Isadora Pereira faz questão de salientar que não é a mesma coisa ficar mais um ano na pré ou ficar retido no 1.º ciclo. “Muitas vezes ouvimos os pais dizer que se for preciso repete depois o 2.º ano em vez de repetir a pré. Mas já não é a mesma coisa. Repetir o 2.º ano é mais um período em que está ali, é uma retenção. Repetir a pré é ter mais um ano para brincar, para ter tempo para aquilo que naquele momento a criança ainda precisa”, argumenta.
Em Portugal, a lei não permite que um aluno fique retido no 1.º ano do 1.º ciclo, mesmo que não tenha feito as aprendizagens necessárias. Só pode ficar retido se tiver excedido o limite de faltas. Se as aprendizagens não forem feitas, é o 2.º ano que terá de ser repetido, quando a criança já tem uma noção muito maior do que está a acontecer.
“Obrigá-lo a ir para o 1.º ano, não estando preparado, é estar a obrigá-lo a exigências para as quais ele não está capaz e que vão fazer com que ele sinta que não é capaz, que não sabe, que não consegue, que não está à altura, que não acompanha os outros. Vai ter um efeito muito pernicioso e pode até criar uma aversão aos estudos. Pode ficar com um carimbo a acompanhá-lo durante o resto do percurso académico”, diz a pedopsiquiatra, ressalvando que nada é taxativo ou é passível de generalização. Quando na dúvida, diz, mais vale ficar no pré-escolar a brincar.
Encerrado o capítulo da perda de um ano no percurso académico, abre-se um novo que é a questão de as crianças deixarem de estar no mesmo grupo de amigos.
“Depois de perder um ano, há muito esta ideia entre os pais de que os filhos perdem os amigos”, diz Helena Gonçalves que desvaloriza esta questão. Mais importante é perceber que as crianças estão a brincar cada vez menos, algo que se agrava no 1.º Ciclo, e que essa falta de movimento livre vai depois ter repercussões em termos de desenvolvimento.
“Estamos a sobrevalorizar a aprendizagem formal e até há pré-escolas que valorizam isso — começam logo a ensinar a escrever e a fazer as letras, às vezes até por imposição dos pais que se queixam que o filho ainda não sabe escrever. O pré-escolar não devia ser isso, deveria ser para trabalhar os pré requisitos para a aprendizagem. Dar mais um ano de brincadeira ao nosso filho é o melhor presente que lhe podemos dar”, defende a terapeuta.
A questão da separação dos amigos também não é vista como fundamental por Isadora Pereira, embora reconheça que para algumas crianças possa ser importante seguir o seu grupo de pares. A ressalva é sempre a mesma: tem de estar preparada para as aprendizagens que aí vêm. Caso contrário, não deve ser o peso das amizades a fazer virar a balança.
Mas há um outro fator, silencioso e de que os pais não falam, que acaba por ter mais peso na sua decisão do que qualquer medo: a pressão social. É essa a convicção de Júlia Vale que volta a lembrar a história passada em Braga quando a sua filha tinha três anos.
“Quando a minha filha estava no jardim de infância, havia duas crianças condicionais. Depois de ouvirem os psicólogos, os pais disseram que não os iam matricular. Mas depois chegaram a casa, alguém lhes perguntou se o seu filho era mais burro do que os outros, e esqueceram imediatamente as recomendações. E a verdade é que aqueles dois meninos chegaram ao 2.º ano e não conseguiram acompanhar os outros”, recorda Júlia Vale.
Essa pressão social também está presente no discurso de Isadora Pereira. “Vemos meninos que não estão prontos, que ainda precisam muito de brincar, que não conseguem estar sentados numa mesa a aprender coisas que ainda não lhes dizem muito. Em termos de desenvolvimento psicoafetivo, eles ainda não estão nessa fase. Nós sugerimos que possam ficar mais um ano na pré, mas há uma pressão — que nem é só familiar, é quase social — que leva os pais a seguir outro caminho. Em setembro, há todo este entusiasmo com a entrada na escola, e os pais preferem dizer às outras pessoas que o seu filho já está no primeiro ano, em vez de dizer que ficou retido.”
