É um forte defensor da educação inclusiva. “Os estudos internacionais dizem que os bons sistemas de educação têm ao mesmo tempo excelência e equidade”, lembra David Rodrigues, presidente da Associação Nacional de Docentes de Educação Especial – Pró-Inclusão. Mas há entraves difíceis de superar, reconhece: “Muitas vezes desenvolvemos processos de inclusão que têm um grande voluntarismo, mas uma baixa sustentabilidade.” E, acima de tudo, lamenta que para o Ministério da Educação e Ciência (MEC), a educação especial continue a ser “a alínea que fica no final do documento”.
EDUCARE.PT (E): Quando o programa do atual governo foi apresentado, a Associação Nacional de Docentes de educação especial - Pró-Inclusão emitiu um comunicado onde criticava o facto de o documento referir apenas “o reforço da rede, dos recursos técnicos e das competências das escolas de referência em educação especial”.
David Rodrigues (DR): A educação especial (EE) é a alínea que fica no final do documento e procuramos dar-lhe uma maior centralidade. Os estudos internacionais dizem que os bons sistemas de educação têm ao mesmo tempo excelência e equidade. Por isso, advertimos o Governo para isso. Passados alguns anos, talvez possamos constatar que tínhamos alguma razão em estar preocupados com isso, porque temos assistido a um desinvestimento, na educação, nos recursos e no financiamento.
E: De 2011 até agora?
DR: Sim. Concretamente em 2014. A informação que a Pró-Inclusão tem do terreno é de que existe menor financiamento para as instituições, para projetos e para os Centros de Recursos para a Inclusão (CRIS). Muitos agrupamentos de escolas continuam a ter menos professores do que tinham em 2013, ainda que o discurso do Governo diga que não foram feitos cortes na educação especial.
E: Num artigo de opinião publicado num site de um jornal diário, lança uma questão à qual gostaria que respondesse: “A educação tem que ser mesmo inclusiva”?
DR: Pode haver uma educação que não o seja, mas a boa educação é inclusiva. Precisamos de criar nas escolas ambientes que sejam ecologicamente válidos, ou seja, em tudo semelhantes aos ambientes sociais em que a criança vai viver. Se eu criar nas escolas ilhas em que afaste delas os "maus" alunos, esse ambiente não vai ser ecologicamente válido. A inclusão é também uma oportunidade para todos os alunos poderem aprender uns com os outros. Não temos a ideia de que os bons alunos perdem tempo com os maus alunos. Mas que é possível criar ambientes nas escolas em que todos os alunos possam aprender com todos.
E: É contra as turmas de excelência, ou seja, que se possam separar os bons, dos médios ou dos maus alunos?
DR: Em relação à personalização do ensino, a investigação diz-nos que para individualizar o ensino tem de se proporcionar aos alunos vários enquadramentos. Não posso educar sempre o aluno na turma onde foi sorteado para participar. Não posso educá-lo só numa turma de excelência ou de maus alunos. Não o posso educar sempre sozinho ou em grupo. Isto é, a própria personalização do ensino tem a ver com esta diversidade de ambientes que nós criamos. Por isso, se for uma situação exclusiva eu sou absolutamente contra as turmas de excelência. Mas pode haver um agrupamento de alunos, por onde eles passem episodicamente para resolver uma questão de currículo.
E: Que políticas mais ameaçam a ideia de escola inclusiva?
DR: O que mais ameaça a escola inclusiva é o mito de que o ensino é melhor com turmas homogéneas. Recusa-se a inclusão porque aumenta a heterogeneidade dos alunos. Outro grande obstáculo é a ideia de que os alunos com dificuldades são um atraso de vida na escola, porque vão criar problemas, desmotivar e desfocar os outros da aprendizagem, etc. Não nego que isso se possa passar, mas é preciso tomar medidas para que não aconteça. Por exemplo, aumentando e melhorando os recursos da escola. A junção de alunos com e sem dificuldades não é em si própria boa, torna-se boa quando o professor é capaz de utilizar um conjunto de estratégias e de formas de organização de escola em que isso é viável. No entanto, a organização tradicional de escola pede turmas homogéneas e de excelência. Para desenvolver uma perspetiva inclusiva há que mudar a forma de interação, o modo como desenvolvo o currículo, as estratégias usadas. Só alterando tudo isso é que a diferença começa a ser interessante, no sistema tradicional é apenas mais um problema.
