domingo, 26 de julho de 2015

“Estamos a criar crianças totós, de uma imaturidade inacreditável”

Carlos Neto é professor e investigador na Faculdade de Motricidade Humana (FMH), em Lisboa. Trabalha com crianças há mais de quarenta anos e há uma coisa que o preocupa: o sedentarismo, a falta de autonomia dada pelos pais às crianças e a ausência de tempo para elas brincarem livremente, correndo riscos e tendo aventuras. É um problema que tem de ser combatido, diz. Porque a ausência de risco na infância e o facto de se dar “tudo pronto” aos filhos, cada vez mais superprotegidos pelos pais, acaba por colocá-los em perigo. Soluções? Uma delas passa por “deixar de usar a linguagem terrorista de dizer não a tudo: não subas, olha que cais, não vás por aí…”.

Há dez anos já se falava no sedentarismo das crianças portuguesas. Lembro-me que dizia que uma criança saudável é aquela que traz os joelhos esfolados. Como estamos hoje?
Há dez anos nós falávamos que as crianças tinham agendas, hoje digo que têm super-agendas! Há dez anos eu dizia que as crianças saudáveis eram as que tinham os joelhos esfolados. Hoje, acho que os joelhos já não estão esfolados, mas a cabeça destas crianças já começa a estar esfolada, por não terem tempo nem condições para brincar livremente. Brincar não é só jogar com brinquedos, brincar é o corpo estar em confronto com a natureza, em confronto com o risco e com o imprevisível, com a aventura.

As crianças brincam porque procuram aquilo que é difícil, a superação, a imprevisibilidade, aquilo que é o gozo, o prazer. E, portanto, as crianças que eu apelido de crianças “totós”, são hoje definidas como crianças superprotegidas, crianças que não têm tempo suficiente para brincar e crianças que não têm tempo nem espaço para exprimir o que são os seus desejos. E o primeiro desejo de uma criança é o dispêndio de energia, é brincar livre e com os outros, mesmo que muitas vezes em confronto. Porque o confronto é uma forma preciosa de aprendizagem na vida humana. E nós estamos a retirá-los de tudo isso. Estamos a dar tudo pronto e não estamos a confrontá-los com nada. E isso terá muitas consequências.

Estamos a falar de que idades?
Estamos a falar de crianças entre os 3 e os 12 anos. Significa que aumentou de facto esta taxa de sedentarismo, eu diria mesmo de analfabetismo motor, estamos a falar de iliteracia motora. Trabalho há 48 anos com crianças e sei avaliar o que se passou. As crianças têm menos capacidade de coordenação, menos capacidade de perceção espacial, têm de facto menor prazer de utilizar o corpo em esforço, têm uma dificuldade de jogo em grupo, de ter possibilidades de ter aqueles jogos que fazem parte da idade. Ao mesmo tempo, institucionalizou-se muito a escola. Nós hoje temos as crianças sentadas durante muito tempo, não há uma política efetiva adequada de recreios escolares. Os recreios são organizados muitas vezes em função de um modelo de trabalho, ou de um modelo de funcionamento pedagógico, que tem a ver mais com as aprendizagens pedagógicas obrigatórias ou consideradas úteis, e muito menos com as atividades do corpo em movimento. E, por isso, há alguns trabalhos de investigação que temos vindo a fazer, onde tentamos mostrar a correlação entre o tempo que as crianças têm de recreio, a qualidade de atividade que fazem no recreio e a capacidade de aprendizagem na sala de aula.

A que conclusões já chegaram?
Uma delas é que as crianças que são mais ativas no recreio, e que têm mais socialização, têm na sala de aula mais capacidade de atenção e de concentração. Isto tem a ver com uma tendência que está a acontecer em quase todo o mundo, de restringir o tempo de recreio para ter mais tempo na sala de aula. O que nós concluímos é que o tempo de recreio é absolutamente fundamental para a saúde mental e para a saúde física da criança. O recreio escolar é o último reduto que a criança tem durante a semana para brincar livremente. E, de facto, verificamos esta relação muito clara entre ser ativo no recreio e estar concentrado dentro da sala de aula.

