento identificativo.”
Lembra-se do filme “O Discurso do Rei”?
O caso mais famoso de gaguez será porventura aquele que pairou na família real inglesa. Esta história, que até acabou nos écrãns de cinema (“O Discurso do Rei”), remonta à primeira metade do século XX. O rei Jorge VI teve de contratar um terapeuta da fala para o ajudar a discursar para o povo britânico. Numa altura em que não havia edições, corte e costura do som, nem truques, era ele e o microfone. Os nazis olhavam para o rei, o pai da atual rainha, como um fracasso. O filme relata algumas estratégias curiosas do terapeuta, que incluíam fazer o rei falar com berlindes na boca.
Hollywood e o mundo da música têm um vasto leque de casos de patinagem no discurso, um fenómeno que se acredita afetar 1% da população mundial. Tiger Woods, o famoso jogador de golfe, é um deles. “As palavras perdiam-se algures entre o cérebro e a boca. Era muito difícil, mas eu ultrapassei isso”, afirmou no programa de televisão “60 Minutos”. Joe Biden, o braço direito de Barack Obama, é outro, logo ele que está habituado a falar para milhões de pessoas.
Mas há mais. Se tivermos fé nos diversos artigos encontrados na internet sobre o tema, podemos concluir que as estrelas, sejam da política, cinema ou música, que sofrem ou sofreram de gaguez não são assim tão poucas. Winston Churchill, Bruce Willis, Chris Martin (Coldplay), Anthony Hopkins, James Earl Jones, o homem que deu voz a Darth Vader, e Marilyn Monroe serão apenas alguns exemplos.
“COITADO, ATÉ FICOU GAGO”
Portugal também tem fenómenos na arte de esquivar da gaguez por uma razão maior. É o caso de Mário Dias, um animador da TSF. Como é que ninguém dá por ela? “Eh pá, é uma questão que nunca soube responder. Não sei. A coisa sai normalmente. Em miúdo já fazia umas gravações para um velho gravador de bobinas e já aí a coisa saía normalmente. Com o microfone à frente não gaguejava”, explicou ao Observador. A entrevista a Cati Freitas, no vídeo em baixo, atesta a teoria.
Mário Dias vive com a gaguez desde os seis anos e já convive com isso “na boa”, sem dramas. Mas vai-se agarrando a alguns truques. “Há aquelas palavras com que empanco que evito colocar num texto que irei ler depois. É uma questão de sobrevivência oral.”
Quando era miúdo algumas crianças “eram mais perversas que outras”, mas Mário Dias, depois de se chatear numa fase inicial, aprendeu a ignorar. “Andei em dois terapeutas da fala, que tinham métodos diferentes. Um deles dizia que era uma questão de respiração, o que ajuda às vezes. O outro ensinava a martelar as palavras, digamos assim. A falar com calma, separar as sílabas.” Não havia truques nem exercícios com berlindes como aqueles vistos no “Discurso do Rei”, mas aqueles que praticou ajudaram-no e deram-lhe “algumas bases” para enfrentar a gaguez.
Daniel Neves da Costa revelou que é “recorrente” haver relatos de bullying nos fóruns organizados pela APG. “Alguns pais dizem que os filhos querem deixar de ir à escola. Mesmo quem quem o faz [bullying] julga que está só a fazer uma brincadeira, que não é nada do outro mundo, mas isso acaba por afetar a pessoa com a condição, que começa a isolar-se”, explicou.
E traumas? Mário Dias diz que são mais as histórias giras do que as chatas. “Uma vez tive um acidente de táxi e lá saímos dos carros, condutores e eu. Depois há sempre aquela malta que se junta para ver o que se passou. Comecei a explicar o acidente e uma velhota que lá estava disse ‘coitado, até ficou gago'”, contou com um fair-play delicioso, seguido de uma gargalhada. Em momentos de nervosismo o cenário piora, algo que se inverte quando se irrita: “até falo sem gaguejar.”
Mas as histórias não ficam por aqui. Afinal, a gaguez até chegou a dar jeito. “Em situações de exames orais, por exemplo. Os professores tinham alguma consideração porque o gajo era gago. Deu-me jeito”, lembrou. Com as miúdas nunca teve problemas. “Há quem venda a tese que os gagos têm um certo charme.”
Quanto à convivência com aqueles que não gaguejam, Mário Dias contou as diferentes reações das pessoas à gaguez. “Há aquelas que esboçavam um sorriso, porque é chato começarem-se a rir na minha cara e lá controlam o riso. Mas agora já não se sente tanto isso. Há outras que se sentem, de facto, constrangidas, ou porque não têm paciência para o gago acabar a frase. Depois há outras que acabam as frases, o que me irrita.”
Para arranjar trabalho, Mário Dias nunca sentiu entraves impostos pela gaguez. Mas nem sempre é assim. Daniel Costa revelou que há “um conjunto de ideias feitas sobre as pessoas que gaguejam que podem condicionar” na hora da seleção. “As pessoas podem pensar que é ansioso e nervoso por gaguejar e que, por isso, não será talhado para certos trabalhos”, explicou Costa.
Mário Dias, como não podia deixar de ser, ofereceu mais uma bela história relativamente ao mercado de trabalho. “A melhor foi o espanto do Emídio Rangel quando fui falar com ele pela primeira vez à TSF. Depois de estarmos a conversar, contaram-me que ele saiu do gabinete e disse qualquer coisa do género: ‘Mas isto está tudo doido?! Até me enviam um animador que é gago…” Mas o futuro animador da TSF teve Maria Flor Pedroso do lado dele, que garantiu a Rangel que “o gajo ao microfone não gagueja.” E assim ficou na TSF, numa história que se desenrola há mais de 20 anos.