Pode uma educadora de infância dar uma palmada numa criança por ser demasiado lenta a comer? O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) diz que não. A funcionária até tinha um historial de educadora zelosa e carinhosa, não eram conhecidos episódios de agressão, mas bastou que uma mãe a visse dar uma palmada com as costas da mão a uma criança que teimava em comer um pão em pé e devagar para o tribunal superior considerar que devia ser despedida com justa causa da creche. Os castigos com objetivos corretivos, concluíram os juízes, a serem aceitáveis, só se forem dados pelos pais.
Na primeira fase, o tribunal de 1ª instância até ficou do lado da funcionária da creche de Aveiro: concluiu que o despedimento era um castigo "desproporcional" para quem até tinha um currículo exemplar. Afinal, mesmo depois daquele caso, concluiu-se que Ana (nome fictício), apesar de rigorosa era afetuosa com as crianças. Afinal, mesmo depois de ser despedida do jardim de infância, não deixou de ser convidada para a festa de anos de um dos miúdos. Afinal, nem sequer era a única educadora a admitir que às vezes aplicava uns castigos corporais "moderados" para impor a ordem na sala ou repreender as crianças que não obedeciam.
O histórico, ainda assim, não foi suficiente para comover os juízes da Relação de Coimbra e do Supremo. Bater com as costas da mão na cara de uma criança entre os três e os cinco anos "é muito mais do que um castigo moderado". E o que foi justificado "como uma palmadinha leve corre o risco de ser amanhã uma palmada forte", concluíram.
Embora seja adepta de que "uma palmada só deve ser dada em último caso" e que dar uma palmada por uma criança não comer ou não comer rápido "é antipedagógico", a psicóloga infantil Rita Jonet tem dificuldade em perceber uma decisão tão radical como a da demissão. "Teimo a aceitar que os educadores são humanos e por vezes também se descontrolam." E vai mais longe: em certas situações, diz a especialista, como quando a criança está a ser agressiva ou violenta, uma palmada "pode ser educativa" ou até mesmo "um ato de amor". Tudo depende da frequência e da maneira como são dadas, explica. Crianças tratadas com muita agressividade "tendem a ser agressoras", mas se a palmada for leve, ocasional e se se explicar "dei-te uma palmada porque não gostei do que fizeste, mas isso não significa que não goste de ti" pode ser pedagógica, entende Jonet.
Neste caso, ficou provado que nem todas as práticas da educadora eram más. Durante a hora de almoço, se uma criança deitava fora os alimentos depois de os ter levado à boca, Ana substituía-lhe o prato, trocava os alimentos por outros iguais e insistia para que comesse. As crianças eram ensinadas a começar a refeição pelos alimentos que estavam mais próximos do prato. E se a fruta era servida antes da sopa e alguma das crianças não a comia Ana cortava-a e colocava-a dentro do prato de sopa, para que se habituasse a comê-la. Uma encarregada de educação até terá chegado a agradecer-lhe: de outra forma o filho não conseguiria comer alimentos sólidos. Já outras práticas foram mais discutíveis em tribunal: às vezes, admitiu, se as crianças não obedeciam às suas ordens dava-lhes "palmadas leves" para as repreender e manter a ordem. À hora do lanche, se demoravam demasiado tempo a comer o pão, colocava-as a comer de pé, viradas para a parede.
O tribunal, embora sublinhando que as práticas de Ana não eram regulares, entendeu serem suscetíveis de causar "grande desconforto, indignação e revolta" por parte dos pais das crianças que confiavam os filhos à creche. Mais: embora irregulares, as práticas da educadora eram "punitivas", "humilhatórias" e demonstravam uma "irritação inadequada". Obrigá-las a comer de pé viradas para a parede, então, era prática "desproporcionadamente humilhatória". A idade das crianças - entre os dois e os cinco anos - também não foi esquecida pelos juízes. O tribunal considerou que naquelas idades eram "especialmente vulneráveis", pediam "especial atenção" e "métodos educativos adequados, mas de feição estimuladora pelo carinho" e "pela persistente eficácia afectiva".
