Luís recebeu o subsídio de educação especial do filho e usou-o para pagar a renda em atraso. Pediu desculpas e acordou um plano de pagamentos com a clínica onde a criança é tratada. Maria garantiu, durante semanas, que ainda não tinha recebido da Segurança Social e quando percebeu que não podia negar mais desapareceu do mapa. Catarina confessou ter gasto parte do apoio, prometeu dar o que sobrou ao centro e acabar de pagar a dívida em prestações. Mas depois da promessa, deixou de atender o telemóvel. Os nomes são fictícios, mas os casos, relatados por terapeutas e psicólogos ao Observador, são bem reais e ilustram um problema, também ele real.
Este ano letivo, a Segurança Social passou a pagar o subsídio por frequência de estabelecimento de educação especial diretamente às famílias, mesmo àquelas que pediram para o dinheiro continuar a ser depositado na conta das instituições, tal como antes acontecia. Como isso não aconteceu, muitas dessas famílias, carenciadas, acabaram a usar as verbas para pagar outras despesas. Clínicas e terapeutas ficam sem receber e já começaram a deixar de seguir crianças com dificuldades de aprendizagem.
É o caso de Silvia, o nome que António Sérgio Cunha, sócio gerente da clínica Repetição e Diferença, deu à criança que deixou de acompanhar a 19 de março, depois de um ano de sessões de psicologia clínica e de terapia da fala, “com enormes progressos e aproveitamento”. “Foi dramático. Na sessão desse dia, a menina fez um cartão do dia do pai que eu pensava que ia entregar ao pai emigrado ou ao padrasto e afinal ofereceu-mo a mim”, contou o também psicólogo clínico. Mas, mesmo com o coração destroçado, Sérgio considera que “não é sério continuar a trabalhar nestas circunstâncias”, em que “mais de dois terços das famílias que já receberam os subsídios retiveram as verbas indevidamente”, até porque “mais cedo ou mais tarde a qualidade irá ressentir-se e serão as crianças a sofrer com isso”.
Silvia não é caso isolado. “Cerca de 10 crianças” já deixaram de ser seguidas nesta clínica, que presta serviços em Lisboa, Évora e Santarém, e “há perto de 70 em risco de interrupção” dos tratamentos, revelou Sérgio Cunha, criticando a mudança dos procedimentos face a anos anteriores. “Esta mãe, que usou o dinheiro para outros fins, dizia-me, no início do ano, que não queria o subsídio a cair na conta dela. Parece que estava a adivinhar. É como pôr um boião de doces à frente de uma criança”, ilustrou o psicólogo clínico.
“Estamos a falar de famílias carenciadas, que vêm de bairros problemáticos, que têm rendas em atraso e dificuldades em gerir recursos. Estamos a falar, por exemplo, de famílias com cinco pessoas que vivem com 380 euros por mês. É com este tipo de famílias que nós trabalhamos. E se há pais exemplares que nos dão o subsídio, outros não”, retratou Maria Oliveira, educadora especial da direção da Lapsis, Centro de Apoio Psicoterapêutico e Psicopedagógico, que também dirigiu as críticas para a Segurança Social, desculpando, até, alguns pais. “Muitos nem fazem por maldade”.
Andreia Costa, de 36 anos, é uma dessas “mães exemplares”. Em janeiro recebeu mais de 800 euros de subsídio, relativos aos meses de setembro a dezembro, e entregou a verba à Lapsis, onde a filha, de 15 anos, – com problemas cognitivos e sem memória auditiva – está a ser acompanhada. “Sou pobre, estou desempregada há um ano e o dinheiro daria muito jeito, mas não é meu! Mas há gente pobre de espírito que nunca pagou nada na vida e por isso não era agora que ia pagar”, resumiu Andreia ao Observador, garantindo que assinou um requerimento e ligou à Segurança Social a pedir para que o subsídio fosse entregue diretamente à Lapsis, como no passado, sem qualquer sucesso.
