Em 2012, Nuno Crato anunciava o fim das provas de aferição, até aí realizadas nos 4.º e 6.º anos. No seu lugar surgiam em 2013 as designadas provas finais de ciclo, com peso de 30% para a classificação dos alunos. Inserida na revisão da estrutura curricular do ensino básico, esta alteração estendia a avaliação no final do ano a todos os graus de escolaridade obrigatória. Tal como já acontecia no 9.º e no 12.º anos, onde os exames cumprem também a função de provas de acesso ao ensino superior.
No segundo ano da sua aplicação ao 1.º e 2.º ciclos, continua a ser difícil encontrar defensores da realização das provas finais de Matemática e de Português. Quem está contra, acusa o Ministério da Educação e da Ciência (MEC) de “desconfiar” do trabalho realizado nas escolas. Mas a extinção das provas está longe de estar em discussão na agenda educativa.
Apesar disso, acumulam-se as críticas à sua existência. Sempre que o calendário escolar assinala as datas das provas surgem argumentos contra em artigos de opinião e debates universitários sobre educação. São opiniões e testemunhos de investigadores, professores e de encarregados de educação que o EDUCARE.PT recolheu para contextualizar a questão.
“Nunca fiz um exame”
Ao longo do ano, vão preparando os filhos para esse dia. Explicam que haverá umas folhas com perguntas sobre a matéria dada e professores a vigiar. Os pais testemunham em casa o impacto negativo dos exames sobre os seus educandos. É disso que fala Rita Gorgulho (...) quando defende simplesmente que se acabe com as provas. “Nunca fiz um único exame até ir para a faculdade, altura em que fiz uma prova de aferição e uma específica de acesso, e nunca senti o tipo de pressão a que os meus filhos estão sujeitos.”
Parte da ansiedade dos alunos tem a ver com as próprias características da prova. O tamanho, a duração e as regras de elaboração. A título de exemplo, este ano, na primeira fase, a prova final de Português do 4.º ano tinha 16 páginas e a de Matemática 13. Os alunos dispõem de 90 minutos para responder às questões, acrescidos de 30 minutos de tolerância.
Sobre as regras de redação, é obrigatório que as respostas sejam dadas no enunciado, num espaço próprio. Caso o aluno precise de mais linhas terá de sinalizar a pergunta numa página reservada na parte final da prova e continuar aí a resposta. Só é permitido o uso de esferográfica de tinta preta. Os erros não podem ser apagados com o corretor, devem ser riscados. Usar o lápis nos cálculos só quando houver indicação na prova para tal. Os rascunhos não podem ser entregues.
Ensino ou treino
A segunda fase das provas finais decorreu entre 9 e 14 de julho. Foi a última oportunidade para recuperar notas. Entre uma fase e a outra tanto os alunos do 4.º como os do 6.º ano tiveram explicações extras para aumentar as hipóteses de sucesso. Ainda assim, Rita Gorgulho acredita que a tensão é “pouco saudável” para crianças cujas idades oscilam entre os 9 e os 10 anos. No tempo em que ocupava o lugar que agora os filhos ocupam, a mãe recorda uma vivência diferente da sala de aula: “A escola para mim era um espaço de aprendizagem, hoje está transformada num espaço de treino para resultados.”
Contudo, não se oporia a que em vez do exame fosse feita uma prova de aferição anónima. “Poderia servir para o MEC entender as dificuldades dos alunos em partes específicas da matéria e até para adaptar os programas a partir das conclusões retiradas.” Em vez disso, acusa esta mãe, “as crianças são treinadas para dar as respostas-tipo, deixando de se incentivar a capacidade crítica”. Além disso, questiona Rita Gorgulho, o que acontece às outras disciplinas? “O ensino artístico é desvalorizado em detrimento da Língua Portuguesa e da Matemática”, responde. “É antipedagógico!”
Bem diferente é a opinião de Fernando Pestana da Costa. O recentemente eleito presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) acredita que a existência das provas de final de ciclo “constitui um enorme fator de progresso” para o sistema educativo. “Permite estabelecer e aferir objetivos bem definidos e contribui para diminuir as assimetrias entre o ensino praticado nas escolas básicas distribuídas pelo país”, defende.
Ter ou não reflexo na classificação? É outra das questões que dividem quem está contra ou a favor da realização das provas finais. Para Fernando Pestana da Costa, a circunstância de o exame contar 30% da nota final resulta numa “preparação muito mais séria” do que quando este apenas se limitava a aferir os conhecimentos dos alunos.
“A necessidade de induzir hábitos de trabalho rigorosos nos estudantes tem de começar nas fases iniciais dos seus percursos escolares”, diz Pestana da Costa. E acrescenta: “Este facto é de uma importância crucial em Portugal, onde historicamente há uma crónica falta de exigência e uma desculpabilização da incompetência e da mediocridade.”
Em “absoluta discordância” com a realização das provas dos 1.º e 2.º ciclos está a Associação de Professores de Matemática (APM). Num comunicado, publicado a 21 de maio, escreve que estas “não introduzem maior rigor e exigência no sistema, antes pervertem as principais finalidades do ensino nestes níveis de escolaridade”, uma vez que “tendem a induzir práticas de trabalho de sala de aula focadas no treino para os exames, com prejuízo de outras aprendizagens estruturantes”.
