Não tendo dados estatísticos oficiais sobre o assunto e atrevendo-me a generalizar da minha prática clínica, verifico que uma grande parte dos pedidos de acompanhamento psicoterapêutico de crianças está relacionada com o confronto e desespero dos pais delas com as dificuldades escolares dos filhos, nomeadamente ao nível dos resultados académicos.
Têm razão os pais em alarmar-se porque, de facto, uma alteração brusca e consistente nos resultados escolares é um bom indicador de sofrimento psíquico intolerável na criança — como o é, de resto, a diminuição de vários tipos de performance nos adultos —, revelando necessidade de ajuda em digerir e elaborar experiências psíquicas demasiado intensas e dolorosas ou confusas.
No entanto, analisando mais atentamente estas situações, deparo-me com um quadro de frequência crescente: muitas destas crianças, algumas delas até já diagnosticadas e medicadas para défices de atenção ou hiperatividade, não têm propriamente insuficientes em larga escala nas avaliações escolares, mas passaram de Muito Bons e Bons para Satisfaz. E este, sim, é um verdadeiro sinal de alarme!
Eu recordo-me que, estudando o que gostava de estudar, gostava também de ter bons resultados. Parecia-me justo e uma equação simples: investi x, colhi x. Mas também me recordo que não eram todas as matérias que gostava de estudar e, portanto, não investia em tudo de igual forma; não obstante, a fórmula mantinha-se: investia x-1, colhia x-1, e ficava satisfeito. Claro que por vezes haveria percalços e lá calhava colher pouco do muito investido, mas também acontecia colher muito de muito pouco investimento: uma mão lavava a outra e a coisa componha-se satisfatoriamente. É certo que houve momentos em que tive de dar o máximo e nesses, então como agora, umas vezes conseguia, outras não; mas lá ia mantendo um nível suficiente de satisfação, agora como então.
O que me parece verdadeiramente problemático para o desenvolvimento destas crianças — e, portanto, no nosso desenvolvimento cultural — não é tanto a questão das negativas. Quantas vezes não serão as negativas uma via possível, dadas as circunstâncias, de ainda assim se afirmarem estas crianças contra as expectativas irrealistas (e até sádicas) de quem se esquece que ATL é atelier de tempos livres e não oficina de trabalhos para casa? Quantas vezes não funcionará a recusa a estudar, e as negativas daí consequentes, como oposição e lembrete a quem se esquece que um modo próprio de aprendizagem na infância, e método adequado de ocupação dos tempos livres, é brincar e não só marrar? Sejamos honestos e admitamos que a maior parte das nossas crianças sai de casa de manhã quando os pais saem, entram na escola primeiro que eles no trabalho, porque são eles que as levam, e chegam a casa com os pais ao fim do dia; e quando então querem brincar com os pais, ou há coisas que estes têm de fazer, ou não as fazem nem brincam porque estão cansados — e as crianças, parece, não têm direito ao cansaço.
Dizia que realmente danoso para o desenvolvimento não são as negas, que fazem parte das experiências vitais, mas a negação de outro aspecto fundamental da vida: a satisfação. Estas crianças estão a ser ensinadas — pelos pais, pela escola, por nós — que satisfaz não é suficiente. Pois isso é profundamente errado, até mesmo ao nível etimológico: satisfaz vem do latim satis, para suficiente, e facere, para fazer: ou seja, quer precisamente dizer fazer o suficiente, como em “não é preciso mais que isso, já basta”. Suficiente, por sua vez, vem de acrescentar a facere o prefixo su, que quer dizer acima ou para cima (como em tira-mi-su, um doce que nos leva ao céu!): ou seja, suficiente é, literalmente, fazer acima do que tinha de ser feito, vulgo “melhor que a encomenda”.
E é esse o problema destas crianças: sentem não corresponder à encomenda, que lhes é cobrada a insatisfação de quem os encomendou. O problema destas crianças é terem todo um sistema montado a negar-lhes a satisfação do ser suficiente, a injectar-lhes insuficiência narcísica, a pôr-lhes em cima o peso da ambição desmedida e frustração das gerações que lhes precedem — e provavelmente a inveja de não sermos nós, agora, as crianças, e de no nosso tempo não termos tido o que elas agora podem ter; mas esquecemo-nos que tínhamos tempo, e elas agora não.
Admira, então, que fiquem hipervigilantes estas crianças, desviando a atenção para cada novo estímulo que apareça? — por um lado, desejo de explorar e brincar com o mundo, por outro, necessidade de vigia ao sentirem-se atacadas por onde menos esperam: por quem, devendo ser uma base segura é, afinal, uma fonte de ameaça. Admira que esmoreçam e adormeçam a mente no estudo, procurando brincar internamente, num sonho, os sonhos que não podem brincar na realidade? E é de medicação e medidas de controlo que precisam, quando afinal são tão só, muitas das vezes, resistentes na luta por aquilo que nós adultos nos esquecemos tanto de fazer e que nos define como humanos: aprender a sonhar e sonhar para aprender?
O problema não é destas crianças, é nosso, que para andarmos satisfeitinhos na vida nos esquecemos do que satisfaz.
António Alvim
Fonte: Mais Psi a partir do FB
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