quinta-feira, 23 de abril de 2015

Concursos de professores condenados à polémica?

A contratação de professores transformou-se, de há uns tempos a esta parte, num fator de instabilidade da escola pública. Anos consecutivos de bloqueio no acesso aos quadros permanentes de pessoal, motivados por razões de política orçamental e financeira, o aumento do número de alunos por turma, a diminuição do número de alunos matriculados e a reconfiguração do trabalho docente não letivo, alteraram significativamente o panorama profissional dos professores nas escolas públicas, criando um número significativo de precários permanentes.

Já tenho referido aqui, com alguma frequência (o tema justifica-o), o modo pouco subtil como a contratação “a prazo” de professores se tornou num verdadeiro instrumento de gestão de recursos humanos afetos ao exercício de funções públicas (é bom não esquecer este pormenor) e às enormes injustiças que decorrem desta situação, designadamente em matéria salarial e na postergação da expectativa de ingresso numa carreira profissional estruturada.

Depois dos problemas registados com a abertura do ano escolar em curso, devido à confusão criada pela inoperância do sistema escolhido para o recrutamento de professores com recurso à Bolsa de Contratação de Escola, era de esperar que os alertas deixados em devido tempo por vários atores institucionais (Provedoria de Justiça, Conselho Nacional de Educação, Conselho das Escolas, associações e sindicatos) levassem a uma ação consequente que permitisse mitigar alguns problemas associados à transumância anual de milhares de docentes providos de contratos a termo certo (para quando um período de matrículas que termine no final do 2.º trimestre, com alguma flexibilidade para situações imprevistas, que crie as condições para a preparação, a tempo e horas, do ano letivo seguinte, sem “cair” em cima das avaliações, exames e trabalhos conexos?). Pelos visto, está-se longe de se conseguir uma solução consensual e eficaz para esses problemas, situação que tenderá a agravar-se, se o número de professores a contratar diminuir, como tudo indica, nos próximos anos, condenando os diferentes concursos de professores a uma polémica sem fim à vista.

Sinal deste estado de coisas é a reação aos efeitos práticos dos critérios adotados no último concurso de educadores de infância e de professores dos ensinos Básico e Secundário, bem visíveis na divulgação, no passado dia 20, das listas provisórias de admissão/ordenação e exclusão dos candidatos aos concursos interno e externo, aberto pelo Ministério da Educação e Ciência, em 6 de março, através do Aviso n.º 2505-B/2015, publicado na 2.ª série do Diário da República.

A norma-travão
Este concurso decorre sob a égide de uma novidade legislativa a que se convencionou chamar norma-travão. O princípio subjacente a esta norma é o de impedir que os professores sejam contratados sucessivamente a termo, ao longo de um período de tempo longo, sem que com isso ingressem nos quadros.

É uma regra que já é adotada no direito privado (onde os contratos a termo resolutivo certo estão, em princípio, limitados a três renovações) e que foi introduzida no regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos Básicos e Secundário e de formadores e técnicos especializados (Decreto-Lei n.º 132/2012, sucessivamente alterado pelo Decreto-Lei n.º 146/2013, pela Lei n.º 80/2013 e pelo Decreto-Lei n.º 83-A/2014).

Na sua última alteração, este regime pretendeu incorporar, nas palavras do legislador “um novo olhar sobre a identificação das necessidades permanentes, construído a partir da constatação de que, no final de cinco anos letivos, o docente que se encontrou em situação contratual em horário anual completo e sucessivos, evidencia a existência de uma necessidade do sistema educativo, abrindo lugar no quadro docente do Ministério da Educação e Ciência através do mecanismo concursal externo para o quadro de zona pedagógica onde a necessidade se materializou” (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 83-A/2014).

Em concreto, esta regra materializou-se através da inserção de uma norma, nos termos da qual “os contratos a termo resolutivo sucessivos celebrados com o Ministério da Educação e Ciência em horário anual e completo, no mesmo grupo de recrutamento, não podem exceder o limite de cinco anos ou quatro renovações” (artigo 42.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 132/2012, na sua redação atual).

A justiça relativa desta medida
Como é natural, a publicação desta alteração legislativa criou fundadas expectativas em muitos professores contratados há mais de cinco anos que preenchiam, em termos hipotéticos, as condições para o ingresso nos quadros.

No entanto, logo que esta norma foi publicada fizeram-se ouvir vozes que chamaram a atenção para a necessidade de concretizar o conceito de sucessividade contratual que, no sistema educativo, tem particularidades relevantes, desde logo porque o preenchimento de um horário anual não coincide necessariamente com o período legalmente estabelecido para a duração do ano letivo.
São conhecidos casos em que, devido às vicissitudes (atrasos) nos procedimentos de contratação de professores, foram preenchidos horários anuais, identificados pelas escolas ainda no decurso do processo de preparação do ano escolar, sem que os professores que ocuparam as vagas temporárias nesses horários vejam reconhecido o direito à correspondência entre esse tempo de serviço e o cumprimento de um “horário anual e completo”. Isto porque o entendimento do Ministério da Educação e Ciência é o de que só as colocações que resultem de Contratação Inicial ou renovação em sede de Contratação de Escola é que retroagem a 1 de setembro (a data “técnica” de início do ano escolar) quando são concretizadas em data posterior, excluindo todos os docentes que proviram esses lugares através do recurso à designada Reserva de Recrutamento, para os quais a contagem do tempo de serviço só se inicia no primeiro dia útil seguinte ao da aceitação desse horário.
Mesmo para aqueles que não dominam os interstícios do regime de recrutamento de pessoal a injustiça desta situação é evidente (para um resumo do sistema de colocação e contratação, ver o artigo “A crise na contratação de professores”.

É possível que dois ou mais professores que cumpriram um horário anual rigorosamente igual, iniciando funções depois do início do ano escolar, vejam o seu tempo de serviço calculado de uma forma completamente diferente, com consequências importantíssimas para o seu futuro profissional.

Ora, este e outros problemas associados a uma interpretação restritiva do conceito de sucessividade contratual (que deixa de fora professores com muitos anos de serviço porque a sua vinculação, nos últimos cinco anos, não corresponde exatamente ao estipulado na norma-travão) e a introdução de prioridades no ingresso que levam a que todos os professores que, na ótica dos serviços do MEC, preenchem os referidos requisitos de sucessividade, ultrapassando todos os que não os preenchem, conduzem a situações em que uma melhor graduação profissional (a avaliação curricular de que depende a posição de cada professor nas listas nacionais ordenadas por grupos de docência) não corresponde a devida precedência no direito à contratação.
Como é óbvio, isto propicia um número considerável de casos que, tanto quanto se sabe, acabarão nos tribunais administrativos e fiscais.

Fineman escreveu um dia que “as leis, sem abandonarem a sua preocupação normativa, que é própria a toda e qualquer regra jurídica, devem, porventura, proceder a uma adaptação aos factos sociais e económicos”. Esta reflexão ocorreu-me a propósito deste exemplo prático de uma medida legislativa, certamente bem intencionada e com uma ratio plenamente justificada, cuja implementação arrisca-se a gerar situações injustas e, por esse motivo, a destruir o efeito positivo que pré-anunciava.
 
Tiago Saleiro
 
Fonte: Educare por indicação de Livresco

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