“Fico revoltada com isto. Ainda por cima recebemos o subsídio juntamente com o abono de família e é uma confusão para ver qual o montante que corresponde a um e a outro”, rematou Andreia, que reconhece o esforço da equipa que acompanha a filha, mesmo com pagamentos em atraso. Por isso faz questão de agradecer os progressos da adolescente que, este período, pela primeira vez, não teve negativas.
Segurança Social diz que “sempre foi” assim
Questionado (...), o Instituto da Segurança Social (ISS) afirmou que “o pagamento do subsídio de educação especial sempre foi e é, por regra e de acordo com a lei em vigor, efetuado a favor dos encarregados de educação (…), privilegiando-se assim a relação direta entre o beneficiário e a Segurança social”. E, segundo a mesma fonte, “apenas em situações excecionais, o pagamento pode ser feito aos prestadores de serviços”.
Acontece que o decreto regulamentar 14/81, ainda em vigor, não se refere a situações excecionais, mas sim a outras hipóteses, em alternativa ao pagamento direto às famílias. O subsídio de educação especial “poderá ser, contudo, pago directamente ao estabelecimento”, sempre que haja um “pedido expresso” dos encarregados de educação ou “por determinação do organismo processador, quando de modo reiterado o encarregado de educação não utilize o subsídio para o fim a que se destina”.
Procurando justificar as mudanças que foram sentidas este ano letivo um pouco por todo o país, e agora denunciadas, a mesma fonte oficial do ISS explicou que, “ao longo dos últimos anos, o Instituto da Segurança Social, em parceria com o Ministério da Educação e Ciência, tem vindo a definir formas de colaboração para garantir a uniformização e agilização dos procedimentos a nível nacional e a rentabilização dos recursos existentes”. E foi precisamente nestes processos de uniformização que “foram detetadas algumas situações em que os pagamentos diretos aos prestadores de serviço eram efetuados de forma recorrente, sem que houvesse fundamento para esta situação que deve ser, de acordo com a regulamentação, de caráter excecional”. Neste momento, afirmou a mesma fonte, “o processo é uniforme em todo o país”.
Mas a realidade não é como o Instituto a está a pintar, garante Maria Oliveira, da direção da clínica Lapsis. “Isto é um problema. Não há um funcionamento geral em todo o país. Há zonas em que a instituição continua a receber diretamente da Segurança Social e outras em que são os pais”, mesmo quando estes pedem para que o subsídio seja entregue diretamente à clínica, como foi o caso de Andreia Costa.
“Estamos completamente asfixiados. Trabalhamos com as famílias, com os miúdos, fazemos supervisão clínica, não mudamos equipas terapêuticas, vamos às escolas e às comunidades, tratamos à volta de 200 crianças, em Lisboa e no Seixal (distrito de Setúbal), e a Segurança Social de Lisboa, quando a confrontámos com este problema, o que nos disse foi: ‘Não temos nada a ver com isso. Nós já pagámos aos pais, fale com a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ)”, contou, indignada, Maria Oliveira.
Psicólogos e terapeutas ficam meses sem receber
Aborrecidos e preocupados estão também os terapeutas e psicólogos que trabalham com estas crianças com necessidades educativas especiais. É que os técnicos só recebem quando a Segurança Social paga. Sempre foi assim e a Segurança Social sempre demorou cerca de quatro meses a começar a pagar, mas pagava. Este ano o atraso está a ser ainda maior pois “em abril havia processos suspensos na Segurança Social por falta de recibos” [já vamos a esta história mais à frente] e “acresce a incerteza do pagamento”, por haver pais que simplesmente não chegam a entregar o subsídio aos técnicos, desabafou Susana Ângelo, que já deixou de acompanhar uma criança.
Esta psicóloga clínica, que faz o acompanhamento de 10 crianças dos nove aos 15 anos, já escreveu no livro de reclamações da Segurança Social por não concordar com este procedimento. “Tem sido muito complicado e esperamos que agora em maio venham os pagamentos, caso contrário só chegarão no final do período e aí será ainda mais difícil entrar em contacto com os pais”. Tem-lhe valido o mealheiro que faz sempre que recebe pagamentos em atraso e o marido, que está empregado e com um ordenado estável.