Isto vem ao encontro de algumas investigações que têm sido feitas nos Estados Unidos, que relacionam o ser ativo com o desenvolvimento do cérebro e com o desenvolvimento neurológico. E, de facto, demonstra-se claramente que as crianças mais ativas têm mais capacidade de aprendizagem e mais capacidade de concentração. E têm, a médio e a longo prazo, mais capacidade de terem sucesso, mais autoestima e maior capacidade de autoregulação.

Esta questão dos recreios e do tempo que as crianças têm de passar sentadas na sala de aula está de alguma forma relacionada com o aumento dos diagnósticos de casos de hiperatividade? Muitos destes casos podem ocorrer porque as crianças não despendem a energia física que é suposto despenderem?
Os currículos hoje estão a ser demasiado exigentes quanto ao número de horas em que as crianças têm de estar sentadas. Devemos ter um plano para tornar a sala de aula mais ativa. Acabamos de fazer um programa com o Ministério da Educação, o Fit Escola, que é uma plataforma que tem como objetivo ajudar os pais, os alunos e os professores a tornarem as crianças um pouco mais ativas. E uma das ideias base é esta: se mudássemos a configuração das mesas e das cadeiras da sala de aula — estando as crianças a adquirir conhecimentos fundamentais, mas estando a fazê-lo de forma ativa –, não aprenderiam melhor?

Há aqui um fator muito importante que tem a ver com a maneira como os adultos, professores ou pais, estão neste momento a controlar as energias das crianças. Numa grande parte dos casos essa energia é natural, mas é considerada hoje como doença ou inapropriada. É inaceitável que 220 mil crianças estejam medicadas em Portugal. Isto não pode acontecer. Tem de haver um maior esclarecimento para verificar efetivamente se aquelas crianças merecem ser medicadas porque são de facto hiperativas ou têm défice de atenção. Mas acredito que uma grande parte dessas crianças não necessita de ser medicada.

Há crianças de 11 anos que entram às 8h15 e saem as 13h15 com apenas dois recreios de 15 minutos neste espaço de tempo, em que as aulas são sempre de 90 minutos. Nem um adulto trabalha tanto tempo seguido…
Pois não. Isso é contra natura, não tem a ver com as culturas de infância. Temos de ter um maior equilíbrio entre o que é uma estimulação organizada e uma estimulação ocasional, ou seja, entre o que é tempo livre, tempo de jogo livre, e o que é tempo de organização académica.

Brincar não é perder tempo, no seu entender…
Não. E por uma razão. Todos os estudos têm vindo a demonstrar que na infância, até aos 10/12 anos de idade, é absolutamente essencial brincar para desenvolver a capacidade adaptativa, quer do ponto de vista biológico quer do ponto de vista social. E hoje não é isso que estamos a fazer. Estamos a dar tudo pronto, tudo feito, e não estamos a confrontar as crianças com problemas que elas têm de resolver. Sejam eles confrontos com a natureza – que deixaram de existir – sejam eles confrontos com os outros.

Por exemplo, a luta, a corrida e perseguição, são comportamentos ancestrais que as crianças têm de viver na infância e que são essenciais para o crescimento. A apropriação do território, a noção de lugar, o medir forças de uma forma saudável, o brincar a lutar. Hoje observamos comportamentos na escola, quer por parte dos pais quer por parte dos educadores, que não são corretos. Porque quando veem duas crianças agarradas vão logo separá-las — e elas muitas vezes estão a brincar à luta, e brincar à luta é saudável. É um indicador de vida saudável das crianças. Como correr atrás de alguém, ou ser perseguido. Brincar é civilizar o corpo.

Eu não tenho nada contra os exames, nem contra as metas escolares. Agora, os exames e as metas curriculares não podem impedir que não se faça uma reflexão daquilo que a criança necessita para crescer de forma saudável. E, de facto, esta relação entre tempo sentado e tempo ativo precisa de uma maior reflexão no sistema educativo, sob pena de termos gravíssimos problemas de saúde pública a curto e a médio prazo. Nós vamos pagar muito caro o facto de não termos esse equilíbrio entre estimulação organizada e informal. E quanto mais descemos na infância pior.

