terça-feira, 19 de agosto de 2014

Também é preciso cuidar de quem cuida

Quando Fernanda Costa pediu ajuda chorava tanto que não conseguia falar. O choro e as lágrimas roubaram-lhe as palavras antes de se acalmar e contar a sua história. Há dois anos que cuida da mãe de 81 anos que sofre de Alzheimer e de Parkinson. É preciso vesti-la, dar-lhe a comida à boca, lavá-la. Todos os dias. “Sinto-me cansada, muito presa, não tenho vida própria”, desabafa, para logo acrescentar “a minha mãe está sempre em primeiro lugar, trato dela primeiro e depois das minhas coisas”. Uma prima falou-lhe do Cuidar de Quem Cuida, projeto para cuidadores informais de pessoas com demência que estava a ser desenvolvido em cinco concelhos da região de Entre Douro e Vouga – Santa Maria da Feira, São João da Madeira, Oliveira de Azeméis, Vale de Cambra e Arouca. Decidiu que estava na hora de partilhar as suas inquietações e de deixar que cuidassem de si.

Fernanda não esquece esse primeiro momento em que recorreu ao projeto para expor as suas angústias. “Comecei a chorar porque estava a ver que não conseguia dar a volta”. Mas conseguiu. “Explicaram-me várias coisas, como cuidar da minha mãe, como gerir a parte emocional, comecei a conviver com pessoas que estavam na mesma situação, percebi que havia gente em piores condições”. Fernanda tem 57 anos e ainda trabalha, todo o tempo que lhe sobra é para tratar da mãe que, durante a semana, está num centro de dia. “Por enquanto, porque está cada vez mais complicado. No início, não aceitava ir para um centro de dia e não dormia”. Fernanda faz parte de um grupo de ajuda mútua de cuidadores que se juntam na primeira quinta-feira do mês em Santa Maria da Feira. É ali que percebe que não está sozinha.

Rosa Silva também faz parte do Cuidar de Quem Cuida. “Esses convívios aliviam-me muito. Conversamos e vamos aprendendo”. Há 11 anos que cuida da mãe de 91 anos, a quem diagnosticaram demência. Duas semanas por mês, a mãe está entregue aos seus cuidados. São dias inquietos por não saber o que esperar da imprevisibilidade de uma demência. “Durmo com a minha mãe e não há uma noite que durma sossegada”, revela. Pediu a reforma antecipada aos 52 anos, sofreu uma penalização de 30 por cento. Admite que está cansada, mas sem queixumes. “Sinto-me bem a fazer o que faço e é uma falha não existir um sítio com voluntários que ficassem com pessoas como a minha mãe nem que fosse por um bocadinho. Há centros comerciais que têm espaços com gente para tomar conta das crianças, por que não haver o mesmo apoio para idosos?”, questiona-se vezes sem conta. Rosa tem 63 anos e o peso dos dias é, de alguma forma, aliviado nos encontros de quinta-feira.

Fernanda e Rosa, como todos os outros cuidadores informais, não recebem qualquer apoio financeiro para cuidarem das mães. Esticam as suas reformas, fazem contas todos os dias. “É preciso pensar nos cuidadores que estão abandonados, que não têm direitos, que não têm nada a que se agarrar”, refere Madalena Malta, coordenadora do Cuidar de Quem Cuida e directora técnica e pedagógica do Centro de Assistência Social à Terceira Idade e Infância de Sanguedo (CASTIIS), Santa Maria da Feira, entidade executora do projecto. “As respostas são poucas e demoradas”, acrescenta.

O Cuidar de Quem Cuida arrancou em Junho de 2009, com um programa psicoeducativo estruturado, fóruns de discussão, gestão de emoções, entre outras atividades. Até maio de 2013, abrangeu 288 cuidadores informais dos cinco concelhos e criou 37 grupos psicoeducativos. E traçou o perfil do cuidador informal dos cinco municípios: 81,7% do sexo feminino, uma média de idades de 56 anos, 59% reformados ou desempregados, 80,4% casados ou em união de facto, 54,2% auferem menos do que o salário mínimo, 50,3% com escolaridade ao nível do 1.º ciclo, 57,2% são cônjuges e 48,7% filhos dos doentes. Nos cuidados mais prestados, está a supervisão regular com 91%, seguido de ir às compras com 85,5%, tomar conta dos medicamentos com 84,1% e dar apoio emocional com 82,8%.

Os resultados do projeto têm outros indicadores. “Os cuidadores já têm alguém que os ouça, que os ajudam a resolver os problemas”, refere Madalena Malta. Em vários momentos, foram feitas avaliações e há melhorias a registar. “Os resultados indicam que há melhorias na saúde física e mental dos cuidadores”, revela a gerontóloga Cátia Pires, que integra a equipa técnica do projecto – que, na primeira fase, teve como copromotora e parceira institucional a Câmara de Santa Maria da Feira que também contribuiu financeiramente, enquanto a Fundação Calouste Gulbenkian e o então Alto Comissariado da Saúde assumiram o papel de financiadoras e a Unidade de Investigação e Formação Sobre Adultos e Idosos (UNIFAI) a função de monitorizar e avaliar os passos dados. O orçamento disponível para os quatro anos rondou os 193 mil euros.

