quarta-feira, 1 de abril de 2015

Delinquência Juvenil: Tolerância Zero?

Desde o dia 15/2/2015 qualquer um de nós pode denunciar um crime cometido por adolescente(s) entre os 12 e os 16 anos.

Um furto num supermercado, um dano num automóvel, uma invasão de propriedade privada, uma agressão física ou verbal… Nem sempre foi assim. Antes das recentes alterações à Lei Tutelar Educativa, a denúncia de crimes dependentes de queixa ou de acusação particular pertencia unicamente ao ofendido, do mesmo modo que o desencadear de um processo contra um adulto relativamente a esses mesmos crimes depende da queixa do ofendido.

Isto significa que se pretende ser mais duro com os adolescentes do que com os adultos? Pretende-se perseguir e castigar jovens face a situações em que, tratando-se de um adulto, não haveria processo (se não houvesse queixa…)? E que os tribunais vão ficar sobrecarregados com casos bagatelares de jovens que cometem ilícitos criminais por brincadeira ou rebeldia própria da idade, sendo obrigados a desencadear processos, julgar e aplicar medidas? Há quem receie estes perigos. Mas não terá (nem deverá) ser necessariamente assim.

Não me parece que seja este o sentido da lei. Não se quis perseguir e castigar, ali, onde um adulto não seria perseguido e punido. Primeiro, porque o sentido de um processo tutelar educativo e da aplicação de uma medida tutelar educativa não é (não deve ser) o de castigar ou punir, mas o de educar o jovem, tornando-o capaz de se inserir “de forma digna e responsável” na vida em sociedade, visando o seu superior interesse. Depois, porque nem todas as denúncias deverão dar lugar a processos, muito menos a processos que se desenrolem até uma audiência de julgamento, assim como nem todas as audiências de julgamento deverão dar lugar a medidas educativas.

Fundamento do desenrolar de um processo e da aplicação de uma medida deve ser a prática de um crime que demonstre (e apenas se demonstrar) a necessidade de educar o jovem para o direito. Por outro lado, se tal crime for a expressão de necessidades de proteção, deverão acionar-se as medidas previstas na Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo.

Importante é que a prática de crimes por adolescentes seja sinalizada para se tentar conter a delinquência juvenil logo no seu início, apreciando da sua gravidade em correlação com a (des)necessidade de educar o jovem para os valores fundamentais da sociedade. Essencial será também que se apliquem os meios de proteção se tal se mostrar adequado. Esta alteração permite ainda obstar à discriminação entre jovens oriundos de famílias carenciadas e os mais favorecidos economicamente. Enquanto os primeiros são frequentemente alvo de processos, os segundos raramente o são, porque os seus pais podem pagar as indemnizações às vítimas, evitando que estas apresentem “queixas”. Mas pagar a indemnização nem sempre resolve o problema da vítima e pode não resolver também o real problema do jovem agente, se (e apenas se) o crime for expressão de ausências valorativas, educativas e de afeto, ou seja, se o menor precisar mesmo de ser “educado para o Direito” ou precisar de ser protegido. O problema é mais grave ainda quando a indemnização ou a vergonha vem calar ofensas pessoais (pense-se nas ofensas/bulling nas escolas). Se se devem evitar as vitimizações secundárias, mais ainda tratando-se de vítimas menores, os mecanismos de proteção de vítimas (nomeadamente, evitando o confronto entre agente e vítima) não devem ser esquecidos quando o agente é um adolescente. Por outro lado, o Ministério Público pode ainda arquivar o processo quando o ofendido se opuser, com fundamento especialmente relevante, ao seu prosseguimento.

Assim, face a uma denúncia abrem-se várias alternativas. Caberá ao Ministério Público atuar com “sensibilidade e bom senso” na apreciação do caso, encaminhando-o para a solução mais adequada: meios de proteção; mediação (uma solução pouco usada, mas que poderá ser bem sucedida quando o encontro entre a vítima e agente for benéfico); arquivamento liminar do processo; suspensão do processo (com eventual sujeição a deveres e regras); arquivamento. Por outro lado, chegando o caso à fase jurisdicional (se entretanto não tiver sido resolvido), ainda aí não terá necessariamente de se aplicar uma medida e, se se aplicar, poderá ser desde uma medida de caráter simbólico/educativo como a admoestação até a um acompanhamento educativo, não sendo de aplicar, em casos pouco graves, o internamento (o regime semi-aberto ou fechado só é mesmo aplicável face a crimes de certa gravidade).

Há então a possibilidade (e a esperança) deste sistema não desembocar numa perseguição de rebeldias próprias da adolescência, mas na apreciação de situações onde a intervenção educativa (e/ou de proteção) deve ter lugar para tentar salvar o jovem (e quanto mais cedo melhor) de uma provável “carreira delinquente”.

Conceição Cunha

Docente da Escola de Direito da Universidade Católica Portuguesa, no Porto

Fonte: Público

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