Os adultos, tanto pais como educadores, têm também “culpa” nesta matéria?
Não pode haver uma linguagem terrorista, que é própria dos adultos, que impede as crianças de viverem certo tipo de situações de risco. Quer isto dizer que a linguagem e as proibições que vêm das bocas dos adultos, o não sistemático e persecutório, não permitir que as crianças tenham certo tipo de experiências que incluem níveis de risco maiores, só estão a conduzir a um analfabetismo motor e social.

Que tipo de “nãos”?
O “não subas”, o “olha que cais”, “não vás para ali”, “tem cuidado”, “não trepes à árvore”. Impedem as crianças de terem estas experiências, que são próprias da idade. Instalaram-se medos nas cabeças dos adultos. Medos das crianças serem autónomas. Nós nascemos para sermos autónomos e para termos, ao longo do processo de desenvolvimento, maior autonomia e maior independência. Basta ver como é que as crianças hoje vivem a cidade, como as cidades estão preparadas para as crianças. Nós estamos a cometer o erro de querer obter sucessos rapidamente, de querer que as crianças cresçam rapidamente, de que estejam todos incluídos nos rankings, mas estamos pouco preocupados com as suas culturas próprias. Não se está a ver o ator, não se está a ver o aluno. Na escola o que deveria emergir era o aluno e a criança, o que emerge é o professor e a burocracia.

As crianças andam pouco na rua? Têm pouca autonomia?
Dou um exemplo, os percursos escola-casa. Hoje, a maioria das crianças faz estes trajetos de carro, quando há 30 anos o faziam a pé. Hoje, as crianças têm uma vivência do território de forma visual e não de forma corporal. Quer dizer que as aventuras e as brincadeiras, em contacto com a natureza, desapareceram.

As novas tecnologias passaram a ter um lugar privilegiado no quotidiano da criança. Eu não tenho nada contra as novas tecnologias, mas tem de haver bom senso e um critério de saber gerir bem o tempo e o espaço destas novas tecnologias, em relação àquilo que são as necessidades biológicas do corpo.

Mas eventualmente elas vão andar sozinhas na rua… Quando chegar esse dia vão estar menos preparadas?
São crianças menos preparadas, mais imaturas, com maior dificuldade de resolução de problemas, porque têm menos autonomia, têm menos capacidade de resolução de problemas. Num país como este, que passou uma austeridade tão violenta, onde se fala tanto em empreendedorismo, como é que queremos que as nossas crianças sejam empreendedoras se estamos a retirar-lhes todas as possibilidades de elas aprenderem a fazer isso?

A construção de uma cultura empreendedora faz-se quando se dão possibilidades para que a criança possa brincar. Se nós retiramos aquilo que é a identidade da criança, que é brincar de forma livre, com um nível de margem de risco muito superior àquela que os adultos têm, elas com certeza que não vão ter condições de serem verdadeiramente autónomas nem de terem uma socialização suficientemente matura. Há uma relação muito grande entre a qualidade e a quantidade do brincar na infância e na adolescência e a passagem para a vida adulta.

Como assim?
Digamos que um corpo que não é feliz na infância é um um corpo que vai pagar muito caro no futuro. Se olharmos para outras culturas de infância — nos países que estão em desenvolvimento e nos países pobres — podemos ver que pode haver fome e problemas de sobrevivência extrema, pode haver até violência extrema, mas as crianças têm alguma liberdade de ação e têm muitas vezes uma capacidade de resolução de problemas, de resiliência, muito interessantes. Coisa que não acontece nos países muito desenvolvidos, onde há uma superproteção às crianças.