A advogada Rita Sassetti é da opinião de que qualquer tipo de palmada é um mau trato físico e lembra que em países como a Noruega pais e educadores estão ao mesmo nível e não podem tocar nas crianças: uma palmada ou bofetada dá direito a pena de prisão e a ficar sem os filhos. Se uma educadora dá um castigo físico "faz todo o sentido que seja responsabilizada por isso", diz ao i a especialista em Direito da Família. "Quem está a tomar conta de crianças tem de ter a disponibilidade e a paciência para as educar", realça, sublinhando haver "outras maneiras de educar uma criança que não passam por ameaçar com um par de estalos só porque está a demorar muito tempo a comer a sopa". Já lá vão os tempos, concorda, em que se entendia que as palmadas eram um castigo aceitável. "Hoje começa-se a ter mais atenção às ofensas corporais a crianças pequenas e indefesas", frisa, sublinhado uma teoria: as decisões também espelham a idade de quem julga. "No Supremo já têm idade para ser avós. Não vamos ignorar que além de serem julgadores também se põem nesse papel de educadores"
Jorge Ascensão, presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap), recusa olhar para as palmadas como um direito de alguém sobre o outro. "Há a responsabilidade de educar e orientar, o que não significa que se tenha de bater", explica o responsável. Se for um pai, o bom senso impera e "não se faz drama de uma palmadazinha" - "desde que dada por razões adequadas e sem magoar". Mas se for educador já não se justifica. "Numa instituição educativa não, de todo. Esta não é uma questão de direito, é pedagógica."
Até porque, sublinha, se se quer reduzir o abandono escolar "é importante que as crianças não se sintam ameaçados na escola desde pequenas". O representante dos pais partilha da opinião da advogada - quem tem como profissão educador de infância terá de ter a capacidade de se "controlar mesmo nas situações extremas". Mas admite que, sejam pais ou professores, todos têm os seus momentos infelizes. "Só caso a caso e tendo todo o histórico poderemos avaliar se a medida da pena foi justa ou demasiado drástica."
Nos tribunais as palmadas também estão longe de ser consensuais. Obrigar crianças a engolir comida à força, batendo na boca, deu condenação por maus-tratos. O mesmo fim teve uma educadora que resolveu calar uma criança de 4 anos com um golpe na zona da boca e do nariz. Se alguém tem o direito de correcção, disse a Relação de Lisboa em 2012, são só os pais e os tutores, e nunca para "descarregar a tensão nervosa".
No Supremo, em 2006, num acórdão de quatro juízes - um deles Henriques Gaspar, atual presidente do STJ - o entendimento foi outro: era "utópico" pensar uma educação sem castigos corporais. Afinal, perguntavam, qual era "o bom pai de família que, por uma ou duas vezes, não dá palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola?" A decisão, tomada num caso em que uma educadora era acusada de trancar à chave crianças deficientes em quartos escuros, levou o Conselho da Europa a condenar o Supremo.
Na primeira fase, o tribunal de 1ª instância até ficou do lado da funcionária da creche de Aveiro: concluiu que o despedimento era um castigo "desproporcional" para quem até tinha um currículo exemplar. Afinal, mesmo depois daquele caso, concluiu-se que Ana (nome fictício), apesar de rigorosa era afetuosa com as crianças. Afinal, mesmo depois de ser despedida do jardim de infância, não deixou de ser convidada para a festa de anos de um dos miúdos. Afinal, nem sequer era a única educadora a admitir que às vezes aplicava uns castigos corporais "moderados" para impor a ordem na sala ou repreender as crianças que não obedeciam.
O histórico, ainda assim, não foi suficiente para comover os juízes da Relação de Coimbra e do Supremo. Bater com as costas da mão na cara de uma criança entre os três e os cinco anos "é muito mais do que um castigo moderado". E o que foi justificado "como uma palmadinha leve corre o risco de ser amanhã uma palmada forte", concluíram.
Embora seja adepta de que "uma palmada só deve ser dada em último caso" e que dar uma palmada por uma criança não comer ou não comer rápido "é antipedagógico", a psicóloga infantil Rita Jonet tem dificuldade em perceber uma decisão tão radical como a da demissão. "Teimo a aceitar que os educadores são humanos e por vezes também se descontrolam." E vai mais longe: em certas situações, diz a especialista, como quando a criança está a ser agressiva ou violenta, uma palmada "pode ser educativa" ou até mesmo "um ato de amor". Tudo depende da frequência e da maneira como são dadas, explica. Crianças tratadas com muita agressividade "tendem a ser agressoras", mas se a palmada for leve, ocasional e se se explicar "dei-te uma palmada porque não gostei do que fizeste, mas isso não significa que não goste de ti" pode ser pedagógica, entende Jonet.
Neste caso, ficou provado que nem todas as práticas da educadora eram más. Durante a hora de almoço, se uma criança deitava fora os alimentos depois de os ter levado à boca, Ana substituía-lhe o prato, trocava os alimentos por outros iguais e insistia para que comesse. As crianças eram ensinadas a começar a refeição pelos alimentos que estavam mais próximos do prato. E se a fruta era servida antes da sopa e alguma das crianças não a comia Ana cortava-a e colocava-a dentro do prato de sopa, para que se habituasse a comê-la. Uma encarregada de educação até terá chegado a agradecer-lhe: de outra forma o filho não conseguiria comer alimentos sólidos. Já outras práticas foram mais discutíveis em tribunal: às vezes, admitiu, se as crianças não obedeciam às suas ordens dava-lhes "palmadas leves" para as repreender e manter a ordem. À hora do lanche, se demoravam demasiado tempo a comer o pão, colocava-as a comer de pé, viradas para a parede.
