sexta-feira, 17 de julho de 2015

A usura da inclusão

Há palavras que ficam puídas pelo uso. Inicialmente densas e poderosas acabam por andar em tantas bocas, em tantas canetas, em tantos teclados, em tantos textos e documentos que se desgastam, ficam finas, genéricas tornam-se lugares comuns…

Esta vida e desgaste das palavras é um argumento muito evocado pelos linguistas para atestar que a língua é uma entidade viva e que o uso imoderado e despropositado das palavras acaba por lhes retirar a frescura, a pertinência e o significado. As palavras assumem esta vida: têm olvidos e modas, têm uma vida umas vezes fugaz outras perene. As palavras, como o vestuário ou os automóveis, têm modas que lhes custam caro: quanto mais se usam mais se desgastam e mais próximas ficam de se tornarem delgadas e vazias.

"Inclusão" é uma destas palavras. O significado inicial e primeiro situava-se no desenvolvimento de um sentimento de pertença. Estar incluído era pertencer mesmo, estar dentro e por dentro era fazer parte, rir com, sofrer com, fazer com. Logo no início algumas pessoas mais preocupadas com a etimologia do que com o conceito, criticaram a palavra por ter uma conotação de “estar fechado dentro” (“in–cluso”). Na verdade, não valorizo muito estas bizantinices etimológicas: se as valorizássemos o nosso salário ainda seria pago hoje com umas boas sacas de sal…

A palavra inclusão assumiu-se como um conceito novo sobretudo quando a cotejamos com a palavra que por vezes é julgada sinónima: integração. Na verdade, integração sempre significou a possibilidade de uma pessoa ou de um grupo se integrar numa cultura que lhe é estranha e indiferente. Quando se diz que uma pessoa ou grupo “não se integraram” são os “integráveis” que assumem todo o ónus do processo de conseguir a pertença. O contexto, a comunidade ou a instituição onde a pessoa se devia integrar nunca são questionados: quem não se integra é porque não quer ou porque não pode.

Diferentemente, a palavra “inclusão” pressupõe uma mudança na parte que se quer integrar e na estrutura que integra. Quando dizemos que falhou um processo de inclusão é forçoso que questionemos quais são as responsabilidades repartidas entre quem se inclui e a estrutura onde se inclui. O sucesso ou o insucesso desta inclusão é pois sempre partilhado, é uma interação, uma relação que se cultiva entre os diferentes atores.

Esta aproximação ainda que pareça simples constitui uma grande mudança na forma como se pensam estes processos. Apesar de dizermos que as responsabilidades são repartidas, é muito fácil dizer, por exemplo, que um aluno tem problemas na escola porque tem deficiência intelectual. Ora, se só olharmos para a deficiência intelectual, estamos a olhar só para um dos lados. A questão que se levanta e que permanece é: “O que faz a escola para ensinar e educar alunos que tenham deficiência intelectual?”. Só fazendo esta pergunta e procurando respostas honestas e realistas poderemos entender o que quer dizer inclusão.

Muitas vezes confunde-se “inclusão” com uma simples colocação de alunos na escola. Se estão só colocados lá, nem de educação se pode falar (talvez disséssemos que estão “estacionados” na escola), mas se participam nas atividades de aprendizagem regulares da escola talvez já possamos considerar integração. Mas existe um terceiro nível: o da inclusão. Verifica-se quando a escola, conhecendo as características dos alunos organiza o currículo para os poder ensinar, diferencia estratégias para os educar e se modifica para lhes proporcionar uma real igualdade de oportunidades e sucesso.

Incluir um aluno não é colocar um aluno com dificuldades numa escola que não mudou em nada a sua forma tradicional de educar e de aprender. Se a escola (e quando digo escola digo, toda a escola, incluindo todos os adultos que nela trabalham) não for capaz de se modificar, de reinventar a forma como organiza a comunicação, o ensino, a aprendizagem as experiências de vida, certamente que nunca será uma escola inclusiva.

Entendo que a palavra inclusão está desgastada mas mais desgastados estão os professores, as famílias, os alunos que ouvem falar muito de inclusão mas continuam a ver poucas medidas concretas que levem a que cada criança, cada aluno possa ver respeitado o seu percurso de aprendizagem, as formas como aprende melhor, a motivação que o pode levar a apaixonar-se pelo conhecimento.

Agora que vão começar as campanhas eleitorais a palavra inclusão vai voltar a ser intensamente usada, irá ser muitas vezes evocada em vão e, sobretudo, vai-se desgastar ainda mais. Mas não nos enganemos: o que está gasto não é o conceito de inclusão, o que está debotado não são as suas cores de esperança e de profundo compromisso com a mudança social; o que está gasta é a nossa esperança de ver uma escola inclusiva, uma sociedade inclusiva, uma sociedade que saiba é a interação com a diferença que nos fez ser o que somos, porque só assim – lidando com a diferença – descobrimos quem somos. Está gasta a esperança mas não acabada: ela renasce cada ano.

David Rodrigues

Presidente da Pró-Inclusão/Associação Nacional de Educação Especial e conselheiro Nacional de Educação.

Fonte: Público

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