Na sala de música da Quinta da Conraria, nos arredores de Coimbra, dez crianças batem com os pés no chão, ao ritmo que o baterista da banda da 5.ª Punkada impõe, cada vez mais intenso.
O workshop, que faz parte das atividades do campo de férias, está a terminar, e duas das meninas mal podem esperar para correr para o único elemento feminino da banda. Uma é Raquel, de 9 anos, que, assim que a música se cala avança com os olhos sorridentes presos nas tranças finas de Fátima: “Tens um estilo muito giro!” Maria Inês, mais nova, e também mais baixinha, tem uma pergunta a fazer sobre aquilo que está ao nível do seu olhar: “Por que é tens o braço amarrado à cadeira?”
Fátima Pinho, de 50 anos, nem pestaneja. Agradece o elogio a Raquel e mostra que, de facto, não pode mexer o braço direito até que alguém lho liberte: “Não controlo os movimentos e podia atirar o teclado pelos ares, entendes?” Inês faz que sim com a cabeça. Depois, franze os olhos, a observar o vocalista, que também está numa cadeira de rodas e igualmente rodeado de crianças: “Mas o Fausto também não controla os movimentos e não tem os braços presos…”
Como é que se passou de um tradicional workshop de música – em que as crianças aprendem a letra de uma canção, exploram as vozes, ensaiam ritmos e experimentam instrumentos – para esta sessão de perguntas e respostas sobre os limites de um corpo que é diferente de outros? “Com a naturalidade própria das crianças”, responde Fátima.
“Já nasceste assim?” “Gostas de outras bandas de música?” “Dormes na cadeira?” “Preferes carne ou peixe?” “Como é que passas para a cama?” “Quantos anos tens?” – depois de Ana, é a vez de Fausto ser bombardeado com perguntas.
Ele ri-se, brinca. Diz dele próprio que tem uma grande "punkada". Fátima afirma que não lhe doem os olhares nem as perguntas dos outros, ali, na Quinta da Conraria. Está em casa, numa zona rural onde se concentram uma residência e vários centros de apoio e de atividades pedagógicas da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra (APCC). “Duro é lá fora. É ouvir adultos a dizerem “coitadinha…”, como se eu fosse surda. Ou a comentarem que não me deviam deixar sair de casa”.
Paulo Jacob, o musicoterapeuta, nem incentiva nem trava a conversa entre as crianças e os músicos. Diz que também não costuma intervir no início das sessões, quando grupos maiores, de alunos de escolas do país, se deslocam à Quinta da Conraria para os ateliers de música, uma das muitas atividades pedagógicas oferecidas pela APCC durante o ano lectivo.
Espanto ou susto
“Vejo-os entrar descontraídos e depois estancar. Há sempre uns segundos de silêncio. Olho para as caras deles, de espanto ou mesmo de susto. Às vezes de gozo. Mas a única alusão às características diferentes da banda está numa pergunta, que faço a abrir e que repito no fim da sessão. Inclino-me, assim, para a frente, e pergunto, como se estivesse a segredar: “Vocês acham que os 5.ª Punkada tocam alguma coisa de jeito?”. Diz que no início a resposta é, invariavelmente, um não.
No fim, quando as crianças respondem que sim, Paulo Jacob sente que "a missão está cumprida”: “Mais tarde, numa qualquer situação em que se cruzem ou tenham de lidar com uma pessoa com deficiência, há de dar-se um clique. Estes miúdos hão de lembrar-se destas pessoas e do que elas são capazes de fazer. Nesse momento, saberão como agir”, diz o professor.
Paulo Jacob sabe do que fala. Se inventasse a história não seria mais incrível, para quem hoje ampara crianças no embate com a diferença. Ainda andava a estudar “para ser professor de música”, quando debaixo de chuva intensa entrou por engano no autocarro que normalmente é usado pelos utentes da Quinta da Conraria. “Foi uma experiência aterradora. De repente vi-me rodeado de pessoas estranhas, muito estranhas. Tive um sentimento de rejeição daquilo. Saí na paragem seguinte e perguntei a mim mesmo como seria se viesse a trabalhar com deficientes. A resposta foi que isso não iria acontecer nunca. Nunca”.