O tribunal, embora sublinhando que as práticas de Ana não eram regulares, entendeu serem suscetíveis de causar "grande desconforto, indignação e revolta" por parte dos pais das crianças que confiavam os filhos à creche. Mais: embora irregulares, as práticas da educadora eram "punitivas", "humilhatórias" e demonstravam uma "irritação inadequada". Obrigá-las a comer de pé viradas para a parede, então, era prática "desproporcionadamente humilhatória". A idade das crianças - entre os dois e os cinco anos - também não foi esquecida pelos juízes. O tribunal considerou que naquelas idades eram "especialmente vulneráveis", pediam "especial atenção" e "métodos educativos adequados, mas de feição estimuladora pelo carinho" e "pela persistente eficácia afectiva".
A advogada Rita Sassetti é da opinião de que qualquer tipo de palmada é um mau trato físico e lembra que em países como a Noruega pais e educadores estão ao mesmo nível e não podem tocar nas crianças: uma palmada ou bofetada dá direito a pena de prisão e a ficar sem os filhos. Se uma educadora dá um castigo físico "faz todo o sentido que seja responsabilizada por isso", diz ao i a especialista em Direito da Família. "Quem está a tomar conta de crianças tem de ter a disponibilidade e a paciência para as educar", realça, sublinhando haver "outras maneiras de educar uma criança que não passam por ameaçar com um par de estalos só porque está a demorar muito tempo a comer a sopa". Já lá vão os tempos, concorda, em que se entendia que as palmadas eram um castigo aceitável. "Hoje começa-se a ter mais atenção às ofensas corporais a crianças pequenas e indefesas", frisa, sublinhado uma teoria: as decisões também espelham a idade de quem julga. "No Supremo já têm idade para ser avós. Não vamos ignorar que além de serem julgadores também se põem nesse papel de educadores"
Jorge Ascensão, presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap), recusa olhar para as palmadas como um direito de alguém sobre o outro. "Há a responsabilidade de educar e orientar, o que não significa que se tenha de bater", explica o responsável. Se for um pai, o bom senso impera e "não se faz drama de uma palmadazinha" - "desde que dada por razões adequadas e sem magoar". Mas se for educador já não se justifica. "Numa instituição educativa não, de todo. Esta não é uma questão de direito, é pedagógica."
Até porque, sublinha, se se quer reduzir o abandono escolar "é importante que as crianças não se sintam ameaçados na escola desde pequenas". O representante dos pais partilha da opinião da advogada - quem tem como profissão educador de infância terá de ter a capacidade de se "controlar mesmo nas situações extremas". Mas admite que, sejam pais ou professores, todos têm os seus momentos infelizes. "Só caso a caso e tendo todo o histórico poderemos avaliar se a medida da pena foi justa ou demasiado drástica."
Nos tribunais as palmadas também estão longe de ser consensuais. Obrigar crianças a engolir comida à força, batendo na boca, deu condenação por maus-tratos. O mesmo fim teve uma educadora que resolveu calar uma criança de 4 anos com um golpe na zona da boca e do nariz. Se alguém tem o direito de correcção, disse a Relação de Lisboa em 2012, são só os pais e os tutores, e nunca para "descarregar a tensão nervosa".
No Supremo, em 2006, num acórdão de quatro juízes - um deles Henriques Gaspar, atual presidente do STJ - o entendimento foi outro: era "utópico" pensar uma educação sem castigos corporais. Afinal, perguntavam, qual era "o bom pai de família que, por uma ou duas vezes, não dá palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola?" A decisão, tomada num caso em que uma educadora era acusada de trancar à chave crianças deficientes em quartos escuros, levou o Conselho da Europa a condenar o Supremo.
In: I online
1 comentário:
«Sejam pais ou professores, todos têm os seus momentos infelizes. "Só caso a caso e tendo todo o histórico poderemos avaliar se a medida da pena foi justa ou demasiado drástica"» Isto diz tudo.
Eu não bato no meu filho, pois acho que tal é uma medida cobarde (não bato em adultos....) e que manifesta mais o meu descontrolo, do que as minhas competências parentais. Porque há de alguém fazê-lo? Agora, sejamos coerentes... há casos e casos e um ato isolado deve ser algo de uma repreensão, mas não deve ser tratada como criminosa...
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