A nossa memória é eminentemente associativa. Vezes sem-fim, no nosso dia-a-dia, a evocação de um evento da nossa vida faz ressurgir outras recordações que lhe estão associadas. Mas como é que o nosso cérebro consegue estabelecer essa “ponte” ao nível neuronal?
Essa pergunta acaba de receber um importante elemento de resposta. Uma equipa de investigadores japoneses mostrou, pela primeira vez, que ao excitar ao mesmo tempo dois conjuntos diferentes de neurónios no cérebro de ratinhos, é possível “obrigar” as memórias de dois eventos que nada tinham a ver um com a outro à partida a ficarem associadas na mente dos animais. Os resultados são publicados na revista Cell Reports com data desta terça-feira .
Pensa-se hoje que as memórias individuais de um animal – ou de uma pessoa – são fisicamente armazenadas no cérebro ao nível de conjuntos específicos de células nervosas que foram ativadas aquando da exposição inicial a um dado evento. Isto porque estudos experimentais recentes no ratinho – em particular pela equipa do cientista português Alcino Silva, da Universidade da Califórnia (EUA) – mostraram que, a seguir, basta reativar esses neurónios específicos para essa memória ressurgir nos animais.
Outras experiências também mostraram, explica a revista Cell Reports em comunicado, que a reativação artificial de um conjunto de neurónios pode alterar a aquisição de uma nova memória, gerando assim falsas memórias. Porém, até aqui, esses estudos envolviam uma combinação de estímulos sensoriais naturais (visuais, auditivos, etc.) e de estimulação artificial. Mas agora, Kaoru Inokuchi e os seus colegas da Universidade de Toyama (Japão), conseguiram ligar duas memórias distintas apenas com meios artificiais.
“A memória está na base de todas as funções cerebrais superiores, incluindo a consciência – e também desempenha um papel importante em doenças psiquiátricas tais como a síndrome de stress pós-traumático”, diz Inokuchi, citado no mesmo documento. “Ao mostrar que o cérebro associa diferentes tipos de informação para gerar uma memória qualitativamente nova que conduz a alterações duradouras do comportamento, os nossos resultados poderão ter importantes implicações para o tratamento dessas doenças incapacitantes.”
Para fazer a experiência, os cientistas começaram por submeter um grupo de ratinhos a uma “aprendizagem”. Mais precisamente, parte dos animais passou seis minutos dentro de um recinto cilíndrico, enquanto o resto ficou o mesmo tempo num recinto cúbico. Meia-hora depois desta primeira “vivência”, todos os animais foram colocados no recinto cúbico, onde lhes foi logo administrado um choque elétrico no pé.
Resultado: dois dias mais tarde, quando os ratinhos foram novamente expostos a um dos dois recintos, os que foram colocados no recinto cúbico tiveram uma reação de medo (ficaram paralisados) mais pronunciada do que os que permaneceram dentro do recinto cilíndrico. Ou seja: o recinto cúbico ficara associado, na cabeça dos animais, ao perigo do choque elétrico – enquanto o recinto cilíndrico era visto como mais seguro.
Durante esta aprendizagem, a equipa identificou ainda conjuntos específicos de neurónios se activavam no cérebro dos ratinhos em resposta aos diversos eventos, em duas regiões cerebrais – o hipocampo e a amígdala – que se sabe estarem envolvidas na memória. A ideia é que esses conjuntos de neurónios estariam portanto associados às diferentes memórias adquiridas dos eventos vividos.
A segunda fase da experiência consistiu então em associar artificialmente a memória neuronal do choque elétrico à do recinto de forma cilíndrica – isto é, em fazer com que o recinto até aí considerado seguro (por não estar associado a um choque elétrico) se tornasse ameaçador e passasse a suscitar uma reação de medo por parte dos animais.
Como fizeram? Antes de mais, é preciso saber que os cientistas tinham manipulado geneticamente os neurónios dos ratinhos de forma a conseguirem ativá-los especificamente graças a feixes de luz. A técnica, dita de optogenética, tem revolucionado o estudo dos processos neuronais, uma vez que permite ligar e desligar facilmente neurónios individuais.
Os cientistas utilizaram então feixes de luz azul, transmitidos para o interior do cérebro dos animais via de uma fibra ótica, para reativar ao mesmo tempo o conjunto de neurónios associado à memória do choque elétrico e o conjunto associado à memória do recinto cilíndrico – ou seja, ligaram fisicamente duas memórias à partida independentes. E o que esperavam aconteceu mesmo: os ratinhos que foram a seguir reintroduzidos no recinto cilíndrico (na realidade, o mais seguro) ficaram mais tempo paralisados pelo medo do que os que foram colocados no recinto cúbico (o mais perigoso)! Duas memórias sem relação entre si tinham ficado de repente relacionadas na sua mente.
Os cientistas japoneses tencionam agora tentar fazer o contrário: “Vamos modificar esta técnica para tentar dissociar artificialmente memórias que estão fisiologicamente ligadas”, explica ainda Inokuchi. “Isto poderá contribuir para o desenvolvimento de novas terapêuticas contra perturbações psiquiátricas como o stress pós-traumático, cujos principais sintomas derivam de associações desnecessárias entre memórias não relacionadas.”
De passagem por Lisboa em finais de 2011, Alcino Silva já evocara (...) este tipo de aplicações. “Lembra-se do filme Total Recall/Desafio Total?", perguntara-nos na altura. "Esperamos que esta capacidade de manipular as memórias nos vá permitir perceber os mecanismos que apagam as memórias." Para talvez, um dia, "suavizar o impacto das memórias horríficas que os jovens que voltam da guerra trazem consigo" ou as perturbações ligadas à ansiedade, "que podem ser muito incapacitantes e têm um custo social enorme".
Fonte: Público
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