No dia em que os pais emigraram para França, Gabriel ficou a cuidar dos três irmãos. Com 15 anos, assegurava em casa aquilo que antes era assegurado pelos pais: comida, trabalhos da escola, roupa lavada. O casal deixara a Gabriel (nome fictício) um cartão multibanco. A todos deixara recomendações que cumpriam de forma organizada.
Os quatro rapazes mantinham na ausência dos pais as rotinas instaladas na presença deles. Ninguém, durante cinco meses, deu sinais de se aperceber da mudança na vida desta família – até chegar uma denúncia do senhorio da casa à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Sintra Oriental, onde a situação de Gabriel não era única e entrou na categoria de abandono ou criança entregue a si própria.
O número de crianças em situação de abandono ou entregues a si próprias representa uma pequena minoria (2%) no mapa de situações de perigo detetadas nas crianças e jovens com processo aberto nas 308 CPCJ de todo o país. Esta problemática é relegada para um plano secundário pela forte presença dos alertas por violência doméstica, exposição a comportamentos que comprometem o desenvolvimento e o bem-estar da criança ou do jovem, negligência ou maus-tratos físicos.
Mas nas estatísticas globais para todo o país, anualmente publicadas nos relatórios da Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR), o abandono surge como estando a aumentar, todos os anos, pelo menos desde 2010. Nesse ano, havia 1224 situações de abandono sinalizadas. Em 2014, de acordo com o relatório divulgado no início de junho, houve 1456 situações por abandono diagnosticadas.
Na CPCJ de Sintra Oriental, em particular, o abandono é atualmente uma das problemáticas que mais preocupam pelo aumento muito acentuado de sinalizações. O alerta deu-se entre 2013 e 2014, quando o número de processos abertos (não apenas porque ambos os pais emigraram) passou de quatro para 28. E mantém-se este ano, com 22 situações por abandono nos primeiros seis meses deste ano, até 30 de junho, quase atingido o total de todo o ano de 2014 – ou porque há mais casos ou porque há mais denúncias.
Já este ano, a polícia foi chamada porque duas crianças de três e cinco anos estavam sozinhas em casa. As crianças ficavam sozinhas durante a noite, de forma sistemática. A menina de cinco anos cuidava da mais nova: aquecia o leite, dava-lhe o biberão. Nessa madrugada, a mãe chegou já o sol nascera. As crianças foram entregues a uma tia.
Este é um caso extremo. Mas existem “muitos alertas de crianças que estão regularmente em casa sozinhas”, diz Sandra Feliciano, presidente da CPCJ de Sintra Oriental, que conta como um menino de oito anos se regulava pela hora dos desenhos animados para saber a altura de sair para a escola.
Ausência e abandono
O abandono de crianças pode tomar várias formas: ausência temporária ou permanente de apoio (este último pode acontecer quando há abandono efetivo ou entrega a um familiar que não é bom cuidador), ou abandono à nascença ou nos primeiros meses de vida. Esta última tem vindo a perder expressão, no sentido inverso ao dos abandonos porque ambos os pais emigraram.
“São muitos os pais que estão a sair do país. Deixam os filhos com amigos ou familiares mas estes, com o passar do tempo e o crescimento das crianças, esquecem-se de que tinham uma responsabilidade. Deixam de assumir esses cuidados ou de estar atentos”, diz Sandra Feliciano, presidente da CPCJ de Sintra Oriental, que engloba o Cacém, São Marcos, Agualva, Mira Sintra, Queluz, Belas, Massamá, Monte Abraão e Casal de Cambra e está entre as cinco maiores CPCJ do país.
“Estes miúdos, quer estejam em abandono efetivo quer estejam em abandono emocional, não conseguem estar bem na escola. Estão a gerir abandonos. Tudo à sua volta está comprometido. Não se conseguem projetar no futuro. O que lhes adianta terem boas notas se os pais não estão lá?”, questiona.
Mais tarde, é nestas ausências de apoio familiar que surgem os problemas comportamentais ou percursos delinquentes, quando “não deram sinal anterior de serem um abandono”, explica a responsável. “Muitos destes miúdos ainda nos escapam. Mas sabemos através do trabalho em parceria com as entidades de primeira linha [creches, escolas], que muitas crianças estão a ficar em Portugal quando os pais emigram. Alguns pais estão a informar as escolas e as creches que vão deixar os filhos com um familiar porque vão emigrar”, diz Sandra Feliciano. Por isso, diz, é urgente alertar a comunidade para estar atenta a estas situações “muito presentes e cada vez mais presentes”.
