O Conselho Nacional de Educação quer continuar a provocar o debate sobre temas “centrais” para o ensino. Na semana passada, o organismo de consulta do governo despertou a atenção para as taxas de chumbos em Portugal. As razões de um problema de décadas variam de escola para escola, mas a solução, diz David Justino, passa por “mais autonomia”. Nos próximos meses o palco está reservado para a “escolaridade obrigatória”, a “formação inicial de professores” e o “acesso ao ensino superior”.
Portugal apresenta repetidos níveis elevados de chumbos. O que falha?
O problema é estrutural. Devemos compreender que passámos uma fase de transição. Boa parte das medidas tomadas para combater o insucesso teve efeitos limitados. Temos de ir buscar as razões mais fundo. Se temos um sistema de ensino massificado, estamos a incorporar alunos de camadas sociais cada vez mais alargadas e que enfrentam um risco maior para o tipo de ensino que se tem.
E isso obriga a mudanças no ensino?
Temos é de mudar o tipo de oferta em função dos alunos que temos. Hoje há uma diversidade de grupos sociais, alguns deles com défices culturais muito fortes, que põem em causa o papel da escola enquanto elevador social. A escola acaba por não se ter adaptado completamente a esse novo quadro. Continua a ter tiques de centralismo e uniformização, quando precisávamos de soluções diferenciadas.
O ministério intervém em demasia?
Temos um sistema ainda muito centralizado no que diz respeito ao currículo, à avaliação, à organização pedagógica. E esse excesso de centralização conduz a uma autonomia mais reduzida das escolas e a uma capacidade limitada das escolas para responder à diferenciação social. Se há alguma incapacidade do sistema é a de acompanhar esta dinâmica social.
Está em curso uma descentralização de competências para as autarquias. O caminho é esse?
Pode ser por aí, mas também por coisas mais importantes, que têm a ver, por exemplo, com a dimensão das turmas. Tem de haver capacidade das escolas de ajustarem o seu tipo de oferta ao tipo de problemas e alunos que têm.
E em que outros aspetos deve haver mais autonomia?
Na organização pedagógica, na possibilidade ou não de transições. E acima de tudo autonomia para mobilizar recursos. Mas se os vícios se mantiverem para que serve a autonomia?
Vícios da escola pública?
O problema não está só na escola pública, está na sociedade. O problema da cultura é mais vasto que o exercício da profissão de professor. É um problema social, de responsabilização dos pais, por exemplo.
Está a referir-se à necessidade de uma evolução de mentalidades?
Tem de haver responsabilidade, e ela não pode recair só no professor ou na escola. Tem de se repartir por outros atores, que podem ajudar a encontrar soluções.
Os pais estão demasiado ausentes?
Vivemos estilos de vida altamente monopolizadores da vida das pessoas. As empresas têm de ter regras. Empresas sem horários de saída fixos geram uma perturbação enorme no funcionamento das famílias. Muitas vezes o insucesso de uma criança tem a ver com várias coisas, e não é só um problema de saber se chumba ou se passa. A escola também tem de ter a capacidade de olhar para dentro e pensar o que pode fazer melhor.
O CNE foi muito criticado pela denúncia da “cultura de retenção”. Não se limitaram a seguir o caminho mais fácil ao condenar o chumbo?
É facilitismo fazer uma passagem administrativa. Ora a própria recomendação manifesta-se contra as passagens administrativas. Um aluno que não sabe não passa. Mas também dizemos que pode não passar de ciclo mas ter uma transição condicionada. No ano seguinte tem mais duas ou três horas para recuperar o que não fez no ano anterior.
Isso exige aplicar mais recursos, que as escolas nem sempre têm.
Vai ter de aplicar alguns recursos, mas as escolas podem dar esse complemento. Se estão no limite, então o ministério deve canalizar mais créditos horários. O importante era que a atribuição de créditos horários aos professores pudesse ser feita em função de objetivos. O problema está em saber se assumimos ou não os objetivos.
Há falta de vontade política de combater o problema dos chumbos?
Não é só vontade política, é vontade geral.
Mas a decisão vem de cima.
O ministério tem um papel, nomeadamente quando define os objetivos e a forma como atribui incentivos para combater os problemas. Mas a escola tem de assumir isso também. O ministério tem de definir o que considera prioritário. O CNE considera que a prioridade das prioridades devia ser reduzir a retenção.
O CNE é contra os exames?
Quem confundiu a posição do CNE com uma crítica aos exames não leu o nosso parecer. Podemos melhorar a forma como se fazem os exames, mas em nenhuma parte ouviram da minha boca ou viram escrito na recomendação que o CNE é contra os exames. O contributo dos exames para a retenção é mínimo.
