terça-feira, 21 de outubro de 2014

Rigor mortis

(...)
2. "A paz, o pão, a educação, não há liberdade a sério…", cantava Sérgio Godinho. Ora pois bem. Da paz e do pão, todos sabemos a sua importância, mas vamos à educação.

A sociedade portuguesa tardou muitíssimo em chegar à escola. Já a Espanha franquista tinha dez anos de escolaridade obrigatória para todos quando estávamos nós a criar os seis anos (quatro de escola primária mais o ciclo preparatório, eram assim as designações), pouco antes de Abril. Em 1986, a Lei de Bases do Sistema Educativo torna obrigatórios os nove anos de escolaridade e só no século XXI se alarga a escolaridade obrigatória para 12 anos (até ao final do ensino secundário, portanto).

3. Depois de Abril, demasiado devagar, com avanços e recuos, vai-se construindo a escola pública democrática. Ao primeiro ciclo, decisivo para as aprendizagens (direito fundamental para todos) associou-se, nos últimos 20 anos, uma rede nacional de educação pré-escolar. Começámos a lenta resolução de alguns fatalismos (os do insucesso escolar precoce, os da origem social, os da escola em que o professor fala e os alunos ouvem). As escolas obtiveram melhores condições de trabalho, os professores foram valorizados, criaram-se diversas respostas à exclusão, sabendo que, sem educação, a vida dos mais novos fica hipotecada. Para isso, para que todos aprendessem, era preciso mudar lógicas e práticas da escola tradicional, da competição, das meras aprendizagens formais. Avançou-se. Modestamente. A própria Educação de Adultos, no país do analfabetismo, esquecida no final dos anos 70, volta às políticas e às práticas, através da Agência Nacional de Educação e Formação, donde partem os centros de reconhecimento, validação e certificação de competências e, mais tarde, os CNO (Centros de Novas Oportunidades). O ensino superior e a ciência avançaram como nunca. E até as comparações internacionais que a direita tanto preza mostraram os avanços do país. Os portugueses procuraram e conseguiram mais e melhor educação. A Estratégia de Lisboa (União Europeia) apregoou a sociedade do conhecimento e até a economia do conhecimento.

4. E agora? E hoje? De tudo isto, pouco resta. A direita não gosta da escola democrática. À Educação para Todos opõe o “rigor” e a “exigência” como se estas estivessem alheias do desenvolvimento educativo. Trazem de volta a competição individual, os exames, o insucesso, transformam as pessoas em números. Fecham escolas, agrupam as crianças como se de aviários se tratasse. Desapareceu o debate sobre a Escola numa sociedade em mudança, desapareceu a inovação, a construção de novos modos de ensinar e de aprender. Falar de interdisciplinaridade é pecado. Gravíssimo. Voltou a escola punitiva e a exclusão. Voltaram os ataques aos professores e a desvalorização do seu estatuto. Destruíram a liberdade e trouxeram a miséria. E se isto foi possível, é porque não são só os partidos de direita a ter posições conservadoras e passadistas sobre a Escola. Não. Os comentadores que nos entram pela casa dentro são, na sua grande maioria, arautos do regresso ao passado. E o silêncio do PS tem sido quase total.

5. Em tempos de crise, em que a culpa nos é infligida todos os dias e a toda a hora, aceita-se, em quase total silêncio, a destruição da escola pública, do 1.º ciclo à educação e formação de adultos. Os pais, os professores, os alunos, os cidadãos, vencidos pela miséria dos discursos e das políticas, sem alternativas, já só querem que as escolas funcionem. Eis senão quando, no último ano de mandato, o arauto do “rigor”, o ministro que fez carreira como comentador contra a escola democrática, a voz da matemática que atacava tudo e todos, cria o caos nas escolas. Já veio o Presidente da República (com letra grande ou pequena no novo acordo ortográfico?) dizer que o que está mal é o modo como, em Portugal, se processa a colocação de professores. Eles têm sempre razão. O país é que está a mais, tudo o que foi feito nos últimos 40 anos foi mal feito. Então ou morremos nós, de morte lenta, como eles querem, ou temos que lhes dizer que o “rigor” vazio e populista do incompetente Nuno Crato se transformou em rigor mortis. O dele, não o nosso. Demita-se, em nome do rigor que tanto apregoou. Um pouco de dignidade tornaria a nossa miséria menos dolorosa.

Ana Benavente
Socióloga, professora universitária, ex-secretária de Estado da Educação

Sem comentários: