O ano letivo em França arrancou de forma conturbada, com muitas escolas encerradas e manifestações por todo em país. A causa dos protestos? A nova reforma dos ritmos escolares, que faz parte do programa de Hollande, e que prevê uma alteração no tempo de ensino para as escolas primárias públicas. A semana escolar, que até aqui tinha quatro dias (os alunos não tinham aulas à quarta-feira), vai ter 4 dias e meio, sendo que os estudantes passarão a ter aulas à quarta-feira ou ao sábado de manhã.
Por detrás desta alteração está a ideia de que se adequa mais aos ritmos biológicos das crianças, uma vez que o dia escolar passa a ter menos horas, facilitando assim a concentração dos alunos. Esta reforma introduz também três horas de oficinas de atividades extra-curriculares depois das aulas.
E por cá? Que alterações poderiam ser introduzidas nas escolas para adequar o ritmo dos estudos ao ritmo das crianças? Que mudanças mais abrangentes teriam de ser feitas a nível social? E as famílias? Que podem elas fazer para garantir que os seus filhos descansam e fazem outras aprendizagens (e brincam), mesmo quando os pais chegam a casa tarde e cansados? O "Observador" falou com dois psicólogos especialistas em educação e deixa-lhe algumas dicas.
Um sono saudável
“Perder uma hora de sono equivale a perder dois anos de maturação e desenvolvimento cognitivo“. A conclusão foi feita por Avi Sadeh, psicólogo clínico israelita especialista em crianças e famílias, que tem estudado os efeitos da falta de sono nos mais novos. Sadeh conduziu um estudo que envolveu crianças do 4º e do 6º ano, sendo que estas últimas dormiram menos uma hora de sono durante três noites. No final do estudo, os alunos do 6º ano que dormiram menos apresentaram um desempenho escolar equivalente aos alunos do 4º ano.
A maior parte dos pais que consultam a psicóloga Cristina Valente não consegue estabelecer “um padrão de sono regular” para os seus filhos, diz (...) a psicóloga, que a propósito deste tema citou o estudo de Avi Sadeh. José Morgado, professor no departamento de psicologia da educação no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), diz que muitas crianças apresentam “um défice significativo de horas de sono saudável” e que por vezes esse défice pode traduzir-se em comportamentos de excitação e de instabilidade.
“Se for com sono enquanto estou a conduzir, o que faço para tentar manter-me acordado? Canto, por exemplo… Os miúdos fazem o mesmo para tentar manter-se acordados: agitam-se”, explica José Morgado. Mas em alguns casos confunde-se isto com perturbações como a hiperatividade ou o défice de atenção, podendo haver um “sobrediagnóstico” destas situações quando, na verdade, as crianças “andam mal dormidas”, diz o professor do ISPA.
Apesar de na maior parte das escolas portuguesas as aulas começarem cedo, entre as 8h e as 9h, Cristina Valente está convencida de que a solução não passa por alterar o horário escolar. “Não é pela mudança da hora que devemos ir. Devemos fazer as contas ao contrário, para trás. Fazer as contas e encontrar a hora a que as crianças se devem deitar”. E para determinar o momento em que os mais pequenos devem fechar os olhos todas as noites, é fundamental ter conhecimento da tabela de horas de sono estabelecida pela American Academy of Pediatrics.
Segundo a psicóloga, uma criança do 1º ano deve dormir entre 9 horas e meia e 11 horas e meia por noite. Os jovens entre os 9 e os 12 anos devem dormir “um mínimo de 9 horas”. Cristina Valente explica que há uma “variação de duas horas que está relacionada com o temperamento” dos mais pequenos, mas considera que “o ideal seria que uma criança fosse para a cama às 20h30″.
A psicóloga diz que geralmente os pais “reagem com surpresa à tabela das horas de sono” e que “a compreensão e o conhecimento levam à mudança“. E a mudança passa pelo estabelecimento de rotinas.
Criar rotinas
“Se as rotinas estiverem implementadas as coisas correm melhor“, diz Cristina Valente. Que regras podem fazer parte dessa rotina? A psicóloga defenda que os pais “nunca devem deixar a criança ver televisão depois de jantar”. A seguir à refeição, os mais pequenos devem “lavar os dentes e ir dormir”, defende. E a questão de “ir de barriga cheia para a cama” não se deve colocar, até porque “uma criança não deve comer em demasia ao jantar, uma vez que precisa de muito pouca comida no final do dia”. Muitas vezes os pais querem obrigar os filhos a comer mais do que aquilo “de que eles precisam” e isso causa outro problema e alimenta um ciclo vicioso: “Muitos dos conflitos começam com batalhas à mesa, o que, por sua vez, dificulta a ida para a cama“.
José Morgado defende que no horário familiar deve estar bem definida a hora de fazer o trabalho para casa (tpc), a hora de brincar e o momento de arrumar a mochila. O psicólogo diz ainda que os pais não deviam permitir às crianças a utilização do computador e dos smartphones com internet no quarto. “Por vezes os pais nem sabem que as crianças não estão a dormir, que estão com o smartphone”. Antes eram os livros? Talvez, mas a luz dos tablets, defende este especialista, atrasa o sono.
“A solução para as batalhas matinais”, defende Cristina Valente, também passa pela “planificação. “Se os pais conseguirem acordar meia hora mais cedo, se escolherem a roupa à noite, deixarem a mesa do pequeno-almoço pronta no dia anterior… Se houver rotinas implementadas as coisas fluem”, diz.
Uma forma de estabelecer rotinas pode passar pela criação de cartolinas com fotografias das crianças em todos os momentos da manhã e da noite, desenhando com as imagens uma sequência: jantar, lavar os dentes, deitar… A sugestão é da psicóloga Cristina Valente, que pensa que isto ajuda os mais pequenos porque “são muito gráficos”.
Outra rotina pode passar por usar o tempo das viagens de ida para a escola para deixar as crianças dormir mais um pouco, diz José Morgado e aproveitar o regresso a casa para conversar sobre o dia escolar.
Trabalhos para Casa (TPC)
Tanto José Morgado como Cristina Valente estão de acordo num ponto: a eliminação dos TPC. Pelo menos para as crianças do 1º ciclo. Para a psicóloga, essa medida “solucionaria o problema imediato dos pais”, uma vez que o ambiente que os mais novos encontram em casa para fazer esses exercícios não é o melhor, depois de um dia de trabalho. “Há miúdos que estão com os pais a partir pedra até às 21h, 21h30… Não é possível“, diz Cristina Valente.
O professor do ISPA defende que o “tempo que os miúdos passam na escola deveria ser suficiente para realizar as atividades”. José Morgado diz que as situações devem ser diferenciadas para crianças no ensino básico e para aquelas que frequentam o ensino secundário e que se os pais insistirem junto dos professores para estes passarem trabalhos para casa, o tipo de exercício proposto deve ser orientado para “o treino de competências” e não para que a criança compreenda em casa aquilo que não aprendeu na escola. “Se ele não aprendeu bem na escola, como é que em casa, sozinho, vai perceber melhor?”. O psicólogo defende que neste último caso podemos estar a “promover assimetrias”, uma vez que nem todas as estruturas familiares são iguais e nem todos os pais têm competências para ajudar os filhos.
Trabalho em casa, em vez de trabalhos para casa
Se não houver TPC, a criança passa a ter tempo para “outro tipo de trabalho”, que José Morgado define como “trabalho em casa”. Os pais podem aproveitar o tempo livre para, em conjunto com os filhos, ver um programa de televisão, contar histórias, ler o jornal e, depois, discutir aquilo que viram ou leram. “Se eu lhe ler uma notícia do jornal e lhe pedir: ‘Faz lá uma síntese deste artigo’… Isto é bom para a escola. Se ele souber discutir ideias, isso é bom”, explica o psicólogo e professor do ISPA.
