Parto de uma frase bem conhecida que é atribuída a S. Freud: “Duas pessoas só podem estar completamente de acordo se só uma delas pensar”. Esta frase levanta uma dúvida: se as duas estivessem a pensar poderiam encontrar um acordo?
A resposta que vem da nossa prática quotidiana parece clara: podem, sim. Sabemos que é possível que pares de pessoas, pequenos grupos, comunidades e mesmo grandes grupos se ponham de acordo em relação a um determinado domínio.
Estar de acordo, em sintonia, com a opinião de outra pessoa é um ato intrinsecamente humano. Implica que se abdique de algo que consideramos menos importante ou acessório para valorizar algo que, no nosso julgamento, é considerado mais importante. Assim, o acordo tem sempre algo de renúncia e algo de comunhão. Entende-se por que é que as pessoas que “estão cheias de si” têm dificuldade em chegar a acordos. No fundo, são pessoas que ocuparam todo o espaço da relação com a sua imensa personalidade e não fica a sobrar espaço nenhum para o outro, para receber e acolher outras opiniões. Não há acordo porque não há espaço de renúncia e espaço de acolhimento. Chegar a acordo é, por isso, um ato autenticamente humano porque implica um julgamento, uma decisão e a capacidade e vontade de abdicar de algo que é nosso para acolher algo que vem do outro.
Encontrar acordos entre pessoas obviamente diferentes é uma questão particularmente pertinente em Educação. O modelo mais comum e “clássico” de escola foi fundado a partir da procura da uniformidade. Entendia-se que as crianças eram todas iguais, pelo menos no que dizia respeito à aprendizagem. Se fossem da mesma idade cronológica, logo deveriam – se fossem “normais” – possuir determinadas capacidades. Estas capacidades proporcionar-lhes-iam um ponto de partida comum. A seguir, era só estabelecer um roteiro, um percurso que todas as crianças seguiriam e levaria – na melhor das hipóteses – a que todas adquirissem novas e iguais capacidades. Neste modelo tradicional e secular de escola, a “diferença” é vista como uma bizarria, algo que só alguns têm e que não é lá muito positivo. Ser diferente neste conceito tradicional é sinónimo de não conseguir ser normal e, numa escola que procura a normalidade, a distância entre “diferença” e “anormalidade” é muito curta.
A escola que procura a normalidade é hoje uma escola em profunda crise. As diferenças entre os alunos estão muito mais presentes do que antes e não é possível rotulá-las como patológicas. Por exemplo, sabemos que há alunos que são educados a partir de culturas que têm representações distintas sobre a escola e isso não poderá ser considerado uma “anormalidade”. Por outro lado, é hoje evidente e óbvio que procurar a normalidade e a homogeneidade é uma forma intrinsecamente geradora de segregação de alunos que não estejam aculturados nos mesmos valores da escola. Assim, eleger a homogeneidade como valor da escola é certamente uma forma capciosa de segregação e de semear e agravar as desigualdades entre os alunos.
Por isso parece tão importante que a escola se possa modificar de forma a acolher as singularidades dos alunos. Estas singularidades estendem-se por um espectro muito alargado que vai desde as culturas de origem até às modalidades e enquadramentos de aprendizagem. Todas estas diferenças devem ser consideradas no ponto de partida e no “saber fazer” pedagógico. As singularidades dos alunos são para ser consideradas como pontos de partida, como condições para que a aprendizagem e a educação possam ter sucesso.
Para que as singularidades ou diferenças dos alunos possam ser seriamente consideradas é preciso mudar a escola. A escola que procura a homogeneidade, que se rege por metas iguais para todos os alunos, que ostraciza a diferença não é certamente o melhor começo de vida para pessoas que vão ter de participar em sociedades conflituais e que exigem negociação; não vai ser, de certo, a melhor escola para cultivar a criatividade e para abrir os caminhos da cooperação.
Encontrar consensos entre pessoas que pensam é uma empresa difícil. Por isso precisamos de acarinhar o desenvolvimento desta capacidade desde os primeiros anos da escola, criando valores e ambientes em que, considerando e valorizando as diferenças, é dada confiança e espaço suficiente para acolher “o outro”, para abdicar de algo de forma a ganhar o consenso. Sermos singulares significa que temos representações muito diferentes do mundo, por isso nos enriquecemos com o pensamento dos outros.
A nossa escola tem de pensar nisto e agir em conformidade para que não se torne num museu.
David Rodrigues
Prof. universitário, conselheiro nacional de Educação
Fonte: Público
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