No recreio do almoço, um grupo de rapazes, ao fundo do pátio, atira pedras da calçada. Três meninas de 11 e 12 anos relatam o que acabam de ver. Não é uma queixa. É um pedido de ajuda. A situação inquieta-as. E preferem não ser elas a falar com os rapazes: seriam agredidas, dizem. Convencem a mediadora de conflitos da escola a acompanhá-las. Caminham junto a ela, de mão dada, até ao destino.
Nesta escola da freguesia de Carnaxide, concelho de Oeiras – a Escola Sophia de Mello Breyner (2.º e 3.º ciclos) que, com a Escola Amélia Vieira Luís (1.º ciclo) tem 500 alunos do 1.º ano ao 9.º ano – a “agressividade à flor da pele” com que muitos alunos chegam às aulas tem-se refletido em atos mais violentos.
Agora, além das navalhas, com que alguns ameaçam os colegas, muitos passaram a atirar pedras e tem havido crianças feridas. “Já não chega o estalo ou o pontapé”, diz a psicopedagoga Fernanda Pinto Correia. “O conflito já é mais físico e mais grave.” E isso acontece com alunos cada vez mais novos, completa a diretora Teresa Silva. “Esta escola tem uma situação complicada porque mais de 90% dos alunos são residentes nos bairros à volta – Outurela, Portela, São Marçal. São alunos com vivências muito pouco adequadas para a sua idade, e muitas vezes trazem as brigas da rua, das famílias para a escola.”
“Este ano tem sido especialmente dramático” nestes dois estabelecimentos do Agrupamento de Escolas de Carnaxide-Portela, diz a responsável. Um miúdo de oito anos foi apanhado com uma navalha que dizia ter trazido de casa. Um rapaz de 15 anos foi julgado por furto e violência. Muitos pais ou irmãos de alunos foram presos (seguindo a tendência dos últimos três anos). E há miúdos envolvidos, por familiares, no crime organizado, diz uma professora. Mas não só.
Um dia uma menina de 14 anos fugiu de casa, porque a mãe perdeu a cabeça, e refugiou-se na escola a pedir apoio. O caso resolveu-se, mas este ano, seis crianças (entre os sete e os 12 anos) foram retiradas das suas famílias, por negligência grave ou maus-tratos. Nunca acontecera nos últimos 11 anos desde que Teresa Silva integrou a direção deste agrupamento. E, embora as ameaças com armas brancas sejam frequentes, muitos anos se passaram sem uma agressão de facto – até ao início de março.
Nesse dia, no recreio, um grupo de rapazes brinca. Pregam-se rasteiras. Aquele que cai tenta agredir o colega. Há uma troca de pontapés e empurrões, e um deles puxa de uma navalha. O mais novo, de 13 anos, é golpeado, fica ferido e a necessitar de assistência no hospital. O agressor fica suspenso preventivamente. Em menos de um mês é transferido, por decisão da Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares.
Mesmo assim, explica a diretora Teresa Silva, “foi preciso um trabalho muito grande de acompanhamento do jovem agredido, para que que continuasse a ir à escola”. Não porque sentisse medo. “Aqui vive-se muito a influência do bairro. Se mostra que tem medo, é inferiorizado”. Mas porque a mãe estava “em pânico”: aquele episódio tinha surgido “sem que houvesse uma razão para aquela agressão tão grave”, diz a diretora da escola.
Teresa Silva descreve um cenário de “grande carência” das famílias dos alunos – muitas delas monoparentais – agravado pelos cortes no Rendimento Social de Inserção (RSI) e outros apoios de que depende a maioria dos residentes nos bairros Portela, Outurela ou São Marçal; e muitas situações de desamparo ou violência. Crianças de seis anos, desprotegidas, a caminharem para a escola sozinhas; miúdos de oito, nove e dez anos, na rua à meia-noite; crianças e jovens sobressaltados por rusgas policiais nas suas casas ou na dos vizinhos, e surpreendidos por tiros em ajustes de contas de negócios mal resolvidos. Quando algum episódio desse tipo sucede na véspera, “vê-se logo”. Os alunos chegam agitados. E isso sente-se no recreio ou dentro da sala de aula.
Pedidos de ajuda de alunos inquietos com a violência latente na própria escola surgem quase todos os dias, afirma Fernanda Pinto Correia. A sua função é mediar os conflitos, quase sempre no recreio. É assim nalgumas das mais de 130 escolas do Programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP) – como esta – a quem é dada especial atenção mas que também têm sido abrangidas pela redução da presença de assistentes operacionais.
