domingo, 19 de outubro de 2014

Neste jardim de infância há crianças de todo o mundo, mas a única cor que as distingue é a da sala em que estudam

Os pais de Ivana nasceram na Bulgária, os de Hommar na Guiné-Bissau, os de Esdras em Angola, os de Yasmin no Brasil, os de Rico na China e os de Ahanaf do Bangladesh. Mas aqui, numa das quatro turmas do Jardim de Infância da Pena, em Lisboa, “não há cores”. Ou melhor, até há, mas é só uma: “somos todos laranjas”, diz a educadora Ana, referindo-se à cor que dá nome à sua sala.

Nesta sala, a canção do bom dia é cantada em inglês e os visitantes são saudados em vários idiomas, incluindo português, inglês, francês, italiano, búlgaro, mandarim e urdu. “Já sabemos muitas línguas, não já?”, pergunta a educadora às crianças. Antes de regressarem ao trabalho, ainda há tempo para um afinadinho “namastê”, acompanhado por um unir de mãos.

Ahanaf tem quatro anos e está neste jardim-de-infância, na freguesia de Arroios, há um ano. Quando chegou era em inglês que falava, língua que ainda hoje é aquela a que os seus pais recorrem para tentar comunicar com a educadora, mas ao fim de uns meses já se expressava sem grandes dificuldades em português.

Com uns enormes olhos escuros, Ahanaf lê com facilidade o nome de todos os seus colegas e diz com evidente orgulho que também já sabe os números. Já Rico, cujos pais são chineses e apesar de estarem em Portugal há mais de uma década não falam a língua do país que os acolheu, ainda tem que fazer algum esforço na hora de encontrar a palavra certa para responder às perguntas que lhe fazem.

Esta diversidade que entra pelos olhos adentro a quem visita a Sala Laranja é, para a sua educadora, um gosto. “Enriquece-nos muito. Aprendemos muito sobre outras culturas”, diz Ana, lembrando festas em que as crianças e os seus pais apareceram vestidos com trajes tradicionais do seu país e levaram pratos típicos para partilhar.

Mas como em tudo, não há bela sem senão. “Cria muitas dificuldades”, reconhece a educadora, explicando que é na falta de conhecimento da língua portuguesa que reside muitas vezes o maior desafio. “No jardim-de-infância há áreas e competências que temos de atingir e nalguns casos eles não estão a perceber pevas do que estamos a dizer. Primeiro temos de ensinar o português”, diz, apressando-se a acrescentar que o esforço feito “vale pela conquista, quando se vê a evolução”. 

Sentado na mesa ao lado da da adulta da sala, Rico, envergonhado, mal tira os olhos da folha em que desenha uma maçã vermelha. A custo, entre uma fungadela e outra, lá diz que está “doente”, e só parece entusiasmar-se quando se lhe pede que mostre como se escreve o seu nome.

Por sugestão da educadora, o menino de cinco anos dirige-se depois ao parapeito de uma das janelas da sala, de onde traz dois peluches para mostrar: um boneco e uma boneca com roupas chinesas, que Ana decidiu trazer consigo quando foi adquirir o material escolar. Para o ano, a sua intenção é comprar brinquedos alusivos a um outro país, gesto que promete repetir em cada novo ano letivo. “É importante porque eles identificam-se”, explica.

Nas paredes da Sala Laranja há autorretratos das crianças, nos quais além do seu nome e idade está também escrito onde nasceram os seus pais. Junto à casinha, espaço de brincadeira eleito por boa parte das meninas, há um cabide com roupas para quem se quiser mascarar. E aqui, mais uma vez, a multiculturalidade de que é feito o Jardim-de- Infância da Pena está bem patente: lado a lado com um avental com um galo de Barcelos há dois trajes africanos, que foram oferecidos pelo pai de uma das alunas.

Numa das salas do lado, a Azul, são várias as crianças que já sabem contar até dez em inglês e em francês. Mas quando chega a hora de contar em flamengo só se ouve a voz de Mathias, de cinco anos. “O meu pai ensinou-me a falar em flamengo e a minha mãe em francês. O meu pai também fala inglês mas eu não sei”, explica o rapaz de caracóis louros, que nasceu em Portugal mas garante que tem muitos amigos na Bélgica, de onde veio o pai. 