Se tiver dúvidas, a melhor ajuda é falar com a educadora
Quando Júlia Vale esteve colocada nos Açores, em São Miguel, foi personagem numa outra história e acabou por influenciar o final feliz. Pelas suas mãos passou um menino extremamente condicional, como diz a sorrir, porque fazia anos a 31 de dezembro, o último dia previsto na lei para que crianças com 5 anos possam entrar no ensino obrigatório.
“Ele era de uma família muito carenciada, e não era só a carência financeira, eram muitos filhos e viviam numa casa que mais parecia um curral. Fui falar com os pais, mas fui eu a casa deles. E disse-lhes que considerava que o melhor para ele era ficar na pré, não acompanhar o grosso do grupo que ia para o 1.º ciclo. Acreditava que essa transição só lhe iria trazer prejuízo”, relembra a educadora.
Ao longo de um ano, recorda, a criança evoluiu bastante. No final do ano conseguia desenhar uma casa com todos os pormenores, até com os cortinados na janela, ele que no início do ano, com 4 anos, só fazia riscos. Mas isso não chegava. “Havia uma evolução tremenda, e aquela criança só tinha a ganhar em ficar mais um ano no jardim de infância, continuando aquele investimento.”
Anos mais tarde, Júlia Vale reencontrou o seu pupilo. “É um jovem perfeitamente integrado socialmente, fala bastante quando na altura não abria a boca. Se tivesse ido para o 1.º ciclo, teria sido sempre a perder. Mas aqueles pais, que não tinham habilitações escolares praticamente nenhumas, confiaram em mim, aceitaram a minha opinião e ele teve um percurso normal.”
Falar com a educadora pode parecer um primeiro passo muito básico, mas é o que Isadora Pereira recomendaria a qualquer pai que entrasse no seu gabinete de pedopsiquiatria. “É a pessoa que está com eles, que vê como eles evoluíram durante um ano, que vê o nível de adaptação desse menino. Se os pais tiverem dúvidas, podem também pedir o conselho de um médico, de um pedopsiquiatra, de um pediatra do desenvolvimento. A ideia que tenho é que quando há dúvidas, elas já foram surgindo durante o ano e mais vale ter uma visão conservadora e esperar. Quando a criança não está preparada vai-se notando e percebendo.”
Por muitas opiniões que se ouça, a decisão final é sempre dos pais, que são soberanos na educação dos seus filhos. E embora nem sempre as relações entre pais e professores sejam simples, Júlia Vale insiste que deve haver sempre um diálogo com a educadora: “Os pais devem questionar todas as opções, mas a educadora terá elementos suficientes para explicar aos pais o porquê daquele caminho ser melhor para o seu filho.”
“Se a criança não sabe andar e começar logo a correr vai dar mais trambolhões”, diz Manuel Micaelo, que acredita que a pessoa que melhor consegue prever se o aluno vai cair ou não é quem o acompanha diariamente no pré-escolar.
“Acho que é conveniente os encarregados de educação falarem bem com as educadoras, que são quem melhor conhece os seus filhos e quem melhor os pode aconselhar neste ramo. As coisas começam por aí. As crianças têm pessoas que os conhecem tão bem quanto os pais e é conveniente haver comunicação para, em conjunto, decidirem o que é melhor para a criança. Recomendo o diálogo. Se os pais confiam na educadora é conveniente pedirem a opinião de quem mais tempo passa com as crianças na altura de tomar uma decisão que é fulcral”, sublinha o professor.
Ana Teresa Brito lembra que há uma linguagem do desenvolvimento que todos os educadores devem saber falar e que é assim que se consegue perceber se a criança está pronta ou não para seguir para a etapa seguinte. Acima de tudo passa por saber ouvir a criança.
“No seu último ano connosco, o T. Berry Brazelton escreveu o livro ‘Learning to Listen’. Essa é a grande mais valia de falarmos fluentemente a linguagem do desenvolvimento — todos os educadores a devem falar — e de perceber o que está a acontecer em cada etapa do desenvolvimento, em cada um dos touch points. Simultaneamente temos de perceber muito bem quem é aquela criança. Sabemos que as funções cognitivas superiores estão prontas por volta da idade definida internacionalmente para a criança poder entrar para a escola (6/7 anos), mas também há a questão da singularidade de cada um e do que o caracteriza.”
E quem melhor do que os pais e a educadora que passa os dias com a criança para perceberem essa singularidade?
Os sinais de alerta de que o seu filho precisa de mais tempo
Quando se olha para o ser único que é uma criança, os sinais de alerta de que ela não está pronta para subir o degrau seguinte são evidentes, embora nem sempre os pais os vejam. Isadora Pereira lembra que, quando há problemas, eles não surgem de um dia para o outro e vão-se notando na criança. As questões emocionais são muito importantes e embora nenhum especialista lhe diga que este ou aquele fator é mais importante, há sinais mais fáceis de ver. Um deles é a linguagem.
“A fala é fundamental por causa da leitura. Tratando-se de uma criança condicional que ainda por cima tem essa agravante, não faz sentido seguir em frente antes de resolvê-la”, defende Júlia Vale. A educadora faz, no entanto, uma diferenciação entre existir um problema por falta de estimulação em casa e crianças que têm problemas específicos e que precisam de terapia da fala. E isso, diz, deteta-se no jardim de infância por uma educadora atenta. Pode até ser resolvido dentro do agrupamento escolar se ele tiver os recursos humanos necessários. “Quando há recursos para responder às necessidades das crianças elas conseguem ultrapassar as suas debilidades”, defende a educadora.
Ana Teresa Brito concorda: “A linguagem é fundamental para a aprendizagem da escrita. A linguagem começa muito cedo — diz-nos a investigação — e uma criança com três anos, consoante o ambiente que a envolve, pode entrar na escola com menos um terço, dois terços da linguagem influenciado apenas pelo tipo de família.”
“Fico de coração partido de pensar que mesmo em Portugal temos muitas crianças no limiar da pobreza e que isso lhes traz muito menos oportunidades desde que nascem”, continua a doutorada em Estudos da Criança. “A linguagem é a capacidade de conversar com um bebé, de lhe ler uma história. A partir dos primeiros meses de vida da criança fazemos isso, a linguagem desenvolve-se através deste contexto que está à sua volta. Esta capacidade que a criança tem de se expressar é uma literacia emergente e que acontece naturalmente: primeiro começa-se por dar nome às coisas, depois percebe-se que existem as palavras escritas e que há todo o mundo para descobrir nelas, quando aprendemos a ler.”
Passando à frente da escrita, há dois aspetos fundamentais para determinar se há perigo ou não de pular a etapa, na opinião do pediatra Hugo Gonçalves: a capacidade cognitiva — a aquisição do conhecimento através da perceção, atenção, associação, memória, raciocínio, juízo, imaginação, pensamento e linguagem — e a maturidade da criança.
“A capacidade cognitiva da criança pode ser avaliada de forma objetiva recorrendo a testes específicos para fazer essa avaliação. Na maior parte das vezes, essa capacidade não é um problema, pois a maior parte das crianças está preparada sob esse aspeto. O segundo é a maturidade da criança. Este é o ponto mais problemático, mas talvez o mais importante, porque não se consegue avaliar de forma muito objetiva. Precisa da opinião dos pais, dos educadores e de quem lida com a criança e não existem propriamente testes padronizados para fazer esse tipo de avaliação. Por esse motivo, trata-se de uma análise muito mais subjetiva e que pode originar opiniões diferentes”, defende Hugo Rodrigues.
No seu consultório, Helena Gonçalves faz sempre as mesmas perguntas aos pais. “Há pré-requisitos para ir para o 1.º ciclo em termos emocionais que muitas vezes os miúdos não têm. Ao falar com os pais tento perceber qual é o limiar da frustração da criança, como é a socialização, o saber estar na sala e no recreio, como lida com a frustração de não saber.”
Para além disso, sublinha a terapeuta, estar perante uma criança que não tem interesse absolutamente nenhum pelas letras, por querer aprender ou descobrir o mundo são sinais de alerta. “E têm de ser capazes de manter-se na tarefa, de manter a atenção — são solicitados períodos longos de atenção durante o 1.º ano e, infelizmente, em situação de imobilidade. Umas das sugestões que faço é sentarem os miúdos em bolas e terem outras formas de trabalhar que não seja sentados.”
