O cérebro é uma coisa plástica. Quer isto dizer que as suas capacidades não estão absolutamente determinadas à partida. Em parte, desenvolvem-se por reação ao ambiente. Falando de visão, de audição e da aprendizagem de uma língua, praticamente todas as crianças têm a estimulação necessária. Já aprendizagens de outro tipo (por exemplo, aquelas que podem vir a distinguir um bom aluno de um mau) dependem de estímulos particulares. A dúvida é se estes estímulos devem forçosamente ter lugar em momentos-chave da infância. Há quem diga que sim, insistindo em expor muito cedo as crianças à matemática, à música ou a uma segunda língua, a fim de não perder as janelas de oportunidade. O norte-americano John T. Bruer, filósofo da ciência e presidente de uma fundação que apoia programas educacionais, acha tudo isso um exagero. No seu livro "O Mito dos Primeiros Três Anos", criticou modas e "presunções de classe média" - por exemplo, que as crianças já devem conhecer números e letras quando iniciam a escola. A aprendizagem é um processo para a vida inteira e a concentração quase exclusiva nos anos iniciais é inútil e gera stresse. Além de ser feita à custa de argumentos pseudo-científicos. Foi para discutir esses argumentos que Bruer esteve recentemente em Londres numa conferência sobre Usos e Abusos da Biologia.
Nos seus trabalhos e conferências, critica várias modas educacionais que dizem assentar na ciência, mas que de facto têm pouco que ver com ela. Há algumas com que embirre especialmente?
Muitas das modas supostamente baseadas na ciência do cérebro, tais como o bebé Einstein e o bebé Mozart, ficaram desacreditadas desde que eu escrevi 'O Mito dos Primeiros Três Anos' em 1999. Nos Estados Unidos, uma questão política importante tem que ver com a necessidade universal do jardim infantil a partir dos quatro anos. Os defensores desta política costumam referir a neurociência e as capacidades únicas de aprendizagem que teria o cérebro infantil. Na minha opinião, não há descobertas da neurociência que justifiquem esta posição. Tudo o que sabemos, com base na evidência dos comportamentos, é que crianças oriundas de meios com desvantagens culturais podem beneficiar de uma introdução à educação formal mais cedo. Oferecer ajuda especial a essas crianças é muito diferente de oferecer uma intervenção prematura ou programas educacionais a todas as crianças.
Acha que essas ideias têm que ver com o desejo habitual que as classes médias têm de proporcionar vantagens competitivas aos seus filhos, a começar pela educação?
Não. Entre a classe média há de facto um esforço para colocar os filhos em boas escolas, onde eles possam conhecer determinados tipos de pessoas, etc. Mas aquilo de que eu estava a falar tem mais que ver com académicos e com a sua visão própria do que a vida boa é, do que é um bom ambiente, valor para a educação, valor para a leitura. Essas extensões da escolaridade na primeira infância têm origem em psicólogos, neurocientistas, economistas...
Neurocientistas também?
Oh, sim. Não questiono as suas intenções, mas preocupa-me que cientistas se tornem cúmplices conscientes no abuso da sua própria investigação.
Há muito abuso da biologia como argumento?
Quando entramos na área da política e das políticas, é de esperar que a lógica e o empirismo deem lugar à retórica.
Por que motivo se põe tanta ênfase na neurociência?
O público leigo e os funcionários do governo acham-na aliciante. Por contraste, as ciências comportamentais são vistas como 'soft'. Os defensores da intervenção na primeira adolescência desenvolveram narrativas muito vagamente baseadas na neurociência para a justificar.
Do que podemos ter certeza absoluta, nesta área?
Podemos ter a certeza de que os pais devem garantir que os olhos e os ouvidos de uma criança funcionam normalmente. À parte isso, como um colega neurocientista me disse uma vez, 'baseado no que sabemos da neurociência, os pais não devem fechar as suas crianças em armários escuros, bater-lhes na cabeça com frigideiras ou deixá-los passar fome'. Sabemos que a privação extrema é má para as crianças. Mas não sabemos, e provavelmente não é o caso, que uma estimulação ou enriquecimento adicional e intenso tem efeitos benéficos. E a crença nos efeitos irreversíveis da primeira experiência educacional impõe um fardo injustificado aos pais. Além disso, concentrar os recursos todos nessas fases resulta numa diminuição da educação contínua e de adultos. Já agora, convém notar que nessas teorias também há muita psiquiatria.
Como assim?
A chamada teoria do apego diz que os primeiros dois anos e meio de vida são cruciais para a criança estabelecer uma relação com o seu cuidador e essa relação é a base para o desenvolvimento social e emocional. Se for perturbada, pode levar a problemas mentais, psiquiátricos, problemas criminais em idades posteriores, etc. O professor Michael Rutter estudou órfãos romenos, crianças que cresceram em ambientes terríveis, sujeitas a privações extremas. O mais notável é quão resilientes elas mostram ser. Depois de adotadas, é preciso examinar com grande profundidade, utilizando medidas muito precisas de bem-estar psiquiátrico, para descobrir diferenças significativas entre elas e outras crianças adotadas no Reino Unido.
Imagino que, se em vez de adotadas elas tivessem ficado institucionalizadas até à maioridade, os resultados pudessem ser diferentes.
Sim. E claro, tendo sido criados como foram, falta ver exatamente a extensão dos danos que sofreram e quais se manifestarão mais tarde.
Se me permite uma nota pessoal sobre si, uma vez que ocasionalmente tem falado disso, sabemos que não foi criado em condições económicas ideais. Isso não o impediu de ser bem-sucedido.
Bom, não éramos pobres mas também não éramos de classe média, digamos assim. Nesse tempo, os pais tinham crianças e criavam-nas. Não havia ciência envolvida, era mais normal, com menos pressões. O que me levou a interessar-me por todo este assunto não foi a minha origem familiar mas uma experiência que tive há uns 20 anos. Encontrava-me num encontro onde especialistas falavam de educação na primeira infância. Veio à conversa a teoria do apego e um dos psicólogos disse que costumavam medir o stresse tirando uma amostra da boca e medindo o nível de cortisona. O psiquiatra disse que os lares de famílias latinas nos EUA eram muito caóticos e isso devia ser mau para as crianças. As medições de cortisona confirmavam-no. Ora como com outros argumentos não fora possível fazer os pais adotar os comportamentos entendidos como bons, falaram-lhes no nível de cortisona e nos danos para o cérebro e eles passaram a obedecer. Fiquei horrorizado. Aquilo era tirar ilações sobre famílias latinas a partir de uma perspetiva de classe média. Os níveis de cortisona podem ter que ver com muitas coisas, não apenas com stresse. Só porque numa típica família latina há eventualmente mais barulho do que numa típica família branca, concluir que isso é mau para as crianças é uma posição classista e mesmo racista.
In: Expresso
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