Como defendemos em fevereiro de 2019, não se nos afigura correto procurar avaliar esta lei numa perspetiva de “tudo ou nada”, isto é, como se da sua publicação só se pudesse esperar a imediata e inerente implementação do que ela preconiza. Diz-se que “a realidade não muda por decreto”, mas assistimos a muitas intervenções e críticas que se focalizam no fosso que existe entre o que diz a lei e uma dada perceção da realidade. Encaramos a legislação como um meio para criar algo que não existe e que terá sempre de ser implementado de forma progressiva. Parece-nos assim, que, avaliar a lei passado um ano da sua publicação, mencionando só o que falta ou não existe, é uma avaliação pobre como pobres são aqueles exames que são feitos só para saber o que os alunos não sabem. Defendemos que a avaliação do caminho percorrido deve levar em conta todo o impacto percebido e relatado por diferentes intervenientes. Esperamos que o Ministério da Educação possa fazer a sua parte nesta avaliação, produzindo um relatório sobre este primeiro ano, o que será certamente possível com base no conhecimento da IGEC e que se encontra previsto no próprio diploma legal.
Constatamos que a apropriação de conceitos – como de inclusão, diferenciação, responsabilidade da escola em educar todos os alunos, etc. – se encontra muito disseminada nas escolas. Muitos conceitos que antes estavam restritos à “Educação Especial” ou aos “Professores de Educação Especial” começam a ser manipulados e apropriados por todos os professores. Esta afirmação não significa que esta apropriação seja homogénea e disseminada: encontramos ainda conceções que tenderiam para manter uma escola especial coexistindo com uma escola regular. Mas gostaríamos de salientar que existe um caminho feito e que as comunidades escolares e sobretudo os professores se mostraram muito recetivos aos valores que sustentam a legislação.
Persistem dificuldades evidentes em levar ao quotidiano da escola, à “sala de aula”, os valores que a legislação preconiza. Estas dificuldades são de vária ordem, mas, na opinião da Pró-Inclusão, a principal dificuldade tem-se situado na implementação das medidas universais. Nestas medidas repousa em grande parte o sucesso da inclusão porque elas são aplicadas por todos os professores e aquilatam o grau em que a escola se consegue mobilizar para responder às necessidades dades educativas de todos os seus alunos.
Se existir uma fraca aplicação das medidas universais é muito mais provável que as medidas seletivas e as medidas adicionais sejam hipertrofiadas e vistas como as medidas “inevitáveis” e óbvias cada vez que os alunos evidenciam dificuldades no seu percurso. Pensamos que as medidas universais devem ser planeadas, implementadas e acompanhadas pelas estruturas da escola que têm uma maior responsabilidade na gestão do currículo, a saber: o Conselho Pedagógico, o Conselho de Turma, os Grupos Disciplinares (identificando o que podem ser “medidas universais” no âmbito de cada grupo disciplinar) e as Equipas Multidisciplinares de Apoio à Educação Inclusiva (EMAEI). É igualmente no âmbito das medidas universais que se pode melhor afirmar a autonomia da escola e a autonomia profissional dos professores. Esta importância das medidas universais deveria, no futuro, ser mais considerada e valorizada em termos de formação em serviço, de apoio específico e provisão de recursos às escolas. É necessário combater a ideia de que as medidas universais são “o que já se faz” e difundir a ideia de que é nas medidas universais que se deve centrar o maior esforço de inclusão das escolas.
De salientar a importância da interdependência e complementaridade entre os Decretos-Lei n.º 54 e n.º 55, nomeadamente no que se refere à mobilização das medidas universais, de modo a poder assegurar-se um ensino de qualidade e uma reposta adequada à diversidade de alunos.
O papel das EMAEI foi também objeto da nossa análise. As EMAEI são certamente uma estrutura de importância central e imprescindível para o desenvolvimento de práticas inclusivas na escola. Quaisquer dificuldades no seu funcionamento repercutem-se em todas as práticas subsequentes. Encontram-se ainda EMAEI que não se apropriaram de toda a gama de competências que deveriam exercer. E aqui encontramos limitações concretas que têm de ser atalhadas. São de realçar 3 limitações: (1) o tempo dado (em muitos agrupamentos o tempo alocado às equipas é restrito – por vezes até inexistente); (2) temos depois a disponibilidade, uma vez que em muitos agrupamentos os horários dos membros das EMAEI não foram planeados de forma a que a equipa se possa reunir com a frequência e a duração necessárias; (3) finalmente, a formação dos elementos das Equipas é, em muitos casos, deficitária e seria muito importante que fosse melhorada. A configuração das Equipas na legislação confere-lhe um papel de primeira grandeza em todo o processo e, por este motivo, deveriam ser tomadas medidas que lhes permitissem desempenhar melhor o seu papel. Seria certamente útil alertar os Agrupamentos para que o trabalho e as funções das Equipas fossem incluídos no Regulamento Interno, dado que muitas vezes estas Equipas são ainda vistas como algo de “novo”, de “estranho” à escola. Parece necessário contribuir para a legitimação das EMAEI como estrutura central de toda a escola. Avançamos com 3 medidas: (1) que existam horas letivas destinadas ao trabalho na EMAEI para cada um dos seus integrantes; (2) que exista um horário semanal de reunião da equipa e (3) que seja providenciada formação específica para os seus elementos.
