Numa troca de impressões recente com uma pessoa amiga, a propósito do projeto-piloto de municipalização do ensino, ela apodou a organização do sistema educativo público de “uma imensa manta de retalhos, sem qualquer coerência, em que ninguém percebe quem manda no quê”.
Conhecedora ex officio da estrutura orgânica do Ministério da Educação e Ciência, mas com um vasto currículo no mundo laboral e empresarial privado, transmitiu-me uma daquelas conclusões claras, eivada pelo ceticismo que habitualmente acompanha o saber de experiência feito: “é necessário um olhar de base zero para a organização do sistema educativo, mas não tenho muita esperança”. Como jurista e cidadão, não posso estar mais de acordo.
Uma das tragédias da escola pública portuguesa é a intensidade da produção legislativa nesta matéria, acompanhada pela sobreposição frequente de “reformas” estruturais importantes, que alteram profundamente o quotidiano das escolas e estabelecem uma malha jurídica pouco operativa.
O recente exemplo do modelo de delegação/transferência de competências da administração central e das escolas para as autarquias locais é um excelente exemplo do tipo de confusão que se está a criar. Já aqui escrevi abundantemente sobre este tema e refiro-o apenas para salientar o aspeto, para mim mais pernicioso, deste novo regime jurídico: foi construído à margem do sistema jurídico-administrativo vigente para as escolas, ignorando olimpicamente os princípios de autonomia das escolas que, custosamente, vão fazendo o seu caminho entre nós e que singularizam os sistemas educativos mais avançados do mundo (veja-se, a título meramente exemplificativo, o novo poder, conferido às autarquias dos territórios da educação municipalizada, para decidir “sobre recursos apresentados na sequência de instauração de processo disciplinar a alunos”, cf. artigo 8.º, aliena a), v) do Decreto-Lei n.º 30/2015).
Quem manda no quê?
Tributário de uma conceção “clássica” do direito administrativo, procuro sempre encontrar a lógica sistemática das estruturas públicas para identificar os sujeitos do exercício do poder de direção que é a pedra de toque que confere eficácia às organizações. Este exercício tornou-se particularmente difícil no sistema educativo público.
Mesmo acreditando que a toada reformista que vivemos há vários anos tem motivações profundas e respeitáveis – a convicção de que se deve melhorar constantemente a escola pública, reduzindo os indicadores de insucesso e aumentando as qualificações dos portugueses – é inevitável concluir que o resultado prático da produção legislativa degenerou numa proliferação de poderes instituídos, muitas vezes sobrepostos.
Veja-se, por exemplo, a situação atual dos diretores de agrupamentos de escolas e de escolas não agrupadas. A figura – o órgão de gestão unipessoal, como tão apropriadamente lhe chama Licínio Lima – introduzida pelo regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, criado pelo Decreto-Lei n.º 75/2008 (entretanto alterado pelo Decreto-Lei n.º 224/2009 e pelo Decreto-Lei n.º 137/2012) visava, de acordo com o legislador da época, introduzir uma liderança clara nas escolas e no processo educativo. Contudo, decorridos sete anos sobre esta mudança de paradigma verifica-se que o diretor é, nominalmente, “quem dirige” mas, na prática está enredado numa teia burocrático-administrativa e numa situação de dependência face a outros intervenientes institucionais (outros órgãos da escola, autarquias e serviços descentralizados da administração pública) que tolhem a sua capacidade de decisão.
De facto dirige, mas pouco… Atente-se à competência para o recrutamento e gestão do pessoal não docente das escolas básicas e da educação pré-escolar dos técnicos das atividades de enriquecimento curricular, formalmente uma atribuição das autarquias locais (desde o Decreto-Lei n.º 144/2008) que coloca o diretor numa situação de sujeição face ao poder local e cria, se os intervenientes não estiverem em sintonia completa, problemas de administração juridicamente muito complexos, porque a natureza do vínculo funcional e hierárquico destes trabalhadores nem sempre é clara.
Autonomia para quê?
Ora, o melhor exemplo da falta de correspondência entre os textos legislativos e a realidade é, porventura, o da autonomia das escolas públicas.
Textualmente, autonomia é “a faculdade reconhecida ao agrupamento de escolas ou à escola não agrupada pela lei e pela administração educativa de tomar decisões nos domínios da organização pedagógica, da organização curricular, da gestão dos recursos humanos, da ação social escolar e da gestão estratégica, patrimonial, administrativa e financeira, no quadro das funções, competências e recursos que lhe estão atribuídos” (artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 75/2008 a que nos referimos anteriormente).
Se atendermos às disposições legais, esparsas por diferentes normativos, que concretizam cada uma destas “áreas de decisão”, verificamos que, em nenhum destes casos - organização curricular, gestão dos recursos humanos, ação social escolar e gestão estratégica, patrimonial, administrativa e financeira – o agrupamento de escolas dispõe de verdadeira autonomia de decisão, para não dizer que não dispõe de qualquer tipo de poder de decisão (situação que se agravará nos territórios da educação municipalizada).
As razões para este facto são simples de entender: o sistema administrativo público português tende a atribuir a competência para decidir a quem paga ativos e recursos ou a quem, não sendo a fonte primária de financiamento, os gere. Daí que sejam muitos a “meter a sua colherada” num modelo de gestão que deveria ser simplificado, recentrando-o nas escolas.
Basta lembrar uma norma, muito esquecida mas nem por isso menos importante, da Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 46/86, alterada pela Lei n.º 115/97 e pela Lei n.º 49/2005), segundo a qual “na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa” (artigo 48.º, n.º 3) para percebermos quão longe estamos do ideal de escola pública, autónoma e responsável, para que apontam todas as comparações internacionais nesta matéria.
Tiago Saleiro
Fonte: Educare
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