Recentemente estive presente num debate sobre Indisciplina na Escola. Um debate vivo, participado e apelativo. Toda a gente, pais, alunos, professores, gestores, querem nele participar. Toda a gente tem uma história exemplar para contar, uma moralidade e um conselho a extrair. Ora, neste debate foi consensual entre investigadores do tema que a chamada “indisciplina” dos alunos é um fenómeno multifatorial. Quer dizer que quando se analisa um ato de indisciplina nos devemos sempre perguntar qual o papel que nele desempenham as comunidades, as famílias, as escolas, os professores e os outros alunos. Só analisando todas estas variáveis poderemos entender melhor porque é que um jovem é “indisciplinado”.
Não deixa de ser curioso refletir sobre a carga negativa que a simples enunciação da palavra “indisciplina” suscita: um indisciplinado é, por princípio, alguém que infringe uma ordem que se considera legítima e justa ao contrário de um transgressor, de um revolucionário, de um resistente ou de um indignado que se insurge contra um status que pode ou não ser justo. Mas adiante.
Dizíamos que apesar de todos saberem que o fenómeno da indisciplina é multifatorial, quando esmiuçamos a conversa, a discussão acaba sempre por aterrar nos alunos e nos professores. Por um lado, não é de estranhar: podíamos benignamente pensar que se fixa nos alunos e nos professores, que é onde é possível e mais eficaz atuar (a sociedade, a família e a escola têm uma inércia à mudança muito maior…). Mas, por outro lado, não deixa de ser redutor, parcial e mesmo injusto que se reduza a questão da indisciplina a alunos “desviantes”, reguilas, malcriados, sem regras, sem limites, arrogantes, etc., e a professores, tíbios, desapoderados e medrosos. Não é correto que se conceba a indisciplina como um fenómeno multifatorial para depois “quem paga as favas” sejam só os alunos e os professores, como se, afinal, a indisciplina fosse fruto exclusivo da relação entre eles.
Este grande interesse de compreender a indisciplina é fruto da consciência que os professores têm que é preciso repensar as relações que se estabelecem entre a sociedade, a família, a escola, os pares e eles próprios com o aluno. E se é certo que a intervenção sobre os valores e as atitudes da sociedade, da família e da escola é difícil, talvez não seja possível pensar em soluções sem conceber uma intervenção que seja mais alargada e holística do que a mera e estafada “relação professor-aluno”. Que significa esta intervenção alargada e holística?
Antes de mais, uma presença mais evidente da sociedade na escola. A discussão sobre a organização social, sobre as razões e os processos de resolução da conflitualidade, as questões da justiça social devem ter um maior protagonismo dentro da escola. Desta forma, talvez seja possível aumentar o interesse dos alunos, discutir diferencialmente modelos de resolução de conflitos de outras realidades.
A família tem também de estar mais presente na escola. Sabemos quão difícil é esta ligação entre famílias que frequentemente desvalorizam a escola e o trabalho pedagógico e professores que desconfiam do julgamento e atuação das famílias. Não é certamente possível atalhar eficazmente a indisciplina sem que as famílias se responsabilizem minimamente por assumir uma (a sua) parte na discussão, nas propostas e na solução destes problemas.
Esta intervenção alargada pressupõe também uma modificação da escola. Não podemos ignorar que alguma indisciplina é oriunda de um descompasso entre formas de ensinar e formas de aprender. Uma escola que valorize a participação dos alunos, a relação com a prática, o trabalho por projetos, uma pedagogia centrada na aprendizagem de todos e um currículo conectado com a vida é fortemente preventiva de episódios de disciplina.
Chegamos enfim aos “culpados do costume”: os alunos e os professores. Não se pode ignorar que há um número cada vez maior de alunos que, por razões muito diversas, deixaram de estar interessados na escola e naquilo que eventualmente ela lhes poderia trazer. Em regiões pobres, a concentração de alunos com desinteresse e desencanto pela escola origina situações educativas em que domina a impunidade e uma grande agressividade e que se tornam frequentemente numa demonstração de força de um lado e do outro. Precisamos sempre de procurar entender os porquês destas situações de indisciplina e não atribuir explicações simplórias para problemas que são multifatoriais e complexos.
Encarar a questão da indisciplina é, pois, uma tarefa de toda a escola (de todos os adultos e jovens que lá se encontram e se relacionam). Uma tarefa que deve contar com a mobilização inteligente e positiva das famílias e das comunidades.
E claro… não menosprezar a alteração da escola. Por vezes parece que alguma (muita?) indisciplina se gera na relação entre quem quer ser guardião de valores conhecidos e tradicionais e quem anseia por uma educação que o venha encontrar onde ele efetivamente está para depois o acompanhar no seu caminho para o conhecimento e para uma frutuosa participação social. Seria certamente positivo pensar na indisciplina como uma dissonância de valores. Esta dissonância entre o aluno e as regras da escola, os professores, a família e a sociedade, por muito difícil que seja abordar, é o ponto de partida para não se perderem muitos alunos que foram levados a pensar que a indisciplina é a única forma de manifestar o seu desgosto e a sua marginalidade. Vamos conceber e atuar face à indisciplina de uma forma abrangente e holística.
David Rodrigues
Presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial; Conselheiro Nacional de Educação
Fonte: Público
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