sábado, 9 de maio de 2015

Os nossos miúdos sabem demais?

Aos dois anos e meio, o João já sabe dizer os nomes dos elementos da Tabela Periódica. Já sabe que o Mg corresponde ao Magnésio e que o S corresponde ao Enxofre. A Matilde conta apenas três anos de vida e já sabe ler. Os dois não se conhecem, mas têm algo em comum: adquiriram uma competência mais cedo do que era suposto.

Os pais rejubilam com os feitos dos meninos. Descobrem pequenos génios que já debitam matéria de grandes. Mas será este conhecimento precoce desejável? Pode ser mau saber demais? A experiência do pediatra Mário Cordeiro responde de imediato. "As etapas de aprendizagem têm de ser respeitadas. A descodificação dos símbolos e a aquisição do conhecimento vai-se fazendo a pouco e pouco, por vezes mais numas áreas do que noutras, mas não deve ser ‘metida a martelo'”.

Atirar informação não significa ser sábio, sentencia o membro da Sociedade Portuguesa de Pediatria e da British Association for Community Child Health. “Uma coisa é informação, outra é conhecimento, e outra – a mais importante e funcional – é a sabedoria. Esta só se adquire com a experiência e com o tempo“. Até lá, “podemos ensinar tudo porque fica tudo registado”.

Qual é a fronteira entre saber muito e ser sobredotado?

“Uma criança sobredotada é excelente em tudo”. Mito. Uma criança sobredotada tem um desenvolvimento muito acima do normal numa determinada área relativamente à idade que tem. Ou seja, um dos traços que caracteriza estas crianças é o desequilíbrio no desenvolvimento. Um exemplo: são crianças que são capazes de ler e escrever muito cedo mas, do ponto de vista emocional, estão pouco desenvolvidas. Esta é a explicação de Rosa Gouveia, pediatra e membro da Sociedade de Pediatria do Neurodesenvolvimento.

O pediatra Gomes Pedro, que já celebrou 50 anos de carreira, diz que é “raro” existirem sobredotados. Mário Cordeiro não acredita sequer no conceito — acredita, sim, em talentos. “Ter talentos múltiplos é excelente, mas sem os outros três “ts” – trabalho, tempo e técnica -, ter um talento não servirá de muito. Há de facto crianças com dotes em algumas áreas, mas a inteligência racional, na qual se exibem, nem sempre vai a par da inteligência emocional”.

O ideal é seguir o percurso habitual da aprendizagem. Até porque, quando não é assim, o mais pode ser mau. “Há crianças que sabem as marcas dos carros todos. Há crianças que sabem os nomes de todas as pontes e viadutos do país. Se tiverem um interesse restrito para uma determinada área do conhecimento, isso pode estar integrado numa patologia do Neurodesenvolvimento, como uma perturbação do espectro do autismo“, explica Rosa Gouveia. Uma das características desta patologia do desenvolvimento é a criança ter um interesse muito restrito e não se interessar por mais nada.

Antes dos alarmes, a pediatra salienta que “é preciso avaliar o desenvolvimento global da criança”, até porque “o conceito de normalidade é muito lato”, diz. É preciso perceber se esse “saber demais” tem algum significado patológico.

Imaginemos uma criança de seis anos que entra para o primeiro ano da escola primária. E imaginemos agora que essa criança já sabe ler desde os quatro anos – competência que só deveria aprender na escola primária. Quando estiver na aula e a professora estiver a ensinar a ler, pode sentir-se desmotivada e desinteressada.

“Pode perturbar a aula, pode ter problemas comportamentais e escolares”, aponta Rosa Gouveia. Afinal, ela está a ouvir uma matéria que já conhece. Está na aula a fazer o quê, então? É esta a pergunta que a criança fará a si própria. “Cabe ao professor perceber isso e dar-lhe tarefas diferentes para não se aborrecer. Pode dar-lhe pequenas responsabilidades, como ajudar os colegas”.

Mário Cordeiro simplifica a situação. “O mesmo acontecerá com uma criança filha de pais ingleses, por exemplo. Quando chega a disciplina de Inglês terá de aprender o significado de ‘yellow’ e ‘green’, que sabe desde que nasceu. E depois? Cabe aos professores dar alternativas e mostrar que, se sabe muito inglês, porventura sabe menos História“, por exemplo. Gestão — é esta a palavra-chave.

“Quanto mais estímulos, melhor”. Grande parte dos pais concordaria com esta frase para que o seu filho se desenvolva, saiba e aprenda muito. Mas não é este o conselho de Rosa Gouveia. “A criança deve interessar-se por coisas diferentes”. Se a criança se interessa pela leitura numa idade muito precoce, então cabe aos pais “não estimular demais e tentar que a criança não se fixe nessa aptidão, mas que tenha outras ocupações”, como brincar na rua. E a estratégia que os pais seguem tem de ser seguida também pelos educadores e professores. Aqui, a coordenação é importante. “O desenvolvimento da criança tem a ver com a vida familiar e com a vida no serviço de educação. Tem de haver um sentido entre o que se passa em casa e na escola”, adverte o especialista Gomes Pedro.