Os Centros de Apoio à Aprendizagem (CAA) têm-se instituído com alguns problemas de percurso. Encontramos situações em que se fez uma transposição simples das “unidades” para CAA. Não é, certamente, esta a leitura correta do que a legislação pretende instituir como um espaço de competência na escola, para atender os alunos que apresentam dificuldades. Seria muito importante que os CAA fossem integrados na organização da escola e, mais importante ainda, seria que os CAA se apresentassem à escola como um conjunto alargado de competências e recursos e que estes recursos e competências fossem mapeadas em cada agrupamento de escolas. Consideramos útil a existência em cada agrupamento de um documento sobre as funções e o funcionamento dos CAA que deveria ser bem conhecido e usado de forma flexível nas escolas.
As lideranças das escolas foram identificadas como fatores muito importantes, e até em muitos casos decisivos, para o desenvolvimento da Educação Inclusiva. Neste processo, encontram-se ainda lideranças (que pensamos serem cada vez menos frequentes) que valorizam a Educação Inclusiva como sendo só para alguns alunos. O grande desafio que tem vindo a ser, felizmente, seguido em muitas escolas é o de pensar a escola e os seus atores como uma comunidade de aprendizagem sem a premência de categorizar os alunos, mas antes procurando situar os apoios necessários em contexto de toda a escola. Recomendaríamos que fosse melhorada a formação e o acompanhamento das lideranças para a Inclusão. Na verdade, não basta ser líder para conhecer e optar pelas soluções mais adequadas para desenvolver uma Educação Inclusiva. No capítulo da formação e acompanhamento sugerimos que esta formação tenha como base uma troca de experiências entre líderes com distintas experiências.
É fundamental discutir como o uso da autonomia das escolas pode conduzir à criação de modelos organizativos que melhor correspondam a uma gestão que aproxime mais a escola da Inclusão. Paralelemente, as lideranças devem fomentar/assegurar a implementação de um ajustamento e alinhamento dos documentos orientadores, entre os quais: Projetos Educativos e Regulamentos Internos dos Agrupamentos, com o novo quadro normativo, nomeadamente com os Dec-Lei n.º 54 e n.º 55.
A formação em serviço sempre foi considerada por nós como um elemento prioritário de melhoria das práticas inclusivas. Apesar de tantos Centros de Formação e outras estruturas organizarem formação especializada sobre Inclusão (a título de exemplo, o Centro de Formação da Pró – Inclusão esgotou a sua capacidade em formações de Norte a Sul do país), a formação continua a ser avaliada como insuficiente. Esta insuficiência prende-se muitas vezes com os modelos dos cursos – de curta duração e de carater genérico – e com uma oferta muito inferior às necessidades ou à população a abranger. Sentiu-se a falta de financiamentos que pudessem sustentar um programa nacional, generalizado, ambicioso e articulado, de formação em serviço.
A Pró-Inclusão tinha já alertado, aquando da publicação desta lei, que, apesar da sua publicação “em cima” das férias, em 2018, o seu sucesso estaria dependente de uma política forte de formação de líderes, de professores, de assistentes operacionais, etc. Pensamos que este é um ponto em que não existem muitas dúvidas sobre a necessidade de melhoria.
Pensamos que a formação em serviço que incidisse sobre competências educacionais e de aprendizagem “transversais” a todos os grupos disciplinares deveria ser considerada na dimensão científico-pedagógica. Através da formação é possível também disseminar a ideia que o tema da Inclusão é transversal a toda a Escola e pode mesmo encorajar a cooperação entre diferentes professores e áreas disciplinares.
