Josef Schovanec, 32 anos, diz “estar a leste”. Este francês com síndrome de Asperger, uma forma de autismo, escreveu o livro Je suis à L’Est!. O título é um trocadilho entre estar alheado, uma característica associada aos autistas, e o facto de ter escrito parte em Samarcanda, no Uzbequistão. A Oficina do Livro edita-o agora com o título Sou Autista — O Extraordinário Testemunho de Um Génio à Parte. O humor do título original não só percorre o livro como polvilhou esta entrevista dada em Lisboa.
Na obra, Josef Schovanec conta as dificuldades que teve na escola e que continua a ter no dia a dia, numa sociedade que ainda não está preparada para integrar os autistas. Ele estuda religiões e dá conferências sobre o autismo.Com um desenvolvimento anormal do sistema nervoso central, estas pessoas têm dificuldades de interação social, de desenvolvimento da linguagem, comportamentos repetitivos e apegam-se às rotinas. Mas, ao defender que os autistas são importantes para a sociedade, o francês transformou a conversa (...) num elogio à diferença.
Nasceu em França. Pode falar um pouco das suas origens?
Nasci em França, mas sou um viajante. Costumo viajar até ao Médio Oriente, pois fiz estudos religiosos sobre o islão. Para falar sobre o autismo, viajo bastante em França, onde há um grande atraso na integração dos autistas.
Historicamente, as pessoas com autismo eram fechadas em instituições de saúde mental. Defendo uma revolução cultural, as pessoas com autismo ou com outras incapacidades devem ter uma vida autónoma, um trabalho, a sua própria casa. É por isso que nos últimos dez anos tenho saltado de lugar em lugar para falar sobre autismo. Cerca de 1% da população tem uma forma de autismo, é muita gente.
O que se faz com estas pessoas? Como é que as tornamos produtivas? Como é que lhes damos um papel na economia?
Há vários graus de autismo. A sociedade tem de ter a mesma fórmula para toda a gente?
Durante décadas, mesmo os grandes médicos e especialistas acreditavam que as pessoas com autismo tinham algum tipo de limitações mentais. Pode ser verdade nalgumas circunstâncias. Mas a razão principal para isso é que as crianças com autismo não vão à escola. Imagine uma criança que não vai à escola. Como é que pode aprender as coisas? Como é que pode conhecer a cultura onde está inserida? Acredito que quase 100% das crianças com autismo podem ir à escola. Nos Estados Unidos, 80% das crianças com autismo frequentam as escolas normais. Na Dinamarca são quase 100% das crianças com autismo. Claro que pode haver alguns desafios, tem de se criar um ambiente escolar para estas crianças.
Que tipo de ambiente é esse?
Numa sala com alunos com autismo, um barulho como este [Josef Schovanec bate as mãos com força] pode matar a capacidade de pensar das crianças. Elas são interrompidas por este som estridente e deixam de saber o que fazer. Tem de se criar um ambiente sossegado. É preciso também um ambiente sem demasiada luz. Muitas crianças ou pessoas com autismo são sensíveis à luz. Se há muita luz não conseguem concentrar-se naquilo que estão a fazer.
As crianças com autismo necessitam também de aprender todas as regras sociais, o que se chama “currículo oculto”. Por por exemplo, como se diz “olá”. Pode parecer muito fácil para uma pessoa sem autismo, mas para quem tem autismo é um grande desafio.
Porquê?
Há partes do cérebro humano que estão especialmente feitas para as relações com as outras pessoas. Mas as pessoas com autismo podem ter algumas dificuldades nisto, têm de aprender exatamente o que devem fazer. As regras têm de ser claras e leva tempo até a criança aprender como se deve comportar.
Se uma criança aprende a dizer “bom dia senhor” como se fosse um “olá”, chega à escola e vê um colega de sete anos e diz “bom dia senhor”. Mas não se diz “bom dia senhor” a uma criança. Estes são desafios que uma criança com autismo enfrenta e o professor tem de estar informado sobre o autismo, senão nada funcionará.