E: Está a haver algum abuso no sentido de direcionar os alunos para os currículos alternativos?
DR: Sem dúvida. Os currículos alternativos começaram por ser uma experiência pedagógica e acabaram por se alastrar imenso nas nossas escolas. Uma maneira de responder à diferença é criar currículos alternativos e vias paralelas para os alunos. Isto é, encontro vários grupos de alunos e conforme as suas capacidades faço um currículo especial, eventualmente turmas especiais, eventualmente escolas especiais para esses alunos. Outra maneira é manter uma via unificada para todos os alunos e aumentar os recursos. Se cortamos os recursos, a via que nos resta são os currículos alternativos. Portanto, não é de estranhar que eles estejam a crescer e que exista até uma certa recetividade.
E: O espetro das necessidades educativas especiais (NEE) é muito vasto, engloba as dificuldades de aprendizagem (cuja prevalência no sistema educativo rondará os 48%); problemas de comunicação (22%); deficiência mental (14%); problemas de comportamento (10%) e 6% dizem respeito às multideficiências, visual, auditiva, autismo, sobredotação… Englobar tudo no mesmo conceito não compromete a especificidade das respostas a dar a cada uma delas?
DR: Se compromete não devia. Quando falamos na perspetiva da educação inclusiva não quero subalternizar a importância de uma resposta adequada para todos os alunos. Sendo presidente de uma associação de professores, apelo muito aos meus colegas para se porem no papel dos pais e pensar: “Se eu tivesse um filho com essas condições, qual era a situação que eu reivindicaria para ele?” É essa situação que temos de tomar como referência. Sem dúvida que há um espetro muito grande de dificuldades. Mas é preciso ter um critério de exigência em relação à certeza de que a educação que proporcionamos a cada uma das crianças vai no sentido de atingir o seu nível máximo de proficiência.
É preciso ter essa premissa até por uma questão muito simples: as escolas regulares têm de se tornar concorrenciais em relação às escolas especiais. Que é dizer não posso procurar convencer famílias a colocarem filhos numa escola regular se ela oferecer um conjunto de serviços que é incomensuravelmente inferior à de uma escola especial. Por isso, as escolas têm de providenciar estes serviços, mas, sobretudo, a conceção de educação não pode ser pior por causa da diversidade, pelo contrário, tem de ser melhor.
E: Concorda que a educação especial saiu prejudicada com a introdução do Decreto-Lei n.º 3/2008?
DR: Não. Existem uns saudosistas que de vez em quando se vão lembrando do Decreto-Lei n.º 319/91.
E: … mais pela introdução da Classificação Internacional de Funcionalidade Incapacidade e Saúde (CIF).
DR: Não é uma lei perfeita, mas não foi um retrocesso. O Fórum de Estudos de Educação Inclusiva publicou em fevereiro de 2007 um documento contra a utilização pedagógica da CIF. A minha posição é contra, mas o DL n.º 3/2008 é muito mais do que isso. A CIF recuperou para a questão da identificação da deficiência o conceito ecológico no qual se diz que a condição de deficiência não é só fruto das estruturas do corpo, mas da relação entre essas estruturas do corpo, as condições individuais e o que está à volta da pessoa. A ideia é boa! A dificuldade é que o facto de a CIF ser uma classificação de deficiência afunilou as perspetivas em relação à pedagogia. Mais do que isso: a CIF subalternizou o papel da pedagogia nas NEE porque é uma classificação oriunda da saúde.
Mas neste momento, gostava de acabar com esta polémica em relação à CIF porque ninguém hoje liga à CIF como um instrumento sério. As pessoas pensam apenas no que é preciso fazer para a CIF confirmar as ideias que têm.
E: Fazendo uma revisão crítica da legislação que enquadra a educação especial, quais foram para si, de 2008 até agora, as piores medidas?