A questão dos recursos é – juntamente com a formação – o argumento mais evocado para o bom sucesso dos esforços inclusivos. Conhecendo todos os Argumentos sobre o inevitável carater de processo das reformas e conhecendo ainda o muito que já foi feito, cabe constatar que precisamos de ir muito mais além. Criar, em cada um dos mais de 800 Agrupamentos, uma estrutura inclusiva que possa responder a toda a diversidade dos alunos é um objetivo justo e correto, mas muito ambicioso. Se os recursos humanos, de equipamento e de formação faltarem de forma permanente, será muito difícil manter a crença nos benefícios da Inclusão. Muito já foi feito (não esqueçamos por exemplo o número de professores de Educação Especial nas Escolas), mas muito mais precisa de ser realizado. Avançamos como sugestão, entre outras, três áreas de melhoria: a) financiamento de recursos técnicos para as Escolas (incluindo os CRI); b) aumento do crédito horário das Escolas para responder à diversidade; c) contratação de docentes que possam aumentar as oportunidades de promoção do sucesso escolar e a diversidade curricular na Escola, cujas funções incidam essencialmente na vertente pedagógica, em detrimento da burocrática, encontrando-se assegurados tempos específicos para reuniões de articulação/reflexão necessárias ao planeamento e avaliação da sua intervenção com os mais diversos alunos.
Adicionalmente, sugere-se revisão e/ou aumento do rácio de contratação de Assistentes Operacionais nas Escolas, prevendo, no âmbito das suas funções e de acordo com o perfil adequado, o acompanhamento de alunos com adaptações curriculares significativas.
Cabe ainda repensar como é que a grande competência instalada nas escolas oriunda dos professores de Educação Especial pode ser melhor usada e rentabilizada a favor da inclusão não só de alunos com deficiências, mas de todos os alunos que podem encontrar barreiras no seu processo educativo e de aprendizagem.
O Dec-Lei n.º 54/2018 implica certamente uma nova visão sobre os valores e as práticas da Escola. Sem uma inovação nas formas como a Escola tem ensinado e educado, não é certamente possível educar todos os alunos, com todos os alunos. Daqui que precisamos de motivar as Escolas para: a) entender que a Inclusão começa na prevenção e não na remediação; b) a importância de um modelo de avaliação que não deite a perder o que se fez e ainda que não desencoraje as possibilidades de inovação e diferenciação no processo educativo; c) desenvolver práticas de sustentabilidade de procedimentos, permitindo acumular experiência e reflexão sobre práticas inclusivas na escola.
Tem sido repetidamente enunciada a necessidade de repensar a utilidade das escolas de referência para alunos cegos, dado que, tanto professores como famílias, as têm vindo a associar a geradoras de exclusão. Não parece prudente nem correto pensar em respostas organizativas semelhantes para alunos cegos e alunos surdos.
A reforma inclusiva alicerça-se sobre valores e práticas do sistema educativo que contextualizam e dão mais ou menos força e sentido aos esforços que se fazem numa determinada área setorial. Gostaríamos de reforçar a importância de valorizar a profissão docente. Parece-nos inquestionável que devido a uma multiplicidade de fatores, a profissão docente tem vindo a ser diminuída na sua confiança, na sua autonomia e na sua motivação. Pensamos que as políticas públicas não podem encarar este facto como uma inevitabilidade, mas antes um campo urgente de melhoria. A carreira e a avaliação dos professores devem ser reconceptualizadas, de forma a motivar os professores que estão no sistema e a motivar pessoas para abraçar esta carreira. Cabe enunciar, ao nível destes aspetos mais “macro” que, muitas vezes, a gestão das Escolas carece de colegialidade e isso é um obstáculo adicional à Inclusão.
Referimos ainda que não temos evidência de que os “mega agrupamentos” sejam uma resposta mais amigável para a Inclusão. Parece-nos até o contrário, atendendo aos inúmeros casos de sucesso que se verificam em ambientes que favorecem mais a interatividade e a relação. Na verdade, a autonomia profissional dos professores é essencial para que se possa praticar um currículo ativo, significativo, personalizado e adequado às necessidades de todos os alunos. Neste aspeto sentimos a urgência de valorizar a carreira docente e de desenvolver a colegialidade, a colaboração e a cooperação nas Escolas e pensamos que as políticas públicas têm um papel muito importante neste aspeto. Talvez fosse esta a oportunidade para repensar a carreira docente.
Este é um “olhar pelo caminho” que fazemos para que as nossas Escolas sejam cada vez mais um lugar de justiça social e de equidade. A Inclusão é um elemento essencial para a humanização do sistema educativo que, à semelhança do que se verificou há pouco tempo com o sistema de saúde, necessita de um investimento para a sua humanização, isto é, no respeito dos Direitos Humanos de todos os intervenientes no processo.
Inclusão, como temos dito muitas vezes, não é só colocar todos os alunos na Escola, é, sobretudo, o que a Escola faz para que, das diferenças entre os alunos, não se gere ou se alimente a desigualdade. E a luta contra a desigualdade é certamente o cerne de todos os esforços que temos de fazer para que a Escola seja a experiência mais precoce e mais decisiva para a construção de uma sociedade humana e inclusiva.
Lisboa, 15 de junho de 2019
A Direção da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial
Fonte: Newsletter, JUNHO 2019, n.º 123, Especial CONGRESSO, Pró-Inclusão, Associação Nacional de Docentes de Educação Especial