Na Escola Sophia de Mello Breyner, havia 26 assistentes operacionais (contínuos ou vigilantes) em 2004; são hoje 13 funcionários fixos que conhecem a escola e os alunos. Os que se aposentaram não foram substituídos (a não ser de forma pontual) por pessoas com contratos temporários ou de inserção. A presença dos elementos do Gabinete de Segurança Escolar que antes davam apoio nestas questões também passou a ser quase inexistente, diz Teresa Silva. A tendência é a mesma na generalidade das escolas.
Prioridades desviadas com a crise
Nesta escola da freguesia de Carnaxide, concelho de Oeiras – a Escola Sophia de Mello Breyner (2.º e 3.º ciclos) que, com a Escola Amélia Vieira Luís (1.º ciclo) tem 500 alunos do 1.º ano ao 9.º ano – a “agressividade à flor da pele” com que muitos alunos chegam às aulas tem-se refletido em atos mais violentos.
Agora, além das navalhas, com que alguns ameaçam os colegas, muitos passaram a atirar pedras e tem havido crianças feridas. “Já não chega o estalo ou o pontapé”, diz a psicopedagoga Fernanda Pinto Correia. “O conflito já é mais físico e mais grave.” E isso acontece com alunos cada vez mais novos, completa a diretora Teresa Silva. “Esta escola tem uma situação complicada porque mais de 90% dos alunos são residentes nos bairros à volta – Outurela, Portela, São Marçal. São alunos com vivências muito pouco adequadas para a sua idade, e muitas vezes trazem as brigas da rua, das famílias para a escola.”
“Este ano tem sido especialmente dramático” nestes dois estabelecimentos do Agrupamento de Escolas de Carnaxide-Portela, diz a responsável. Um miúdo de oito anos foi apanhado com uma navalha que dizia ter trazido de casa. Um rapaz de 15 anos foi julgado por furto e violência. Muitos pais ou irmãos de alunos foram presos (seguindo a tendência dos últimos três anos). E há miúdos envolvidos, por familiares, no crime organizado, diz uma professora. Mas não só.
Um dia uma menina de 14 anos fugiu de casa, porque a mãe perdeu a cabeça, e refugiou-se na escola a pedir apoio. O caso resolveu-se, mas este ano, seis crianças (entre os sete e os 12 anos) foram retiradas das suas famílias, por negligência grave ou maus-tratos. Nunca acontecera nos últimos 11 anos desde que Teresa Silva integrou a direção deste agrupamento. E, embora as ameaças com armas brancas sejam frequentes, muitos anos se passaram sem uma agressão de facto – até ao início de março.
Nesse dia, no recreio, um grupo de rapazes brinca. Pregam-se rasteiras. Aquele que cai tenta agredir o colega. Há uma troca de pontapés e empurrões, e um deles puxa de uma navalha. O mais novo, de 13 anos, é golpeado, fica ferido e a necessitar de assistência no hospital. O agressor fica suspenso preventivamente. Em menos de um mês é transferido, por decisão da Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares.
Mesmo assim, explica a diretora Teresa Silva, “foi preciso um trabalho muito grande de acompanhamento do jovem agredido, para que que continuasse a ir à escola”. Não porque sentisse medo. “Aqui vive-se muito a influência do bairro. Se mostra que tem medo, é inferiorizado”. Mas porque a mãe estava “em pânico”: aquele episódio tinha surgido “sem que houvesse uma razão para aquela agressão tão grave”, diz a diretora da escola.
Teresa Silva descreve um cenário de “grande carência” das famílias dos alunos – muitas delas monoparentais – agravado pelos cortes no Rendimento Social de Inserção (RSI) e outros apoios de que depende a maioria dos residentes nos bairros Portela, Outurela ou São Marçal; e muitas situações de desamparo ou violência. Crianças de seis anos, desprotegidas, a caminharem para a escola sozinhas; miúdos de oito, nove e dez anos, na rua à meia-noite; crianças e jovens sobressaltados por rusgas policiais nas suas casas ou na dos vizinhos, e surpreendidos por tiros em ajustes de contas de negócios mal resolvidos. Quando algum episódio desse tipo sucede na véspera, “vê-se logo”. Os alunos chegam agitados. E isso sente-se no recreio ou dentro da sala de aula.