Fizemos um estudo recente aqui na Faculdade de Motricidade Humana sobre a independência e a mobilidade da criança. Em 16 países Portugal aparece em décimo lugar. Temos um índice de mobilidade muito abaixo dos países do norte da Europa. Quer isto dizer que o nível de autonomia e de independência de mobilidade está a ser um problema muito sério nas culturas de infância do nosso país. Um país que tem um território muito apropriado para que as crianças possam viver o espaço exterior. Temos um bom clima, um nível de segurança que é dos melhores da Europa, temos uma natureza e uma cultura interessantíssimas e estamos a desperdiçar essa possibilidade. As crianças já não contactam com a natureza, já não saem à rua, desapareceram e muitas vezes, o tempo que restava à criança para poder fazer isto tudo está restringido.

Falando agora dos mais pequeninos, das crianças a partir dos 3 anos. O que tem observado em relação à motricidade destas crianças?
Temos hoje crianças de 3 anos que ao fim de dez minutos de brincadeira livre dizem que estão cansadas, temos crianças de 5 e 6 anos que não sabem saltar ao pé-coxinho. Temos crianças com 7 anos que não sabem saltar à corda, temos crianças de 8 anos que não sabem atar os sapatos. As coisas mais elementares, quer do ponto de vista motor, quer do ponto de vista de motricidade grosseira, quer da motricidade fina, tiveram um atraso significativo. Claro que há exceções, claro que há crianças notáveis na sua apreensão e na sua coordenação motora global, mas se observarmos estatisticamente crianças do nosso tempo e crianças de há 30 anos, há uma diferença muito substancial.

Mas o que se pode fazer concretamente?
Se as crianças não brincam é porque os pais também não têm tempo para elas. Temos de fazer um grande plano de salvação nacional no que respeita à formação parental. Os pais têm que ter mais informações e mais formação sobre a importância de a criança ser fisicamente ativa. E livre.

Mas os pais podem pensar: o meu filho anda no ténis, e no futebol e na natação, pratica muito desporto…
Isso não resolve nada. Nem uma boa alimentação, nem exercício físico apenas resolvem o problema da iliteracia motora ou do excesso de gordura. A questão é multifactorial.

Tem de se olhar para a alimentação, com certeza, temos de olhar para a atividade motora e física e lúdica, mas temos de encontrar soluções no espaço construído que facilitem a possibilidade de as crianças virem para o exterior e terem contacto com a natureza e terem tempo para brincar. E por isso tem de haver flexibilidade de horários de trabalho, tem que haver políticas de maior acordo entre o tempo de trabalho da família e da escola, de modo a que haja mais qualidade de vida.

Por isso é importante saber que é tão importante a criança estar no recreio a brincar, como estar dentro da sala de aula. E isto não foi cuidado. Ainda para mais numa altura em que a criança em casa não brinca. E a criança ao pé de casa também não brinca. E não tem condições nem de acessibilidade, nem tempo, para frequentar os espaços de jardins públicos e os espaços de jogo.

Chegámos aos parques infantis. O que existe em Portugal é adequado às crianças?
Noventa por cento dos nossos parques infantis são equipados com sintéticos. Essas empresas, que vendem esses materiais para Portugal, são oriundas de países onde esse material não é vendido. Só vendem em Portugal. Porque os parques infantis em Portugal são escolhidos por catálogo, não são feitos com os atores, que são as crianças, não há projetos educativos para fazer o espaço de jogo, não há participação. Há um dispêndio financeiro enormíssimo do erário público, que não serve para nada. Eu, se tivesse de ter uma estratégia para os espaços de jogo para crianças em Portugal, começava por desequipar tudo. E montava tudo de novo.

Como é que deviam ser esses parques infantis?
Deviam ter uma lógica participativa da comunidade e dar mais soluções “selvagens” do que dinâmicas pré-formatadas, quer nos equipamentos quer nos espaços. O tartan é mais perigoso do que as aparas de madeira, ou a brita ou a relva. A qualidade do envolvimento tem sempre a ver com as possibilidades de ação das crianças. E quanto melhor essa qualidade, em termos de risco e de valor lúdico, melhor será a capacidade de resposta das crianças a uma estimulação que as faz crescer, que as torna mais autónomas.

Mas se calhar os pais quando ouvem falar de risco ficam assustados…
As crianças têm uma grande capacidade de autocontrolo.