Pelo comportamento “corretíssimo” que assumiam, Gabriel e os irmãos “facilmente escaparam às malhas do sistema” durante meses. A responsável acredita pois que, por cada história de abandono conhecida, haverá pelo menos uma história oculta.
Em Sintra, estas situações acontecem sobretudo em famílias imigrantes que agora regressam aos países de origem já depois de fazerem a vida em Portugal. Partem por razões económicas, com o projeto de voltar a Portugal, mas nem sempre voltam. Deixam os filhos com pessoas que nem sempre assumem o papel de cuidador. Sandra Feliciano descreve o caso de um tio, que ficara responsável pelos três sobrinhos, entre 10 e 15 anos. “Passava dias a fio sem ir ver os miúdos. Eles não estavam bem. Foram sinalizados pela escola.” Os pais não voltaram e as crianças foram acolhidas numa instituição.
"Decisões difíceis"
Não é possível identificar estas situações como estando presentes nas 308 comissões de proteção do país, uma vez que os relatórios nacionais não distinguem este fenómeno de outros, na categoria de abandono. Também não é percetível um aumento destas situações nos dados tratados pelo Instituto de Apoio à Criança (IAC).
Porém, também Manuel Coutinho, secretário-geral do Instituto de Apoio à Criança (IAC) e coordenador da equipa da linha de atendimento SOS Criança (116 111), acredita que os números conhecidos não revelam a verdadeira dimensão desta problemática. “É um fenómeno que está a aparecer. Em situação de crise, as crianças são as primeiras vítimas a sentirem o fenómeno na pele”, diz o psicólogo.
"Muitas vezes, por falta de recursos, as famílias são forçadas a tomar a difícil decisão de partir para o estrangeiro ou de deixar os filhos sozinhos em casa quando vão trabalhar", acrescenta. E na comunidade “há tendência a compreender a situação dos pais que tomam estas opções". Estas situações não ficam registadas, porque não há conhecimento delas. “Mas existem”, conclui Manuel Coutinho.
A presidente da CPCJ de Vila Nova de Gaia Norte Paula Fernandes diz que as situações de abandono estão agora mais presentes na sua comissão, não tanto por situações de emigração, mas porque têm surgido, com mais frequência, situações de mães que abandonam o lar e deixam os filhos com o pai, não sendo este um bom cuidador (por ser um pai ausente ou alcoólico) ou porque vão trabalhar e deixam as crianças com avós ou outros familiares “num contexto que não é adequado” e onde por vezes também surgem situações de perigo.
Paula Fernandes também relata o caso de crianças acompanhadas por uma pessoa diferente todos os dias porque vivem em famílias monoparentais, e o pai ou a mãe trabalha por turnos: desde madrugada ou pela noite dentro. Na realidade, diz, “estão entregues a si próprias”. E embora o abandono esteja pouco representado na lista de problemáticas da CPCJ de Vila Nova de Gaia Norte, uma das maiores do país, está a aumentar: as cinco situações diagnosticadas em 2011 e 2012 passaram a 12 no ano passado. Só em 2013, surgiu a situação de um rapaz de 15 que ficou a viver sozinho quando a mãe emigrou para França. Quando esta foi contactada, aceitou o acordo de promoção e proteção do filho: a institucionalização.
Também Gabriel e os três irmãos foram acolhidos numa instituição. Uma vez que a mãe começou por estar incontactável, foi necessário acionar o procedimento de urgência de retirada, por situação de perigo iminente, sem o consentimento dos pais. “Os miúdos tinham a preocupação de não ficarem separados”, diz Sandra Feliciano. E não ficaram. A retirada para uma instituição foi imediata, mas foi breve. “Quando devolveu o nosso telefonema, a mãe ficou aflita.” Esta mãe, acredita Sandra Feliciano, saiu de Portugal “por necessidade”. E desde que regressou poucos dias depois, não voltou a emigrar.
Fonte: Público
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