As contas da poupança

Os resultados demonstravam que fazia todo o sentido continuar. Em fevereiro deste ano, o projeto entrou numa segunda fase para permanecer nos cinco concelhos e abranger os restantes 12 municípios da Grande Área Metropolitana do Porto num processo que durará até 2016. Uma nova etapa que pretende replicar o modelo ao capacitar uma Organização Não Governamental em cada município para que seja capaz de implementar o projecto no seu território. E não só. As visitas ao domicílio fazem parte dos planos, tal como a análise do impacto social e económico. O Cuidar de Quem Cuida quer quantificar quanto se poderia poupar, nomeadamente em consultas médicas e em medicação, se os cuidadores informais tivessem apoios efectivos.

“Este projeto também pretende apelar à compreensão e responder às necessidades. Mostrar que há necessidades reais que esta comunidade tem e que faz sentido, em termos locais e nacionais, criar políticas de resposta para estes públicos”, sublinha Cátia Pires. Já há um valor em cima da mesa. Na primeira fase do projecto, estimou-se que o custo de um grupo psicoeducativo – contabilizando despesas com recursos humanos, consumíveis, transportes e material de divulgação -, com 11 sessões de cerca de duas horas cada, ficaria por 4123 euros. “É preciso perceber que políticas direcionadas aos cuidadores têm vantagens económicas”, adianta Madalena Malta. Cristina Barbosa, gerontóloga na Câmara da Feira e que acompanha o projecto, realça essa componente, bem como a intervenção multidisciplinar que permite ter “pontos de análise muito interessantes”. “Os cuidadores precisam dessas respostas mais integradas, mais precisas, mais contínuas”. Até porque, segundo Lídia Correia, psicóloga da equipa, os cuidadores, nas primeiras consultas, estão “baralhados, confusos, a precisar de desabafar”. “Chegam cansados, com vontade de abordar certas temáticas, mas com dificuldades em partilhar o cuidar”, revela.

Na segunda etapa, já foram criados dois gabinetes de apoio aos cuidadores, um no CASTIIS e outro no Centro de Saúde de São João da Madeira. Um serviço gratuito e que em Setembro também abrirá em Oliveira de Azeméis, Vale de Cambra e Santa Maria da Feira, estando previsto mais um em Arouca. No início de Maio, realizou-se uma tertúlia sobre os aspectos jurídicos no cuidar. Esta é, aliás, uma vertente em que o projeto vai insistir para sensibilizar advogados, magistrados e juristas, sobretudo para os processos de interdição e inabilitação de pessoas com cognição diminuída, além do recente processo do testamento vital relativo à prestação de cuidados de saúde.

É numa lógica de cooperação intermunicipal e de multidisciplinaridade profissional que assenta o projeto que tem respostas sociais e de saúde direccionadas para a maximização do bem-estar de quem cuida. O programa precisa de uma sólida rede de parceiros, apoiando-se nas câmaras, centros de saúde, várias instituições de apoio à terceira idade e no Hospital da Feira. O Cuidar de Quem Cuida quer olhar para vários ângulos. Nos grupos de intervenção psicoeducativa, com 10 sessões de duas horas, ensinam-se competências, dá-se apoio emocional, fala-se na doença e exemplifica-se como melhorar cuidados prestados, definem-se estratégias para diminuir a sobrecarga e stress aos cuidadores informais. Partilha-se informação sobre medidas de apoio social e assistencial. Criam-se grupos de ajuda mútua para se reunirem de forma informal e que ajudam na estabilidade emocional e reduz o isolamento do cuidador. O projeto já construiu uma bolsa de cuidadores com formação complementar de forma a ajudar quem precisa de serviços especializados e fez o diagnóstico dos serviços de descanso ao cuidador, ou seja, das soluções disponíveis de internamento temporário – concluindo que apenas 16% das instituições do Entre Douro e Vouga referiam ter essa resposta. Nesta nova fase, e no âmbito do Programa Cidadania Activa, cujos fundos são provenientes do Mecanismo Financeiro do Espaço Económico Europeu que, em Portugal, são geridos pela Fundação Gulbenkian, o CASTIIS continua a ser o promotor do projecto e a Câmara da Feira parceira, juntamente com o Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga e o Caso 50+ Associação.

O envelhecimento da população (prevê-se que metade da população portuguesa terá mais de 50 anos em 2030) e a consequente dependência dos mais velhos reclamará cada vez mais cuidadores, informais ou não. Será preciso cuidar deles também.

In: Público por indicação de Livresco

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