Os pais têm de perder o medo?
É claro que esse é um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento motor, ao desenvolvimento percetivo, ao desenvolvimento da atividade lúdica: o comportamento dos pais. A Academia Norte-Americana de Pediatria fez um apelo a todos os pediatras para que, nas consultas com os pais, os convidassem a brincar mais com os filhos e a saírem mais à rua. Isto é, brincar mais em casa e “go out and play”.

Se a Organização Mundial de Saúde considerar que o sedentarismo é uma doença, temos um problema mais sério que a obesidade. Temos de ter um plano de emergência para que as crianças tenham o que merecem em determinada idade. E a maneira como se está a fazer este controlo das energias, a falta de tempo que os pais têm, os medos que se instalaram na cabeça dos pais e a forma como o planeamento urbano é feito, significa que temos aqui todos os condimentos para termos uma infância que está a crescer com problemas muito complicados, do ponto de vista do conhecimento e do uso do seu corpo.

As crianças que vivem nos meios menos urbanos ainda são privilegiadas no que diz respeito à independência e à autonomia?
Ainda estávamos convencidos de que haveria alguma diferença, quando analisávamos a questão entre estrato socioeconómico ou relações entre cidade, vila e aldeia. Já tudo mudou. Formatou-se o estilo de vida, independentemente se é cidade ou é aldeia. O ecrã alterou muito significativamente a vida das crianças e dos pais. Passou-se da trotinete ao tablet de uma forma rapidíssima e não há equilíbrio. E o que está em causa neste momento é que nem a atividade desportiva que as crianças fazem em clubes, nem a educação física escolar, nem o desporto escolar — que são muito importantes — são suficientes para acabar com o sedentarismo que existe.

As crianças têm de voltar a ter a possibilidade de terem amigos e de serem mais ativas. E para isso tem de haver políticas muito corajosas para a infância. Os adultos andam de bicicleta, os idosos passeiam na rua, os jovens adolescentes vão tendo soluções, agora as crianças têm de brincar porque é a única alternativa que elas têm. Têm de brincar em casa e os pais têm de brincar com elas, brincar ao pé de casa e os pais têm de dar autonomia, brincar na cidade e tem que haver políticas de planeamento urbano capazes de também oferecerem condições apropriadas aos bebés, às crianças que estão a aprender a andar, às crianças que têm 5, 6, 7, 8 anos. Tem de haver equipamentos e espaços adequados que permitam mais margem de risco, mais margem de perigo. Há uma relação muito direta entre risco e segurança. Quanto mais risco, mais segurança e quanto mais risco, menos acidentes. Enquanto isto não for visto nesta perspetiva, vamos ter mais acidentes, porque há menos risco e por isso há menos segurança.

Pode exemplificar?
O exemplo é simples, eu costumo dá-lo de uma forma muito regular. As crianças têm de subir mais às árvores e os pais não têm de ter medo por isso. Porque hoje as crianças sobem, mas já não descem. O medo que se instalou na cabeça dos pais transmite-se muito facilmente para as crianças. Um pai inseguro faz do seu próprio filho uma criança insegura, vulnerável, que tem medo de arriscar.

Há 30, 40 anos, era perfeitamente natural vermos duas crianças a brincar à luta. Hoje, parece que é um crime brincar à luta, parece que é um crime brincar aos polícias e ladrões, parece que é um crime fazer uma descoberta, ou saltar um muro, ou fazer equilíbrio em cima de um muro. Instalou-se um medo quase que sobrenatural, de haver perigos de morte de rapto de violação. Há um exagero na maneira como se instalaram essas dinâmicas psicológicas nos adultos. Temos de combater isso.

Se um dia houver esse confronto com o risco as crianças vão estar menos preparadas para reagir?
Exatamente. E para se prepararem e para se adaptarem e para serem empreendedoras. Ouvimos todos os políticos a falarem que Portugal precisa de empreendedores. A nossa cultura foi desde sempre uma cultura lúdica, de procurar o desconhecido, de procurar o incerto, o imprevisível. A cultura portuguesa, na sua história, é sinónimo de aventura. E esse bem precioso que tínhamos na nossa cultura está em desaparecimento, o que eu lamento muito. E se esse erro trágico se faz na infância, ele é um duplo erro. Não só para o empreendedorismo, mas para a saúde pública, para a capacidade de aprendizagem escolar, para a capacidade de harmonia familiar, no fundo para ter uma vida feliz e com qualidade.