Calcula que seja parecido, o choque que as crianças sentem quando entram na sala de música da APCC. Ele, Paulo Jacob, anda por lá, de guitarra elétrica, sorridente, falador, acolhedor. Mas é o corpo de Fausto que primeiro prende os olhares. Quase deitado na cadeira de rodas, aquele corpo move-se permanentemente e de forma descoordenada, com esticões involuntários. Num primeiro momento também não é fácil entender o que Fausto diz, mesmo que seja uma simples saudação. As palavras soam como se fossem arrancadas, uma a uma, com esforço, e se soltassem de repente para se juntarem ao resto da frase.
Apenas música
Para calar o espanto ou o susto dos meninos, os 5.ª Punkada só oferecem música. Paulo Jacob não conta às crianças que aquele corpo, que tem dificuldades em articular as palavras e em controlar os braços e as pernas, é do autor de quase todas as letras das músicas originais dos 5.ª Punkada; que esse corpo pertence a alguém que em menino teve o sonho de ser vocalista de uma banda de rock, como o Bon Jovi, mas que ouviu mil vezes que esquecesse essa ideia, que não era possível. E que, apesar disso, criou uma banda que atuava em playback. E que um dia, há 24 anos, contra todas as expectativas, se tornou, mesmo, o vocalista da banda de rock e pop da APCC, os 5.ª Punkada. “Houve alguém que apostou em mim, o terapeuta Francisco. E desde aí nunca mais deixei de cantar".
Ninguém conta isso às crianças. Não há ali aquela coisa moralista de aproveitar a situação para fazer passar a ideia de que vale a pena perseguir os sonhos. Durante o workshop, elas ficam a saber que Fausto escreveu a letra de uma música, mas a mais básica, infantil, inventada para que elas possam cantar que vão “para a quinta /trabalhar/ e jogar/mas também cantar/ na quinta”.
Também ninguém lhes explica, antes de a sessão acabar, que as pessoas com lesões no cérebro podem ter uma inteligência normal, como Fausto e Fátima. Ou que alguém como Márcio Reis, o baterista, que tem a síndrome de Williams, pode conciliar problemas cognitivos graves com uma sensibilidade extraordinária para a música, que lhe permite tocar os mais diversos instrumentos e o tornou vencedor de dois festivais europeus da canção para pessoas com deficiência mental.
As crianças saem dali sem saber que aquela é uma banda a sério, com 24 anos de atividade, três ensaios por semana e músicas originais, covers e energia suficientes para dar um espetáculo de duas horas. Só não entra no circuito de concertos de Verão, diz Paulo Jacob, porque nem todas as pessoas estão preparadas para ver num palco gente como Fausto. Ou como Fátima, com o braço esquerdo preso à cadeira e o direito a terminar numa estranha estrutura com um longo ponteiro, que, ao contrário dos dedos, não lhe falha quando percorre as teclas do órgão sem errar uma nota.
Essas informações não são necessárias, à partida, para os miúdos, acredita o professor. Assim como não foram para ele, que à terceira música de um ensaio dos 5.ª Punkada, a que aceitou assistir, sentiu ruir o “nunca” que jurara anos antes. Precisamente à terceira música, conta, aceitou o lugar que fora inicialmente ocupado pelo terapeuta Francisco Sousa, que entretanto morrera.
Como nesse dia, também hoje o diálogo se faz assim, através da música, diz. Ele acredita que basta e aparentemente é verdade. Quem tiver acesso apenas à gravação dos sons não deteta nada que distinga aquele de qualquer outro workshop de música. A não ser, talvez, quando há um corte no fornecimento de energia eléctrica que cala o órgão, a guitarra elétrica e o microfone e têm de ser as crianças (que ao contrário de Fausto e de Fátima podem bater as mãos e os pés e conseguem projetar a voz e saltar) a fazer a música que falta.
É essa a música que agora soa. A que fecha uma sessão e abre a outra, que, se não fosse a primeira, nunca teria lugar. Os sons calam-se e Raquel e Maria Inês avançam para Fátima: “Tens um estilo muito giro!” “Por que é que tens a mão amarrada à cadeira?”
Fonte: Público
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