DR: Uma medida absolutamente perniciosa foi a Portaria 275/A que veio dizer que os alunos com NEE não tinham de cumprir os 12 anos de escolaridade obrigatória. De tal maneira que os alunos com deficiências deixavam praticamente de ter uma perspetiva educacional na escola. Porque passavam só a ter cinco horas semanais na escola. E ficavam na dependência das instituições. Depois das escolas, das famílias e dos alunos terem feito este esforço para a inclusão, quando chegavam ao 10.º ano, em grande parte, regressavam às escolas especiais. Portanto, isso foi uma má lei. Ainda que não tenha sido revogada, é uma lei envergonhada que ninguém quer falar muito dela.
E: E as melhores medidas?
DR: Todos os dias encontramos aspetos positivos nas escolas. Cada vez mais escolas estão disponíveis para apoiar projetos de inclusão. E, mais importante, cada vez há mais pais que não abdicam da inclusão para os seus filhos. Isso é algo de novo. Há alguns anos os pais diziam que queriam mais terapias, mais escolas especiais. Hoje querem mais inclusão.
E: Houve uma mudança na atitude dos pais em relação à inclusão?
DR: Os pais aperceberam-se que a vida dos filhos não se joga a curto, mas a longo prazo. E que só uma perspetiva inclusiva pode assegurar aos filhos a inclusão social e uma vida autónoma.
E: Em julho de 2009, a Comissão Europeia emitiu um relatório sobre o estado geral da educação especial nos Estados-membros e referiu uma coisa preocupante, que as crianças com NEE saem das escolas com poucas ou nenhumas qualificações para em seguida integrarem formação especializada, que em alguns casos limita em vez de melhorar as suas perspetivas de emprego. Como é a realidade portuguesa?
DR: Esse relatório veio lembrar que a condição de deficiência não pode justificar que a pessoa tenha menos habilitações, menos escolarização e menos acesso ao mercado de trabalho. Em Portugal somos vítimas desse espirito. As pessoas com deficiência têm menos oportunidades, mas também é verdade que ao nível da inclusão escolar temos uma percentagem maior de alunos que ao nível europeu. Se esses esforços têm todos bons resultados? Não. Sobretudo porque muitas vezes desenvolvemos processos de inclusão que têm um grande voluntarismo, mas uma baixa sustentabilidade. Ou seja, resultam bem no momento, mas depois surge a dificuldade em manter o projeto a funcionar: o financiamento, o corpo docente, e muitas vezes o que é conseguido com base no voluntarismo perde-se por falta de estrutura para se poder manter.
E: Como vê o panorama da formação de docentes do ensino especial?
DR: A formação tem sido identificada como um fator crítico para a melhoria da inclusão. Todos os professores deveriam ter na formação inicial uma unidade relacionada com as NEE e a diferenciação curricular. Hoje em dia isso não acontece. Muitos cursos de professores abdicaram dessa componente, sem motivo aparente e apesar de a Lei de Bases de 1986 ter isso como obrigatório.
Também é preciso investir na formação em serviço. Usamos nesta formação em serviço modelos semelhantes ao da formação inicial quando ela deve ser feita por professores que estão na prática e que se defrontam com problemas reais. Só assim permite discutir e encontrar soluções que tenham a ver com as situações concretas que os professores vivem. A Pró-Inclusão tem trabalhado muito para realizar formação em serviço tendo como ponto de partida os problemas que as pessoas têm. E não as teorias que possamos apresentar.
E: E quanto à situação profissional dos professores de educação especial nas escolas?
DR: É importante continuar a fortalecer a sua posição dentro da escola. Os professores de educação especial serão tanto mais fortes quanto mais diluídos estiverem na dinâmica das escolas. Quanto mais forem um recurso para dar resposta às diferenças que a escola tem. Essa relação profissional precisa de ser melhorada, porque muitas vezes os professores de educação especial são empurrados para trabalhar só com os alunos com dificuldades. É preciso lutar contra as situações que levam a que existam os alunos com deficiência e os professores de educação especial de um lado, e os alunos sem deficiência e os professores escolares do outro. Inclusão não é isso.
Fonte: Educare
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