Neste ano letivo, há 85 crianças, com idades entre os quatro e os seis anos, divididas entre as salas Laranja, Azul, Verde e Vermelha. Cerca de três quartos têm ascendência portuguesa, enquanto as restantes (várias das quais já nasceram no país), têm pais vindos de quatro continentes: Bulgária, Bélgica, Roménia, Espanha, Brasil, Estado Unidos da América, Guiné-Bissau, Senegal, Angola, São Tomé, Nepal, Índia, Bangladesh, China e Paquistão são alguns dos seus locais de origem. 

Tanto a educadora Ana como Margarida, que além de coordenar o jardim-de-infância tem a seu cargo a Sala Azul, reconhecem que a “desconfiança” dos pais estrangeiros é um obstáculo nem sempre fácil de ultrapassar. “Vêm ansiosos, com medo de não ser aceites”, nota Ana, acrescentando que os miúdos, mais fáceis de conquistar, acabam depois por funcionar muitas vezes como “elos de ligação” com a escola.

Sublinhando que esta é uma escola onde é também frequente a existência de crianças com necessidades educativas especiais, Margarida garante que aqui “ninguém é posto de parte” e que todos os dias se trabalha para “construir um mundo para todos”. “É preciso alguma sensibilidade e um bocadinho de bom-senso”, diz. Mesmo aqueles que chegam de pé atrás, resume a educadora, “acabam por receber a nossa cultura porque nós recebemos a deles”. 

Na Sala Vermelha, a educadora decidiu pendurar numa das paredes um mapa do mundo. Com a ajuda dos alunos, espalhou nele pequenos papéis brancos com o nome dos países aos quais têm uma ligação. Depois de no dia 5 de Outubro ter posto as crianças a desenhar e a pintar a bandeira de Portugal, o próximo projecto de Idália passa por lhes ensinar quais são as bandeiras dos locais, mais ou menos longínquos, que já assinalaram no mapa.

“Temos que valorizar a nossa cultura indo ao encontro das deles, de chegar às crianças com a nossa cultura sem os desenraizarmos. Senão não conseguimos chegar a eles”, justifica a educadora. Idália acrescenta que são as próprias crianças que o “solicitam”: “Eu vi o olhar de encantamento de um deles quando descobriu a bandeira do seu país. Eu não posso ignorar isso”, diz.

Também nesta sala, a diversidade que é tão saudada no Jardim-de-Infância da Pena traz consigo dificuldades ao nível a comunicação. É isso que acontece com Muhtadir, que tem cinco anos e que, conta Idália, “não fala uma palavra de português”. Cada vez que a educadora se dirige a ele, sorri e acena com a cabeça em sinal de concordância com algo que visivelmente não compreende.

Antes do almoço, as crianças da Sala Vermelha, que funciona numa antiga casa de função de professores forrada a azulejos do século XIX, sentam-se num tapete para ler um livro. Dois dos quatro rapazes do Bangladesh juntam-se num canto e começam a cochichar. “Olhe ali aqueles dois… Não percebo nada do que eles dizem”, comenta Idália, que acaba depois por os separar com a desculpa de que é preciso intercalar meninos e meninas.

Livros arrumados e higiene feita, os alunos seguem em pares para o refeitório. Já sentados, é vê-los, independentemente da sua nacionalidade ou ascendência, de nariz torcido e ar enjoado: o almoço é arroz de lulas, e nem a taça de mousse com chocolate a que sabem já que vão ter direito depois da sopa e do prato principal os anima.

Desta vez todos podem comer a mesma refeição, mas nem sempre é assim. Numa coluna do refeitório está afixado um papel com as restrições alimentares das crianças do jardim-de-infância. E não são poucas: aqui há 18 crianças que, devido à sua religião, não podem comer carne de porco e outras cinco cujos pratos não podem ter carne de vaca.

O cuidado em respeitar essas restrições é muito, mas a coordenadora do Jardim-de-Infância da Pena lembra-se bem do dia em que, por lapso, foi dado um pão com fiambre a uma criança muçulmana, e da reação pouco compreensiva da mãe quando se apercebeu da gafe. Depois de vários anos a acolher crianças das mais variadas nacionalidades, não faltam a Margarida histórias para contar, incluindo a de um miúdo que perguntou ao pai de um colega, que era muçulmano, porque é que tinha ido de pijama para a escola. 

Diferenças culturais à parte, esta educadora não tem dúvidas de que os alunos “aceitam-se muito facilmente uns aos outros”. Afinal de contas, conclui, “a brincadeira é universal”, e mesmo quando nem todas as crianças falam a mesma língua, elas “acabam por comunicar de outras formas”.


Nota: Destacado do texto pelo editor do blog.

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