A aprendizagem de competências cedo estará, em parte, relacionada com o mundo digital em que as crianças crescem. Internet, redes sociais, tablets e outros dispositivos são elementos diários na vida delas. Resultado? “A criança entra demasiado naquilo que vê os irmãos mais velhos fazer, o pai fazer, a avó fazer, que é este não parar de clicar para ter mais um estímulo visual ou auditivo“, refere Gomes Pedro, pediatra e anterior diretor da Clínica Universitária de Pediatria e do Serviço de Pediatria do Hospital de Santa Maria (Lisboa).

Mas este “fenómeno” pode não ser só próprio da geração mais recente. Mário Cordeiro confessa-se “culpado”: começou a ler aos quatro anos. O seu filho mais velho começou também a ler aos quatro anos e tem um neto com três anos que já sabe ler. Mas o pediatra não vê nada de genial nestes factos. Na altura, a única vantagem que encontrou foi “ter acesso à informação escrita mais cedo, o que deu algumas vantagens com os pares nos primeiros anos. Mas tudo isso se desvanece quando as outras crianças adquirem essas competências. Outras crianças terão aprendido a tocar piano ou violino nessas idades, coisa que eu não fiz”, justifica.

Parece uma frase feita, mas todos os especialistas insistem em reforçá-la: não há duas crianças iguais. É difícil definir em que idade é suposto executar determinada tarefa. Cada criança tem o seu ritmo, mas aqui está um guia geral traçado pelos especialistas com algumas balizas de conhecimento e desenvolvimento:

É importante estabelecer os principais vínculos. Aos nove meses, por exemplo, um bebé diz adeus e atira beijinhos porque é pressionado e incentivado pelos pais ou pelos avós. Estesjogos intra-familiares são importantes porque despertam a atenção do bebé.

Aos 12 meses, o bebé localiza sons virando a cabeça, diz «ma-ma» e «pa-pa» e pode também fazer outros sons. Quando alguém se esconde atrás de uma fralda ou de uma porta, a criança ri-se com a brincadeira. Aqui podem começar aqui as tentativas do bebé para se pôr em pé — pode dar já uns passos agarrados aos móveis e sofás, por exemplo. Aos 18 meses, é tempo de o bebé tentar tirar os sapatos sozinho, tentar comer sozinho e andar sem apoio. A partir dos dois anos (24 meses), é importante alargar o estabelecimento de vínculos afetivos a outros membros da família.

Aos 3 anos ainda é idade de brincar, jogar e relacionar-se com os outros pares da vida. A criança já deve conseguir subir e descer escadas alternando os pés nos degraus, dar um pontapé numa bola, correr com facilidade e pedalar num triciclo. Já deve saber pegar num lápis corretamente e desenhar linhas verticais, horizontais e circulares; deve perceber conceitos físicos como “sobre”, “dentro” e “debaixo” e saber o seu nome, idade e sexo. As pessoas que não a conhecem devem conseguir entender a maior parte do seu discurso.

Aos quatro anos pode começar a ser estimulada a consciência fonológica – saber identificar sons. Os sons de algumas letras, principalmente algumas vogais, podem ser introduzidos na pré-primária, tal como a aprendizagem de rimas e de cantigas. Por exemplo: a palavra “gato” tem quatro fonemas – a criança pode começar a aprender a descodificar esses quatro sons, para depois convertê-los em letras quando chegar à escola primária. Aqui, a criança deve saber as cores principais, entender o conceito de contar e saber alguns números.

Aos cinco/seis anos começa um desenvolvimento cognitivo enorme. Antes de entrar para o primeiro ano da escola primária, não é esperado que a criança saiba ler mas é esperado que saiba relacionar alguns números com quantidade. Deve saber desenhar, por exemplo, algumas letras, um triângulo e outras formas geométricas

As crianças são pressionadas para saberem muito?

Os dois pediatras (...) respondem em uníssono: sim. João Gomes Pedro fala em dois responsáveis: os serviços de educação e os pais. “Querem que os meninos conheçam as letras ou que saibam a tabuada muito cedo”, aponta o pediatra.

Mário Cordeiro vai mas longe. “Ligamos muito ao facto de uma criança saber ler ou contar, ou seja, descodificar os símbolos alfa-numéricos, mas não nos inquieta saber se sabe que o verde é para passar e o encarnado para parar, que também representam símbolos. Se defendo, por um lado, que se ensine e transmita informação e conhecimento sobre tudo, desde cedo, o “carregar no play” deve ser feito na idade em que a criança assim o entenda… sem stress”, assinala o autor de “O Grande Livro do Bebé” e de “Educar com Amor”.

Aqui, a receita do sucesso parece estar em dosear e, sobretudo, saber ouvir. João Gomes Pedro, um dos maiores especialistas em desenvolvimento infantil, deixa claro. “Aprender não é defeito”. Mas, e esta é a parte mais importante, “é preciso equacionar a aprendizagem numa das dimensões mais decisivas da vida — a adaptação”.

A conclusão do pediatra Mário Cordeiro vem quase em jeito de apelo. “Deixemos as crianças serem naturais e normais (…) e não andemos sempre a ver, quais cavalos de corrida, quem vai à frente, quem sabe mais e quem é o melhor posicionado para presidente da República. Ainda faltarão umas décadas para tal. Até lá, deixem-nas ser, simplesmente, crianças”.

Fonte: Observador

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