Helena Gonçalves volta a dar o exemplo dos seus dois filhos. “Não há duas crianças iguais, às vezes até os irmãos, criados da mesma maneira são tão diferentes… O meu filho com 5 anos lia tudo e ainda hoje está zangado por não ter ido logo para a escola. Quando entrou com 6 anos era muito bom aluno, mas tinha uma imaturidade enorme que ainda hoje tem em termos sociais. A minha filha, que entrou com os 6 anos acabados de fazer em agosto, não estava nada preparada e não tinha interesse absolutamente nenhum.”
Se já tiver 6 anos, posso travar a entrada do meu filho na escola?
Em casos como o da filha de Helena Gonçalves não há nada a fazer, mesmo que os encarregados de educação acreditem que a criança teria a ganhar com mais um ano de pré. A lei obriga as crianças que fazem seis anos a entrar para o ensino obrigatório.
Há exceções, mas são complicadas.
“Essa é uma decisão que implica um pouco mais de ‘coragem’ por parte dos pais, porque aí sim, estamos a falar verdadeiramente de adiar a entrada para o Ensino Básico”, explica Hugo Rodrigues. “No entanto, acho que os pais devem sempre tentar tomar as melhores decisões para os filhos e, se for essa a opinião deles, dos educadores e, eventualmente, do pediatra ou psicólogo que avalie a criança, deve ser uma decisão a discutir com o agrupamento escolar. Mesmo sendo uma decisão difícil, não tenho dúvidas de que deve ser tomada, se for considerada a melhor opção para a criança.”
Ir para o primeiro ano com 7 anos é uma coisa que em Portugal só acontece quando há um pedido de adiamento feito ao Ministério da Educação, explica Isadora Pereira. “Isto só acontece com meninos de 6 anos que por alguma imaturidade ou por alguma deficiência comprovada medicamente, precisam de ficar mais um ano no pré-escolar a maturar para entrarem no 1.º ano mais consolidados.”
Os trâmites não são simples e seguem um longo caminho burocrático. “É uma solicitação feita pelos pais, mas tem de ter fundamento a nível psicopedagógico, ou seja, pode-se pedir o adiamento de matrícula. Mas tem de haver uma avaliação específica que fundamente isso e que integre a criança dentro do decreto lei 3/2008 — Lei da Educação Especial. É feito um plano educativo especial com o que terá de ser trabalhado no ano em que a criança vai ficar retida, aí sim fica mesmo retida porque a entrada no 1.º ciclo é obrigatória.”
Essa fundamentação é avaliada pelo Ministério de Educação, através da DGEstE — Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares, que valida o adiamento ou não.
“É um passo que vale a pena dar se for uma coisa profunda. Por exemplo, eu achava que a minha filha não estava preparada, mas ela não tinha dificuldades suficientes para fundamentar um processo destes. Ela não tinha interesse nenhum na escola e ainda hoje para ela é uma coisa mais social. A escola que nós temos não é aquela que ela precisava, mas não dava para fundamentar um adiamento. Tem de haver dificuldades, por exemplo, a nível de linguagem. Mesmo sem terem nenhuma deficiência, esse é um motivo que valida muitas vezes o adiamento, por ser muito importante em termos de aprendizagem”, explica Helena Gonçalves.
Perceber se a criança está pronta para entrar na escola aos 5, 6 ou 7 anos é fundamental para que o longo percurso académico tenha o mínimo de sobressaltos possíveis, mas não é uma decisão que possa ser copiada de exemplos que existam à nossa volta. E como Helena Gonçalves já explicou, a mesma decisão pode não servir dois irmãos.
Mónica Vasconcellos, neuropediatra, insiste na singularidade de cada um, não sendo possível encontrar, na sua opinião, uma resposta consensual para a pergunta: em termos de desenvolvimento infantil há uma idade ideal para ir para ensino obrigatório?
“Todas as crianças são diferentes, em relação ao seu ritmo de crescimento e desenvolvimento cognitivo e emocional. A aprendizagem na infância apresenta particularidades, relacionadas com a neuroplasticidade e maturação neurológica. À medida que a criança amadurece, áreas e funções percetivas e motoras tornam-se mais funcionais e capacitadas para aprender”, explica a neuropediatra. E lembra que a legislação portuguesa refere que a matrícula no 1.º ano é apenas obrigatória para crianças com 6 anos completos a 15 de setembro.