Chumba-se mais logo após a mudança de ciclo. O que é que isso significa?
Ou que os alunos estão mal preparados mas passaram no exame, ou que precisam de acompanhamento na fase de transição de ciclo porque há outro tipo de linguagem, de disciplinas, de ambiente escolar. Aí temos de estar atentos para os miúdos se adaptarem melhor.
A taxa dispara quando chegamos ao ensino secundário. Empurra-se o problema para a frente?
Não. Imagine uma corrida de 400 metros barreiras. Se os miúdos têm má preparação física, saltam o primeiro e o segundo obstáculo, começam a ter dificuldades no terceiro e vão contra os últimos.
O exame trouxe melhores avaliações?
Mais rigor e exigência, disso não tenho quaisquer dúvidas.
E pressão sobre os alunos...
Claro que é pressão. Mas é precisamente na escola que se aprende a lidar com isso. Não posso preparar os alunos para uma vida que não existe. Quando forem para o mercado de trabalho aqueles jovens vão ser avaliados diariamente, vão estar sujeitos a uma pressão diária. Educar é capacitar para a vida.
O que lhe diz o seu filho dos exames?
É natural, já faz parte. Quem dramatiza os exames são os adultos, em especial os que passaram sem ter exames e estão instalados na vida. É importante que a sociedade desdramatize esta situação.
Os professores estão bem preparados?
Não há nenhum estudo que me permita dizer que sim nem que não.
Os chumbos não dão um sinal?
Não, porque muitas vezes tem a ver com orientações e culturas de escola.
O ensino vocacional serve para recuperar alunos que tinham desistido da escola ou para mostrar números?
Nem para uma coisa nem para outra. A retenção conduz ao abandono, e os miúdos abandonam a escola sem competências profissionais para integrar o mercado de trabalho. Existe um ciclo vicioso do insucesso. O vocacional permite aos alunos ganhar competências profissionais. Quando os miúdos entram no mercado de trabalho como mão-de-obra desqualificada nunca mais saem daí. Têm os piores empregos, mais mal remunerados.
A escola ainda reduz desigualdades?
É um instrumento de criação de potencial humano, mas com este tipo de retenções destrói capital humano. É potencial que estamos a desperdiçar. Temos miúdos em número cada vez mais reduzido e ainda os tratamos mal ao longo do sistema. Os países ricos não destroem capital humano como nós.
O modelo está desatualizado? A Finlândia vai trocar disciplinas por tópicos.
Não creio. A organização em disciplinas é fundamental porque traz conhecimento especializado. Se a Finlândia adotar esse sistema, creio que é um retrocesso.
Já é possível perceber o impacto que a crise teve na escola pública?
O principal impacto foi fazer baixar as expectativas. Começa-se a criar a ideia de que não vale a pena fazer um grande investimento na educação.
E isso é perigoso para os alunos?
Quando se cria essa ideia é a morte. O sistema educativo evoluiu mais rapidamente que o económico, e se a economia não consegue corresponder estamos a criar frustração.
Muitos jovens pensam que não faz diferença tirar um ou outro curso porque depois não há mercado que os absorva.
Não é verdade. Um licenciado tem uma probabilidade de desemprego ínfima face a uma pessoa que só tenha o 9.º ano. Demora menos tempo a arranjar trabalho e geralmente arranja um emprego com qualidade superior. As pessoas deixam-se enganar pela ilusão do canalizador que ganha umas coroas para não estudar. É uma ilusão.
Como olha para o futuro destas gerações que se estão a formar?
Os jovens estão mais bem preparados que os seus antepassados de há duas, três gerações. Agora também há que reconhecer que as dificuldades que vão encontrar são muitos maiores, e portanto não vão ter as mesmas facilidades que as gerações anteriores tiveram. Não vamos ter o Estado a oferecer empregos como oferecia. O papel da escola é não baixar o nível de exigência.
Por isso é que lhe perguntava se os professores estão a ser bem formados. Há uma multiplicidade de cursos que formam para o ensino.
A escola pública tem uma margem de progressão muito grande. Se conseguirmos reduzir os níveis de ineficiência, respeitar e valorizar os professores, mas também ser exigentes na seleção daqueles que podem ser professores, julgo que a escola pública tem margem para progredir. Não podemos continuar a cometer os erros que cometemos há mais de 20 anos, em que qualquer um pode ser professor, os critérios são de malha larga. Temos de ser muito rigorosos porque ter bons professores, bem preparados, com formação inicial de qualidade mas também com formação contínua é meio caminho andado para termos boas escolas.
Fonte: I online
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