Quando alguém vai a uma loja no Reino Unido ou nos Estados Unidos e diz “olá, tenho síndrome de Asperger”, toda a gente sabe o que isso é e tem uma boa impressão. Ser um Aspie [diminutivo para alguém com síndrome de Asperger] é algo quase positivo. Uma pessoa com autismo não é menos do que os outros, somos apenas diferentes. As pessoas com autismo têm capacidades, têm algo a dar. Não são só pessoas caras para os Estados e um fardo para a sociedade. Os autistas podem também ser uma mais-valia, a questão é como é que se faz isso. A empresa alemã de software SAP decidiu no ano passado contratar centenas, ou talvez milhares, de trabalhadores com autismo por serem mais produtivos.
São mais concentrados?
Quando se contrata uma pessoa sem autismo, ela vai trabalhar oito horas por dia, depois fica cansada e quer sair, ir a uma festa e ouvir Britney Spears. Alguém com autismo vai ficar a trabalhar até à meia-noite e vai dormir no escritório frequentemente.
O que é de mais.
Estou a exagerar um pouco. Mas essas pessoas podem ser muito dedicadas. Num encontro marcado para as 8h com uma pessoa autista, é certo que ela vai estar no local exatamente às 8h. Se se souber como essas pessoas funcionam, estará tudo bem. Claro que vamos ter alguns problemas, porque os autistas reagem de uma forma diferente, vão dizer “estás muito gordo”, o que pode magoar as outras pessoas. Normalmente, são muito diretos.
Para um autista, é difícil fazer escolhas?
É impossível. Porque as pessoas com autismo seguem as regras. Se um pai de uma criança com autismo diz à criança que não pode atravessar a rua neste local, ela nunca vai atravessar a rua naquele local.
Mas quando se cresce, não se consegue ser mais crítico em relação à forma como se obedece às regras?
É necessário tempo e aprendizagem. Não é fácil. Por exemplo, se eu tiver uma entrevista de trabalho com um chefe de uma empresa, tenho de lhe provar que sou o empregado certo. Mas as pessoas com autismo vão dizer “não sou assim tão inteligente”, “tenho problemas”, “ando bastante deprimido”, “provavelmente vai encontrar pessoas melhores”. Os autistas são objetivos. Isto é um grande problema. Tenho amigos que estão a tentar criar programas de orientação profissional para pessoas com autismo. Se não houver este tipo de oportunidades, elas ficam desempregadas. Eu nunca tive sucesso numa entrevista de trabalho.
Que problemas teve na escola?
O problema principal foi que não me fizeram um diagnóstico correto. Fui diagnosticado bastante tarde, há apenas 11 anos. As crianças com autismo têm de ser diagnosticadas antes dos dois anos. Quando é diagnosticada com um ano ou um ano e meio, é perfeito, pode-se fazer muitas coisas. Os cérebros das crianças desta idade têm um nível alto de plasticidade.
A mim, consideravam-me uma criança com muitos problemas: tinha ansiedade extrema, nunca comia na escola. Mais tarde, diagnosticaram-me esquizofrenia, o que acontece a muitas pessoas com autismo. Por isso, tomava muitos medicamentos. Houve muitos anos em que deixei de ir à escola. Mas tive muita sorte. De alguma forma, nunca cheguei a estar completamente fora do sistema, os meus pais eram muito ativos [para evitar isso].
Por que é que os autistas se interessam tanto por detalhes?
Há a teoria oficial sobre esse assunto, mas eu tenho a minha teoria. A oficial é que as pessoas com autismo se interessam por detalhes porque sim. Eu acho que o que se considera serem “detalhes” é apenas uma construção social. O meu amigo autista britânico Daniel Tammet, autor do livro Nascido Num Dia Azul, memorizou mais de 22.000 números decimais do Pi, o número 3,1451... Pode-se pensar que ele é louco ou um génio, ou ambos. Mas definitivamente não é normal. Mas alguns fãs de futebol podem dizer todos os resultados dos jogos de todas as equipas, não só de agora como de há dez anos. Estas pessoas são consideradas normais, não são autistas. Mas memorizar os resultados dos jogos de futebol ou os números decimais é tecnicamente a mesma coisa. Só que do ponto de vista cultural, alguns tópicos são considerados normais e outros não.