Também o psicólogo Nuno, como preferiu ser chamado, relatou casos de atrasos da Segurança Social e de incumprimento dos pais. Mas mais do que o incumprimento, Nuno focou-se na maior dificuldade em reaver o pagamento das sessões.
“Temos de estar sempre à espera e muitas vezes as famílias não sabem fazer transferências, nem sabem qual é o valor do subsídio de educação especial, pois recebem-no junto com o abono de família. Muitas vezes tenho de ir ter com os pais e ajudá-los a fazer as transferências”, relatou o psicólogo, que teme que este ano as suas férias de verão sejam interrompidas “para andar atrás das famílias, para que estas façam as transferências”.
Um dos receios de Maria Oliveira, da Lapsis, é que os técnicos que trabalham diariamente com estas crianças “deixem de colaborar” com a clínica. Susana Ângelo admitiu que só não sai da profissão por “paixão” ao que faz. “Saio das sessões a sentir que é mesmo isto que quero”, finalizou.
Centros obrigados a emitir recibos antes de receber o pagamento
Mas os problemas não se ficam por aqui. No passado mês de abril, a Segurança Social notificou as famílias carenciadas com crianças com necessidades educativas especiais – que necessitam de medidas específicas de educação que implicam a frequência de estabelecimentos adequados ou o apoio educativo específico fora do estabelecimento escolar -, a dar conta que, a partir de agora, para receberem o subsídio teriam de entregar não apenas uma fatura, mas um recibo da instituição, como se as sessões já tivessem sido pagas. E que só depois de entregarem esse recibo seriam reembolsadas pelo Estado, numa verba que varia de acordo com a mensalidade do estabelecimento, o rendimento do agregado familiar, o número de pessoas do agregado e as despesas com a habitação. Uma novidade recebida com muito desagrado pelas instituições.
“A Segurança Social demora nunca menos de três ou quatro meses a começar a pagar as consultas e o subsídio máximo ascende aos 293,45 euros por mês. Ora, vamos imaginar que estão em falta quatro meses, o que daria mais de 1.100 euros.Você acha que estas famílias têm possibilidade de pagar primeiro e serem reembolsadas só depois? Claro que não!”, exemplificou António Sérgio Cunha, da clínica Repetição e Diferença, explicando que esta medida só vem prejudicar ainda mais os centros, que terão de passar recibos de um valor que não lhes foi pago e poderá nem vir a ser.
Maria Oliveira também se confessou “assustada”. Até porque, com o novo procedimento, a Segurança Social obriga as instituições “a entregar os recibos de um pagamento que ainda não nos foi feito, se queremos que venha o pagamento depois”. “Imagine que depois esses pais nunca chegam a entregar-nos o subsídio? Estamos completamente assustados porque entregámos recibos de coisas que não fizemos nem recebemos”, rematou.
Tanto Maria Oliveira, da Lapsis, como Sérgio Cunha, da Repetição e Diferença, já tomaram diligências para tentar resolver o problema que estão a enfrentar este ano letivo. Maria enviou carta ao Instituto da Segurança Social, ainda sem resposta, e Sérgio fez uma queixa a 7 de abril, sendo que o recibo em como a queixa foi recebida só chegou esta semana, e também já fez uma exposição ao Provedor de Justiça, a 23 de abril. Se os procedimentos não voltarem a mudar, avisam, o apoio a estas crianças vai piorar e poderá mesmo deixar de existir no próximo ano letivo. Em causa estão crianças com problemas cognitivos ou motores mais graves ou menos graves, mas também crianças vítimas de maus tratos ou abusos sexuais, ou com uma grande instabilidade emocional, ou problemas de personalidade graves. E o apoio pode ir desde a terapia da fala, à psicoterapia, à pedopsiquiatria e à psicomotricidade, entre outras terapias.
Fonte: Observador por indicação de Livresco
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