Pedidos de ajuda de alunos inquietos com a violência latente na própria escola surgem quase todos os dias, afirma Fernanda Pinto Correia. A sua função é mediar os conflitos, quase sempre no recreio. É assim nalgumas das mais de 130 escolas do Programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP) – como esta – a quem é dada especial atenção mas que também têm sido abrangidas pela redução da presença de assistentes operacionais.
Na Escola Sophia de Mello Breyner, havia 26 assistentes operacionais (contínuos ou vigilantes) em 2004; são hoje 13 funcionários fixos que conhecem a escola e os alunos. Os que se aposentaram não foram substituídos (a não ser de forma pontual) por pessoas com contratos temporários ou de inserção. A presença dos elementos do Gabinete de Segurança Escolar que antes davam apoio nestas questões também passou a ser quase inexistente, diz Teresa Silva. A tendência é a mesma na generalidade das escolas.
Prioridades desviadas com a crise
“Os problemas da indisciplina e da violência têm vindo a aumentar porque as escolas têm cada vez menos recursos e estão sem meios para dar respostas imediatas”, diz Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares e diretor do agrupamento de escolas de Cinfães, que aponta este como um dos principais problemas. O outro: “A situação económica e social das famílias leva a que as prioridades sejam desviadas da educação dos filhos.”
Estes foram dois dos aspetos salientados por Adelino Calado, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas e diretor do agrupamento de escolas de Carcavelos, na apresentação que fez ao grupo de trabalho sobre Indisciplina em Meio Escolar da Comissão de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia da República, criado para identificar causas e traçar estratégias numa perspetiva de prevenção, segundo o gabinete desta comissão parlamentar. As audições prosseguem até maio, e nestas segunda e terça-feira, deputados desta comissão visitam escolas do distrito do Porto e de Lisboa.
Na audição de fevereiro, Adelino Calado começou por afirmar que “o que se passa na escola corresponde ao que se vive na sociedade” e apresentou situações concretas: “alunos deixados na escola às 7h, onde permanecem até às 20h; alunos que chegam sem pequeno-almoço; pedidos regulares dos pais no sentido de a escola resolver os problemas dos respetivos educandos, por se sentirem impotentes; necessidade de a escola assegurar acompanhamento médico e psicológico aos alunos, face à indisponibilidade dos pais”, lê-se no relatório da audição disponível no site da comissão parlamentar.
“Na generalidade das escolas”, a proporção de assistentes operacionais por aluno “não está a ser cumprida”, disse, apresentando o caso do seu agrupamento, onde “existem nove assistentes operacionais quando deveriam existir 34”.
Com menos funcionários, mas objetivos claros, as escolas do Agrupamento de Carnaxide-Portela tentam chegar aos alunos, talvez mesmo conquistá-los. “Quando nos conhecem, eles procuram-nos e deixam de ter vergonha de contar o que se passa”, conta Fernanda Pinto Correia que só este ano, o terceiro como mediadora nesta escola, sentiu que o seu trabalho começa a dar frutos.
Entre outras iniciativas, está a formar alunos para serem eles próprios mediadores de conflitos e promove uma assembleia todos os meses em que os alunos dão voz aos que os preocupa. Também marcou no calendário um “dia da paz” na escola em que, através da elaboração de um cartaz e outras iniciativas, todos são convidados a participar. “O início de alguma coisa” pode estar a acontecer, diz. Um sinal disso é ver alunos que antes atiravam cadeiras e mesas nas salas de aula, agora levantarem-se e, em silêncio, saírem da sala. Um dia, um miúdo disse-lhe. “Saí para não bater no colega.”
Quando são suspensos, num processo disciplinar, ficam aflitos. Não pelo castigo, mas porque é na escola que comem o pequeno-almoço, o almoço e o lanche. Cerca de 130 alunos estão nessa situação. “A maioria passa fome”, diz Teresa Silva. “Mas quando alguém lhes dá uma maçã ou um pão, partilham entre eles”, acrescenta Fernanda Correia. “Apesar da falta de estrutura familiar, eles são bons miúdos. Conseguem perceber que não têm muito, mas que há quem tenha ainda menos. Têm sensibilidade e ao mesmo tempo uma imensa falta de perspetiva de vida. A escola diz-lhes muito pouco como garantia de futuro.”
Reportagem de Ana Dias Cordeiro
Fonte: Público
Sem comentários:
Enviar um comentário