Por que decidiu dar conferências sobre autismo e escrever este livro?
Tenho de o fazer. Não há muitas pessoas a fazerem isto. Não conseguiria dormir à noite se não fizesse nada. Há tantos casos de famílias [com pessoas autistas] extremamente angustiadas. Muitos dos meus amigos passaram dez a 20 anos em hospitais psiquiátricos. Essas pessoas não têm de estar ali, o autismo não é uma doença mental, não é algo que se possa ou se deva curar com comprimidos. Por outro lado, conheci nessas conferências pessoas incríveis. Quem trabalha com pessoas com autismo diz que é o melhor dos trabalhos. Conhece-se gente que nunca se iria conhecer na vida. Por exemplo, o Daniel Tammet aprendeu islandês em apenas uma semana. Um outro amigo com autismo está no Livro Guinness porque tem mais de 1000 utensílios no seu casaco.
E por que escreveu o livro?
Comecei por não querer escrever o livro. Um dia, um editor francês veio ter comigo e foi muito convincente. Convidou-me para ir a um restaurante e falou-me do projeto de escrever um livro. Eu estava a tentar ser educado, ao estilo japonês, e no final do almoço, perguntaram-me “sim ou não?”. Não quis ser ofensivo e disse “sim” [risos]. Depois, apercebemo-nos de que este livro era o primeiro de um francês com síndrome de Asperger. Em inglês há milhares de livros escritos por autistas. Espero que as pessoas com autismo de todos os países comecem a escrever livros porque terão histórias interessantes para contar.
Por que só agora é que um autista francês é que escreveu um livro?
Em França, há uma grande tradição em psicanálise, que tenta explicar as especificidades do autismo. Explicam as particularidades dos comportamentos das crianças com autismo pelo papel da mãe na educação. Normalmente, não usam o termo “autista”, dizem que esta ou aquela criança se comporta de uma forma estranha porque a mãe não a amou ou porque foi uma má mãe. E tentam analisar cada comportamento a partir dos conceitos da psicanálise. O que pode levar a um absurdo total.
O que faz essa abordagem às pessoas com autismo?
Para curar a criança com autismo, a psicanálise diz que é preciso cortar a ligação entre a mãe e a criança. Por isso, põem a criança num hospital psiquiátrico. E neste local isolado, ela não vai obter a educação necessária. Vão dar-lhe algum tipo de neuroléptico [sedativo]. O resultado é um desastre completo: não vai aprender a falar, a ler e a escrever. E 20 anos depois, o que é que se vai fazer com estes jovens adultos?
No livro, diz que não gosta de se definir como um “Aspie” ou autista. Porquê?
Para muitas pessoas, o termo “autismo” é mau. É como dizer “sou estúpido”. Se estivermos com amigos, tudo bem, mas se alguém estiver numa entrevista de emprego e disser “sou autista”, o empregador não lhe vai dar o emprego. De alguma forma, sou cobarde, porque se as pessoas com autismo não o assumirem, a sociedade não vai progredir para uma situação onde há uma melhor inclusão de pessoas diferentes.
O autismo faz parte de um assunto maior. Há problemas muito semelhantes como a esquizofrenia. Chamam-lhes as incapacidades invisíveis, em que a pessoa tem uma aparência normal. Cerca de 15% da população da Europa ocidental tem uma forma de incapacidade, mas apenas 1% destes 15% está numa cadeira de rodas. A vasta maioria tem incapacidades invisíveis. A sociedade tem muito a retirar destas pessoas e não pode viver com mais de 10% de pessoas fora do mercado de trabalho. Tem de se tentar mudar esta situação.
In: Público por indicação de Livresco
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