“A entrada com 5 anos só deve ser requerida em situações excecionais, porque vários estudos mostram que a criança só está preparada, do ponto de vista cognitivo, emocional e comportamental, a partir dos 6 anos. Alguns estudos até vão mais longe e mostram que a maturação neurológica ideal para iniciar as aprendizagens formais seria aos 7 anos de idade”, conclui Mónica Vasconcellos.
Brincar não é perder tempo, é aprender
Antes de começar o ensino formal, os anos do pré-escolar devem ser dedicados à brincadeira. Brincar não é perder tempo e é também a principal forma que as crianças têm de aprender. Por isso, quando os especialistas defendem que um aluno condicional deve esperar pelos 6 anos e ficar mais um ano a brincar, estão também a defender que ele faça certas aprendizagens fundamentais, mas sem estarem submetidas às regras mais conservadoras da sala de aulas.
“Na Finlândia, por exemplo, brincar faz parte do sistema de ensino e as crianças só aprendem a ler quando entram para a escola aos 7 anos”, argumenta a neuropediatra Mónica Vasconcellos.
“O brincar é fundamental para o desenvolvimento psicomotor da criança e a brincar também se aprende. É importante para desenvolver competências sociais, para tentar planear estratégias e solucionar problemas, para saber lidar com a frustração e com a adversidade e estimula a capacidade de imaginação”, diz, concluindo que brincar é exploração, adaptação e aprendizagem.
“Até os leõezinhos aprendem a brincar como vão caçar mais tarde”, acrescenta a psiquiatra da infância e adolescência Isadora Pereira. “O brincar é o aprender das crianças. É a misturar água com terra que percebem que o que fica não é bem água nem terra, já é uma coisa diferente, uma lama. No brincar está a curiosidade que é o motor para a aprendizagem. É o querer saber, é o querer descobrir.A brincadeira é isso, não é uma aprendizagem formal, mas é a primeira”, diz Isadora Pereira.
Voltando a falar dos condicionais, dos que são ainda muito imaturos para a entrada no 1.º ciclo, a pedopsiquiatra lembra que exigir a uma criança estar sentada durante uma hora a ouvir um professor pode ser muito difícil para quem não está preparado. “Há meninos que vemos que ainda têm muita energia, que ainda têm muito para aprender a brincar, precisam de correr, de explorar. Vai ser um suplício pô-los nessa posição, de ter de estar ali, cingido àquele lugar, atento. E vão eventualmente desenvolver uma aversão a essa situação”, argumenta.
E a brincar pode aprender-se todos os dias. Na praia, uma criança de 5 anos pergunta à mãe se pode ir buscar água molhada. Em vez de corrigi-la, a mãe pergunta-lhe onde vai ela buscar a água seca. A criança pensa e acaba por responder que água seca não existe. Isso é aprender, diz Júlia Vale.
“Às vezes os alunos dão-me o casaco e dizem-me ‘professora, pendura-me’. Eu pego neles aos colo para pendurá-los no cabide. Eles riem e percebem a diferença de pedir para pendurar o casaco. Aprender a brincar é isto. Se o miúdo quiser pôr a mesa, o pai deve deixar. E vai-lhe dizendo, o garfo fica do lado esquerdo, a faca do direito. É uma lição de lateralidade. Na rua, a mãe diz-lhe para não ir do lado direito por causa dos carros. Dizer salta o muro, agora vai para cima, agora vai para baixo, sobe, desce serve para aprender conceitos. O dia a dia tem imensas situações de aprendizagem se o adulto estiver atento e disponível para essas aprendizagens”, sublinha Júlia Vale.
A educadora de infância ressalva que até a parte de brincar na casinha das bonecas é uma aprendizagem, em que se reproduz socialmente o dia a dia, em que as crianças fingem que cozinham e tratam dos seus bebés.
“O faz de conta estimula, é um jogo simbólico. Ora o que é a matemática se não a simbolização? O que é a interpretação de um texto ou de um poema se não a simbolização? Tudo tem a sua raiz nestas formas iniciais de aprendizagem. Há uma expressão do João dos Santos, o que foi o primeiro pedopsiquiatra português, que diz mais ou menos isto — ‘é a ler o mundo que eu aprendo a ler’. A brincadeira é importante para tudo. Os pais não querem autómatos, não é?”, interroga Isadora Pereira, defendendo que com as aprendizagens formais ficamos apenas executores.
“Posso ser um brilhante executor, mas toda a outra parte afetiva e de socialização e de desenrasque — de procurar soluções fora da caixa — tudo fica para trás”, argumenta.
Explicar aos pais que brincar não é uma perda de tempo nem sempre é fácil, mas é importante que os encarregados de educação percebam que quando as crianças chegam a casa ganham mais em ir brincar do que voltar a sentar-se a uma mesa para fazer os trabalhos de casa.
“Seria tão mais interessante chegar a casa e brincar em vez de estar a fazer trabalhos de casa. Sou uma pessoa de fé, tenho esperança que a flexibilização curricular, que está a começar este ano com um projeto piloto, possa criar novos modelos. Temos de parar de aumentar o tempo que os miúdos estão na escola. Alguns deles passam mais de 12 horas na escola e ainda levam trabalhos para casa. É horrível. Já começa a haver alguma atenção por parte de algumas escolas privadas para esta questão dos trabalhos, mas os pais também devem refilar. Eu fiz a minha quota parte de chatear toda a gente. Os pais têm de ter noção que têm este poder de reivindicar”, defende a terapeuta familiar Helena Gonçalves.
Lembra um professor da sua filha que arranjou uma estratégia de ensinar matemática aos alunos enquanto jogavam futebol. Faziam números, somas e subtrações enquanto davam pontapés na bola e Helena Gonçalves acredita que isso funcionou melhor do que estar na sala de aula a debitar informação.
“A brincadeira tem algo completamente mágico que é o não ter objetivo, não ter uma finalidade”, sublinha Ana Teresa Brito, da Fundação Brazelton/Gomes Pedro. “Ela flui nas crianças e elas vão usufruindo dessa brincadeira na sua forma mais plena. Quando observamos uma criança a brincar e a vemos envolvida — que é uma das questões mais fundamentais da aprendizagem, a capacidade de atenção, de regulação, de persistência — a mobilização que ela tem é total.”
As crianças brincam desde que nascem, diz, e assim vão aprendendo. “O bebé brinca primeiro com o seu corpo, depois com o dos pais, depois com os objetos, e se olharmos com atenção vemos o que ele está a ganhar a partir dessa brincadeira a cada momento. Se conseguirmos observar esse envolvimento, percebemos que no fundo é uma paixão por descobrir a vida, a si próprio, e do ponto de vista da aprendizagem é o motor maior, querer saber, saber mais, encontrar significado no que se faz, é aí que encontramos a fundação para depois, noutros níveis de ensino, podermos ser mais exigente a níveis abstratos, mais duros, menos intuitivos. O Brazelton tem um princípio extraordinário: usar o comportamento da criança como a sua linguagem. Ali, a brincar, está a dar e a receber. Com a televisão estão muito atraídas, mas pouco envolvidas. A brincar temos ação sobre as coisas e depois, na idade escolar, essa brincadeira transforma-se em jogo, em jogo social com os pares.”
A Ana Teresa Brito, doutorada em Estudos da Criança, pedimos um último conselho para quem tem filhos condicionais. “Eventualmente diria, conte-me como é o seu filho. O que ele mais gosta de fazer, que interesse tem pelo que o rodeia, como é que ele é quando há necessidade de aprofundar um conhecimento, se gosta, se se motiva. Seria uma conversa muito interessante para ter e para poder sossegar os pais. Entrar um ano mais cedo não é necessariamente fazer com que a criança fique mais pronta para poder aprender e para poder ter sucesso naquilo que são as suas aprendizagens. Tendencialmente, diria: se a puder deixar brincar, deixe. Depois ouço-me a dizer isto e estou eu própria a admitir que esse gozo da brincadeira se perde a partir do 1.º ciclo e também penso porque é que isso tem de se perder.”
Júlia Vale também acredita que não é por ir a correr para o 1.º ano que as crianças terão um futuro brilhante à sua frente em termos académicos e nem acredita que esse deve ser o objetivo primordial dos pais.
“As pessoas deviam querer que os filhos fossem as melhores pessoas do mundo, não os melhores alunos. As melhores pessoas não se fazem com resultados escolares — também se fazem assim, claro — mas é essencialmente com a educação para a cidadania que se tornam melhores. Essa é a educação que vai fazer a diferença”, conclui.