O currículo - acusa a APM - é assim “distorcido” pelo peso “desproporcionado” dado ao Português e à Matemática à medida que se aproximam as datas dos exames. A necessidade de preparar os alunos para os exames tem como consequência negativa encurtar a duração do ano letivo, lê-se no comunicado da APM. “Obriga os professores a lecionar precipitadamente temas e itens do programa que estão previstos para outra temporização.”
A associação também discorda do modo como é feita a “recuperação” dos alunos que não obtêm positiva na prova. Criticando o facto de ser “baseada num treino intensivo e dirigido, com diminuta recuperação em termos de aprendizagem, apenas proporcionando uma segunda oportunidade para ultrapassar um obstáculo que não deveria sequer ter existido”.
“Dispensáveis na avaliação”
A Associação de Professores de Português (APP) acredita firmemente que os exames de Português dos 4.º e do 6.º anos “são dispensáveis no processo de avaliação dos alunos”. Filomena Viegas, dando voz à posição oficial da APP sobre esta matéria, faz ao EDUCARE.PT uma lista de matérias “indubitavelmente muito importantes” que ficam por avaliar. Exemplos? A oralidade, a capacidade de cooperar para a realização de projetos, a persistência na execução de uma atividade, a capacidade para investigar, recolher e tratar informação.
Recordando a repercussão das notas dos alunos na avaliação dos docentes, Filomena Viegas argumenta que nem os próprios examinados “lucram da informação” retirada das provas que realizam, já que os exames não são corrigidos pelos professores que trabalham diariamente com eles.
Se a sua utilidade é servir de instrumento de regulação do trabalho às disciplinas de Português e de Matemática, questiona Filomena Viegas, “uma prova de aferição aplicada a amostras de alunos dos 4.º e 6.º anos do ensino básico poderia cumprir o mesmo objetivo”. “Sem consumir tanto tempo escolar, sem envolver tanto gasto de dinheiro e sem impor tanto desgaste dos recursos humanos das escolas”, conclui.
A quem questiona a utilidade das provas finais, o Ministério responde com a necessidade de “verificar quais os conhecimentos consolidados durante os dois primeiros ciclos de escolaridade obrigatória e as matérias nas quais os alunos revelam dificuldades”. Pedro Santos, professor do 1.º ciclo, considera que “a questão está exatamente nesse ponto”.
Na sua opinião, “o MEC deveria reavaliar os programas, procurando fazer autocrítica à sua extensão e uma introspeção à sua desadequação às vivências dos alunos”. “Já que estes possuem muita informação – devido às novas tecnologias –, cuja integração não foi efetuada em contexto, o que não auxilia na compreensão e aquisição de competências e conhecimentos.”
Pedro Santos não acredita, porém, na intenção ministerial de – através das provas – querer perceber quais as matérias que mais dores de cabeça trazem aos alunos. “Ao atribuírem peso quantitativo à nota final, [as provas] estão a penalizar o aluno pelo que não sabe, em vez de refletirem sobre o que ele precisa para colmatar as suas dificuldades.”
O professor do 1.º ciclo vai mais longe nas suas críticas. Acusa o MEC de estar precocemente a separar os “bons dos maus alunos” com vista à sua “orientação” vocacional para os anos futuros. E recorda a insistência de Nuno Crato em apresentar o ensino profissionalizante, em parceria com as empresas, como uma alternativa de formação. “Para que o ensino dual funcione é preciso passar a mensagem de que o ensino regular não está a resolver os problemas do insucesso”, especula Pedro Santos.
“Se os alunos tiverem bons resultados nas provas finais de ciclo não se sentirão tentados a seguir a vertente profissionalizante, pois terão sucesso académico, e a família não a verá como uma saída para os seus filhos”, conclui.
Entre as críticas de quem defende a extinção das provas, está o argumento de que a escola deve estar mais focada em melhorar as aprendizagens. Isto, em vez de estar preocupada em preparar os alunos para o momento de pegar na caneta e responder acertadamente às questões.
Ana Benavente, coordenadora do Observatório de Políticas de Educação e Desenvolvimento, é uma destas vozes. Numa coletânea de textos publicados pelo Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (SPGL), em maio, Benavente diz “que esse modo de avaliação é pobre” e que, graças a ele, “nas escolas vive-se em função dos exames”.
Contra o argumento “sem exames não há aprendizagem”, a investigadora recorda: “As aprendizagens significativas para a vida de cada um de nós são as mais polivalentes.” E não as feitas sobre matérias “para esquecer logo a seguir”. Ao começarem logo no 1.º ciclo, “os exames confrontam as escolas com uma espécie de campeonato nacional em que os resultados obtidos lhes atribuem um lugar de melhor ou pior escola”, remata.
Questionado sobre esta posição, Fernando Pestana da Costa, presidente da SPM, cargo ocupado pelo atual ministro Nuno Crato, entre 2004 e 2010, desfaz alguma “confusão” neste “falso problema”, dizendo que “não há contradição entre melhorar e avaliar a aprendizagem”.
Aos defensores do fim das provas, Pestana da Costa sugere que a sua existência resulta numa motivação para “o estudo sério” e uma forma de “calibrar globalmente o sistema [educativo]”. “A experiência de todos os dias mostra que sem uma avaliação rigorosa da aprendizagem, os intervenientes no sistema educativo - os alunos, pais e professores - acabam por não se empenhar devidamente e a aprendizagem não ocorre com a profundidade e rigor que deveria ter”.
Andreia Lobo
In: Educare por indicação de Livresco
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