Cristina Valente aconselha os pais a estabelecer um momento de tranquilidade no final da tarde, em que “os estímulos da casa deviam sossegar por 20 minutos”. A ideia passa por “criar um ritmo parecido entre todos os elementos da família”, em que “se desliga a televisão” no espaço comum, se incentiva a criança a, em vez de estar no quarto sozinha, “trabalhar ao pé da mãe enquanto esta cozinha”. Se os pais tiverem de fazer algum tipo de trabalho devem fazê-lo ao mesmo tempo que as crianças, por exemplo.
Apesar destes conselhos, a psicóloga pensa que a ideia de um tempo de qualidade ao final do dia é “um mito” para a família portuguesa típica devido à capacidade financeira dos pais e às características do mercado de trabalho nacional. “Esse tempo é ilusório. Não conseguimos estar com eles da forma correta depois de um dia de trabalho quando temos de fazer o jantar. Esse tempo de qualidade não existe de forma objetiva”, diz. Por isso mesmo, a psicóloga pensa que por vezes essa tentativa de estar com os filhos “é tão conflituosa e carregada de tensão”, que acaba por tornar-se preferível deixar a criança dormir. “É mais importante para o meu filho ir para a cama mais cedo do que estar um bocadinho comigo a ver televisão”. Assim, o verdadeiro tempo de qualidade só existe “ao fim de semana”, diz Cristina Valente.
Flexibilização dos horários e trabalho de backoffice
Aqueles que não se conformam com a ideia de que o tempo de qualidade “é um mito” podem tentar levar a cabo algumas mudanças na vida profissional. Mas ambos os psicólogos admitem as dificuldades de fazer isto em Portugal. José Morgado diz que todos estes fenómenos “deviam merecer uma atenção integrada”, para que fosse possível proceder a uma “organização diferente do trabalho“.
O psicólogo refere-se ao “trabalho em backoffice”, por exemplo, que permitiria aos pais trabalharem a partir de casa e que, na opinião do professor no ISPA, faz cada vez mais sentido devido às facilidades permitidas pela internet. Aflexibilização dos horários – permitir ao trabalhador começar o dia mais cedo para sair mais cedo, por exemplo – ou o tempo parcial “são medidas que existem em vários países, nomeadamente entre os nórdicos” e que podiam ajudar os pais, explica José Morgado.
Cristina Valente pensa que este movimento deve partir do indivíduo. “Se todos os colaboradores de uma empresa mostrassem que a vida familiar deles é importante e fossem exigentes nesta matéria, a gestão das empresas pensaria duas vezes antes de pôr os colaboradores a trabalhar até às 20h quando o horário de saída é às 18h”, diz.
A psicóloga conta (...) que sabe, por experiência própria, que este tipo de alterações é possível. Cristina Valente trabalhou durante anos numa empresa e quando teve filhos não abdicou das horas de amamentação a que tem direito. “No mundo corporativo há uma grande pressão para nunca utilizar essas horas de amamentação”, diz, mas acrescenta que cabe a cada um exigir os seus direitos. A psicóloga foi mais longe e há dois anos tomou a decisão de deixar o ambiente da empresa e começar a trabalhar a partir de casa porque queria estar mais tempo com os filhos. “Ia buscar os meus filhos às 19h e achava que não podia ser. Não ia voltar a ter tempo para partilhar esse tempo com eles”.
Educação a tempo inteiro não é escola a tempo inteiro
Não são só os pais que veem o seu dia de trabalho prolongar-se muito para lá do tempo oficial. Como consequência disso, muitas crianças ficam na escola horas depois de terminarem as atividades escolares. José Morgado diz que os horários estão pensados para ocupar a manhã e uma parte mais curta durante a tarde e que, depois disso, há atividades de enriquecimento curricular.
A questão levantada pelo psicólogo é esta: o local onde se desenvolvem essas atividades tem de ser a escola, obrigando a que as crianças permaneçam nesse local 11 horas por dia? “Talvez na maioria dos casos tenha de ser, porque os pais têm o problema da guarda dos miúdos enquanto estão a trabalhar, mas talvez fosse melhor se as crianças pudessem fazer a parte extra-curricular noutro local”. Isto porque, defende José Morgado, “precisamos de educação a tempo inteiro, mas não precisamos de escola a tempo inteiro”.
Por Catarina Fernandes Martins
In: Observador
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