Que conselho dá aos pais das crianças em Portugal?
Os pais têm de abrir as suas cabeças, libertar os seus medos, darem mais oportunidades às crianças para elas terem uma vida mais saudável, mais ativa, com uma exploração do espaço natural e do espaço construído que faça mais sentido.

Com que idade uma criança deveria ou poderia estar habilitada a ir de casa para a escola a pé?
A partir da segunda fase do primeiro ciclo, do terceiro ano, as crianças já têm condições psicológicas, físicas e sociais para poderem ir a pé para a escola. Há crianças que vivem a cem metros da escola e vão de carro. Há pais que vão levar a criança com 8 anos, muitas vezes, ao colo, ao professor na sala de aula. Não há praticamente autonomia.

Como se pode admitir que haja crianças que durante um dia não fazem um esforço correspondente a uma hora de trabalho? Esse sedentarismo tem consequências nefastas a todos os níveis. A verdadeira troika que precisa de ser reabilitada é a relação entre a qualidade de vida da família, a qualidade de vida da criança e o território. Estas três componentes têm de ser articuladas. Porque não flexibilizamos os horários de trabalho?

Eu, na Austrália, vejo pais que começam a trabalhar às oito da manhã e saem às quatro da tarde, em jornada contínua. E depois vai tudo para os parques, tudo vai brincar e jogar, com uma cultura recreativa fantástica. Mas não é só a Austrália. Nos países nórdicos, que têm um clima muito mais austero, as crianças andam na rua faça chuva faça sol, faça neve. Em Portugal, cai um pingo e a criança é posta numa estrutura interior. Vou repetir: temos de aprender e ensinar as nossas crianças a serem capazes de lutar contra a adversidade e nós temos uma cultura ultra protetora, superprotetora.

E essa cultura vai colocá-los em risco.
Em risco. A cultura superprotetora põe as crianças em risco. O nível de maturidade cognitiva vai evoluindo, e à medida que vai evoluindo – e por isso a criança aos 7 anos tem capacidade de aprender a ler, a escrever e a contar, que são linguagens abstratas – ela tem de brincar muito.

A ciência demonstra que, no ciclo da vida humana, o pico maior, onde há mais dispêndio de energia, é entre os cinco e os oito anos. Temos de ter muito respeito por isso. Não podemos confundir tudo e achar que essas energias são anormais. São naturais e por isso temos de olhar para as energias das crianças como energias naturais e não patológicas. Há cinco, seis anos, falava num crescimento atroz de crianças “totós” e eu acho que hoje em dia esse grau de imaturidade está a atingir níveis com proporções inacreditáveis. Porque as crianças estão mesmo vulneráveis e imaturas, porque nunca foram colocadas perante nenhum risco que as fizesse crescer.

Podemos ter muito amor aos nossos filhos, muita amizade pelos nossos filhos, mas o melhor amor que podemos ter por eles é dar-lhes autonomia. Eu aprendi isto com um grande mestre, João dos Santos, o maior pedopsiquiatra português. E ele ensinou-me, há muitos anos, que educar é um vai e vem entre dar proximidade para dar segurança e dar distanciamento para dar autonomia. Quando eu tenho uma criança que tem condições para ter autonomia, eu devo dar-lhe autonomia. Quando ela tiver necessidade de ter proximidade, eu dou-lhe afeto. E o que está a acontecer é que nós, adultos, estamos a criar uma patologia obsessiva de querer proteger tanto os nossos filhos e ao mesmo tempo criar-lhes uma exigência de que sejam génios. Isto é um paradoxo e é uma contradição absoluta. Eu não consigo entender como é possível termos chegado a isto.

Fonte: Observador por indicação de Livresco

Sem comentários: