quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Os concursos de professores: um ponto de ordem

Após um descalabro sem precedentes na fase final de colocação de professores para o presente ano letivo, o Governo ensaiou uma manobra despin mediático, com o apoio de alguma opinião publicada, para fazer crer que aquilo que foi, não foi ou foi outra coisa.


Centremos a análise nos factos objetivos e não na sua versão ficcionada.

Não existiu este ano qualquer concurso nacional, interno e externo, para colocação de professores. Na prática, não existe um concurso assim há quase uma década, pois o de 2009 excluiu os então “professores titulares” e o de 2013 foi um exercício no vazio que levou à vinculação, dita ”ordinária”, de dois professores. Mesmo nos tempos pré-informáticos, os concursos nacionais decorreram de forma “centralizada” sem problemas de maior, apesar de envolverem dezenas de milhares de professores. A exceção foi o ano de 2004, quando se verificou um erro efetivamente informático no tratamento dos dados.

O que tem existido todos os anos são concursos parciais, de mobilidade interna por ausência de componente letiva (vulgo “horários-zero”) ou por condições específicas (vulgo, por razões de saúde), de contratação inicial e de contratação de escola para provimento de necessidades tidas como temporárias. Todos eles decorreram de forma mais ou menos normal, com este ou aquele percalço, até ao momento em que a narrativa da “autonomia das escolas” e da necessidade de adaptar o perfil dos professores contratados aos tipos de escola em que existiam vagas por preencher, em particular as integradas em Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP) e agora também as que assinaram “contratos de autonomia”.

E foi então que o atual MEC decidiu “descentralizar” a fase de contratação de professores para essas escolas, e a partir de Janeiro para todas as escolas em que surgissem horários por preencher pelos mais naturais motivos (doença, aposentação, maternidade), e colocar em prática o método da “oferta de escola” em que as respetivas direções abriam concursos com requisitos específicos a cumprir pelos candidatos, para além da graduação profissional. E foi assim que durante um par de anos se assistiu ao mais despudorado exercício da “autonomia” com concursos feitos à medida e critérios definidos para excluir todos aqueles que não o(a) desejado(a). A uma escala nunca vista, assistimos à total perversão do que deve ser um concurso para o provimento de um lugar público.

Perante isso, para 2014-15, o MEC ensaiou uma nova solução, que foi a de centralizar a definição de um leque de critérios adicionais correspondentes a uma avaliação curricular, que contaria metade da classificação final do candidato, fazendo média com a graduação profissional. Cada escola escolhia os seus critérios para a avaliação curricular e comunicava as vagas a preencher. O erro da fórmula que tentava fazer uma média com valores absolutos numa parcela e relativos na outra é por demais conhecido e foi o primeiro erro de que a opinião pública se apercebeu.

Mas existem outros erros subjacentes a esta metodologia, quando a lógica do concurso central/local e a definição dos parâmetros informáticos estão desadequados em relação à realidade. Tivemos as duplas colocações de professores em diversas escolas e de dois professores na mesma vaga, assim como até já apareceram casos de professores colocados em mais de um horário na mesma escola.

Isto aconteceu porque o concurso foi “centralizado”, pesado, imenso, desajustado das circunstâncias?

Pelo contrário. Embora algumas luminárias considerem ser o “grau zero da inteligência”, os concursos nacionais, centralizados, com dezenas de milhares de professores, baseados na graduação profissional dos candidatos sempre decorreram com alguma normalidade e nunca atingiram este grau de disparate. Até porque a verificação dos dados dos candidatos era feita nas escolas, a priori, enquanto agora podem ser prestadas falsas declarações, que é quase impossível verificar a posteriori.

O que falhou nos últimos foram exatamente as tentativas para “descentralizar” uma fase do concurso, que está longe de ser aquela que envolve mais professores. E falhou por incompetência política e técnica, ao tentar satisfazer uma necessidade criada artificialmente – a da “flexibilização” dos concursos – e ao criar múltiplos subconcursos locais. Centrando o procedimento a partir da DGAE ou descentralizando-o para as escolas (leia-se “direções"), a solução produzirá sempre distorções, pois obrigará os candidatos a fazer múltiplas candidaturas e produzirá múltiplas listas ordenadas, com múltiplas colocações sobrepostas, que tornarão as colocações mais morosas, a menos que as direções sejam autorizadas a contratar quem bem entenderem, sem qualquer respeito pelas normas de uma contratação pública.

Mas voltemos ao essencial: o que se passou este ano não resulta de um concurso hipercentralizado, que alguns gostam de qualificar como “estalinista” ou “soviético”, em exercícios patéticos de traumática nostalgia. Pelo contrário, foi causado pela desregulação dos mecanismos de graduação dos candidatos e pela pulverização do concurso único em centenas ou mesmo milhares de concursos locais.

Com uma lista graduada ordenada, mesmo que contemplando bonificações para situações específicas (docência em escolas TEIP, com alunos NEE ou turmas de PCA ou PIEF, tudo previamente validado), em que os candidatos definem uma prioridade nas escolas a que concorrem e são retirados do concurso a partir do momento em que obtêm colocação, tudo decorrerá com verdadeira normalidade, desde que tudo seja feito a tempo.

Com “experimentalismos” anuais é que não, em especial quando feitos por quem não aparenta perceber do assunto, da equipa política aos quadros técnicos, todos a tentarem desculpar-se com a responsabilidade dos outros. Os “experimentalismos” dos últimos anos passaram pela desregulação e pelo esvaziamento dos concursos nacionais, através de vinculações “extraordinárias” e de “ofertas” e “bolsas de contratação” de escola. E passaram por erradas formas de compensar distorções nas notas académicas dos candidatos (resultantes de cursos de licenciatura e mesmo de mestrado) com distorções resultantes de uma “avaliação curricular” que se pode basear em dados falsos, porque o modelo retirou a sua prévia validação.

Podem tentar-nos fazer acreditar numa narrativa diferente, mas será sempre um exercício de ficção para encobrir uma realidade embaraçosa.

Paulo Guinote

Professor do 2.º ciclo do Ensino Básico

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