domingo, 22 de março de 2015

Que nota dás à tua infância?

O recente relatório do Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão independente com funções consultivas, que congrega diferentes sensibilidades da sociedade, intitulado “Recomendação – Retenção escolar no ensino básico e secundário”, é um documento muito pertinente na atualidade, que merece uma leitura atenta do seu fundamento e argumentação. No entanto, a meu ver, fica aquém na consequência, isto é, nas recomendações finais.

A questão da retenção escolar liga-se a uma outra problemática a que este documento também alude e denomina de “a cultura da nota”. Cito, “a excessiva cultura da nota (que vigora), sem a correspondente preocupação nos processos que promovem as aprendizagens”.

A excessiva cultura da nota atualmente envolve todos os níveis de ensino e manifesta-se nas crianças e nas famílias com maior ou menor disfunção e por vezes com sofrimento.

A excessiva cultura da “nota” (a avaliação sumativa) tem um impacto negativo, em oposição à avaliação formativa, nas crianças, nos pais, nas famílias, nos professores, na escola, na aprendizagem e na saúde... 

Philippe Perrenoud, no seu artigo “Não mexam na minha avaliação!”, mostra como caminhamos para que a avaliação sumativa (as notas) seja o laço mais constante entre a escola e a família, à exceção, digo eu, de algumas circulares sobre piolhos. “Preocupadas..., as famílias aprenderam a fazer bom uso destas informações: contestam-se escalas e correções; (...) utilizam-se as notas para modular a pressão exercida sobre o trabalho escolar, o sono, as saídas, os tempos livres... Podemos discutir o mérito deste sistema de comunicação tão pobre que faz com que os pais se limitem a agir em função de algumas indicações numeradas que não conduzem a nenhuma representação precisa do que o aluno realmente domina.”(in,“Avaliação em educação: novas perspetivas” de A. Estrela e A. Nóvoa) 

A cultura da nota, que é vigente e incentivada por muitas práticas recentemente instituídas como os exames nacionais no ensino básico, não é suportada por nenhuma evidência das ciências (medicina, psicologia, neurociências, sociologia, pedagogia…), mas um mero 'achado arqueológico', agora recuperado e em voga.

A história da educação e do conhecimento dificilmente se separa da história da avaliação. E a educação e a avaliação mantêm, na História, uma relação muito próxima aos ciclos políticos e económicos. 

Nada de novo, afinal, nos últimos milénios. Houvesse imprensa, este texto poderia ser redigido há milhares de anos, quando, na China, se construiu um sistema complexo de ensino para preparação para exames determinantes para a entrada na academia imperial de Pequim, de jovens oriundos dos recônditos lugares, que assim acediam primeiro a escolas nas capitais de distrito, condados, províncias e finalmente Pequim. O processo é milenar e sabemos até a matriz das provas, que cito: saber números e função, os três grandes poderes, as quatro estações, seis espécies de cereais, seis classes de animais domésticos, nove graus de parentesco, dez deveres relativos a sucessão dinástica. Aqui, como na Índia Antiga, a aprendizagem desejada era a imitação exata do saber instruído pelo mestre. 

Ainda são estes os modelos que queremos?

A avaliação está intricada no ensino, mas esta relação íntima em nada se confunde com o minicircuito a que tudo se quer reduzir – aluno – exame – nota – ranking – sucesso na vida. Não poderá haver maior equívoco que esta leitura simplista da escola.

Nos primeiros ciclos do ensino básico, anos tão verdes da infância, não estará a avaliação formativa mais vocacionada para o essencial, que é contribuir para a aprendizagem de cada criança?

Citando o CNE “embora a literatura e a investigação elejam a avaliação formativa como a modalidade de avaliação que deve orientar a ação educativa, a cultura escolar e as práticas vão em sentido diverso”. Porque deixamos a escola regredir por decreto? 

A avaliação formativa, a que compreende a individualidade de cada aluno, é sempre muito mais exigente para a escola. Não é o facilitismo, poucos testes, pouco trabalho, escola fácil, vida adulta difícil... pelo contrário, exige muito da relação de confiança que se estabelece, a aceitação de que há avanços e recuos, de que se erra, de que se ensaia, de que necessitamos que nos ajudem a identificar erros e a ultrapassá-los – que a escola nos regula e responde de volta. Que o professor esteja atento, que avalie obviamente com o instrumento que seja pertinente, para que possa ensinar melhor e para que o seu aluno possa aprender melhor e ir mais além.

Compreendo que é de facto difícil encontrar um modelo único de avaliação para aplicar às diferentes idades do ensino básico. Mas talvez valha mesmo a pena o legislador desistir e não decretar nada: não há como uniformizar e reduzir a infância a “uma nota”.

A infância e aprender na infância é uma permanente evolução, uma construção, uma variação... um futuro... citando Vergílio Ferreira, “(pois) toda a relação com o mundo se funda na sensibilidade, como se aprendeu na infância e não mais se pode esquecer."

Cristina L. Martins Halpern

Médica pediatra, neuropediatra

Fonte: Público

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