Mais crianças em 2014 expostas à violência doméstica do que no ano passado. E novas situações de perigo sinalizadas por bullying ou comportamentos graves antissociais ou de indisciplina. No universo das 308 Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) em todo o país, e olhando apenas os processos instaurados em 2014, também as situações de perigo quando está em causa o direito à educação estão agora mais presentes – isso acontece nas crianças entre os 10 e os 14 anos. As conclusões constam do relatório da Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR) que será divulgado esta quinta-feira no encontro anual das CPCJ que este ano se realiza em Ovar.
A negligência – que atinge sobretudo as crianças mais pequenas – tem estado em fase descendente há alguns anos e assim continua. Mas em contrapartida é sobre as crianças mais pequenas que o impacto da exposição a comportamentos que a prejudicam, como a violência doméstica, é maior. “Aquela violência a que a criança assiste ou pressente, e que a afeta” – nas palavras de Armando Leandro, juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça que preside à CNPCJR desde 2005.
A tendência acentua-se desde que em 2012, pela primeira vez, o conjunto de sinalizações de crianças e jovens por exposição a comportamentos que comprometem o seu bem-estar e o seu desenvolvimento – dominado em mais de 90% dos casos por esse cenário de violência entre os pais – passou a ser o mais representado no total de processos instaurados. Agora, e pela primeira vez, esses casos passaram também a ser preponderantes no volume processual global, que engloba os processos abertos, transitados do ano anterior e aqueles que tiveram de ser reabertos.
O conjunto de processos nas várias fases também aumentou, mantendo a tendência dos últimos anos. Em 2014, totalizou 73.019. E era de 71.567 no ano anterior.
Olhando apenas uma parte desse total – os processos abertos em 2014 (30.356) – o aumento é praticamente impercetível relativamente a 2013 (30.344). A diferença é de apenas 12. Armando Leandro descreve por isso uma situação, em traços gerais, semelhante, à de 2013, embora com a particularidade de o bullying e de os comportamentos graves de indisciplina estarem a assumir valores novos.
Neste último ano, os processos abertos por bullying passaram a barreira dos 300 (foram 339) quando antes estiveram sempre abaixo dos 250 (233 em 2013 e 225 em 2012). Já o salto maior nas sinalizações por comportamento grave antissocial ou de indisciplina vem de 2013. A problemática, que atingia 864 crianças ou jovens em 2012, passou a afetar 1253 em 2013. No ano passado, novo aumento, embora mais ligeiro: para 1291 processos instaurados. Assim, bullying e indisciplina grave aumentaram 50%. O primeiro em 2013. O segundo em 2014.
“São aumentos com um significado, que será preciso compreender. São problemáticas a que cada vez mais temos de atender”, afirma Armando Leandro. E acrescenta: estes números podem resultar de um aumento objetivo das situações ou serem simplesmente reflexo da sua maior visibilidade, com mais denúncias de casos.
“Não podemos tirar conclusões lineares e precipitadas”, adverte o presidente da CNPCJR sobre estas tendências mas também a respeito do maior número de procedimentos de urgência acionados pelas comissões locais em 2014 quando esse número atingiu os 234. Foi de 215 em 2013 e de 217 em 2012. “Pode refletir um agravamento das situações”, admite. Mas pode também haver muitas outras explicações. “Há razões que exigem aprofundamento, para podermos conhecer as razões.”
Calculados estão apenas os casos em que foi acionado o procedimento de urgência sem o consentimento dos pais, para afastamento imediato da criança de uma situação de perigo iminente e grave para a vida ou integridade física da criança. Casos em que a criança não pode aguardar. Este procedimento (que pode ser aplicado pela PSP ou pelas comissões de proteção) tem que ser confirmado pelo juiz no prazo de 48 horas. Mas a estes números, ainda devem ser acrescentadas as situações em que o procedimento de urgência foi acionado com o consentimento parental, sendo aplicada uma medida provisória.
“Outra realidade que nos cumpre aprofundar”, salienta Armando Leandro, é a relativa ao aumento consistente, nos últimos anos, do número de processos reabertos. Significa isso que a primeira avaliação não foi a mais acertada? A situação que se julgava resolvida justifica afinal uma medida de proteção junto da criança? “Só uma observação objetiva dos processos pode dar-nos uma ideia mais clara das razões”, insiste. As situações por vezes prolongam-se e passam por várias fases. O não consentimento dos pais ou a oposição do jovem a um acordo com a comissão podem obrigar ao arquivamento do processo e a uma reabertura mais tarde. "Cada caso é um caso", diz. E a prevenção, que tem sido intensificada, na comunidade, será a melhor forma de proteger os direitos da criança, realça o magistrado.
“Falha” houve no caso recente da menina de Loures, admite Armando Leandro. A criança de dois anos estava sinalizada na CPCJ e foi morta em casa. O padrasto está indiciado pelo homicídio. “O inquérito aberto irá prosseguir e tirar as suas conclusões. Mas é evidente que foi uma falha. Uma falha que é preciso superar, através do acompanhamento, da avaliação, da formação dos técnicos e da supervisão por parte da Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco”, reconhece o responsável. E conclui: “Temos de melhorar o sistema mas o sistema tem o funcionamento adequado no pensamento e na ação. Não podemos comprometer o sistema por causa das falhas. Mas também não podemos conformar-nos com elas.”
Alguns números
53
A diferença é ligeira, mas nos processos instaurados, os rapazes estão mais presentes do que as raparigas em todas as idades – como aliás em anos anteriores. Em 100 processos, 53 dizem respeito a rapazes e 47 a raparigas.
2024
Os distritos de Lisboa e Porto as zonas de maiores perigos. Amadora continua a liderar com 2024 processos. Entre as cinco maiores CPCJ mantêm-se também Sintra Ocidental, Sintra Oriental, Loures e Lisboa Norte. Vila Nova de Gaia e Matosinhos continuam entre as 10 maiores, assim como Ponta Delgada.
37.889
Em 2014, após avaliação da CPCJ, 37.889 situações de perigo justificaram a aplicação de uma medida de promoção e proteção da criança ou do jovem. Seis medidas de promoção e proteção estão previstas na lei: o apoio junto dos pais, o apoio junto de outro familiar, a confiança a pessoa com ligação à criança (madrinha, padrinho, madrasta), o apoio para autonomia de vida (para jovens com mais de 15 anos ou mães adolescentes), e o acolhimento familiar ou em instituição.
36.893
No ano passado, foram efetivamente aplicadas 36.893 medidas de promoção e proteção – mais 2437 do que no ano anterior, levando a Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco a qualificar de “muito significativo” o trabalho das comissões locais.
33.156
Para quase 90% das medidas aplicadas em 2014, abrangendo 33.156 crianças, a opção foi uma solução em meio natural de vida: a criança permaneceu junto dos pais ou foi viver com outro familiar (com apoio) ou junto de pessoa próxima da criança, como padrinhos, madrasta ou padrasto.
3737
A solução encontrada para 3737 crianças (10% das medidas aplicadas) foi o acolhimento em instituição ou numa família, representando esta última opção uma percentagem mínima (0,3%) do total. Do total de 3613 crianças e jovens acolhidos em instituições, 599 são crianças com menos de cinco anos.
8829
Mantendo-se a tendência instalada desde o alargamento da escolaridade obrigatória até aos 18 anos, os jovens entre os 15 e os 18 são aqueles que têm o maior número de processos abertos em 2014 (8829) e representam cerca de 30% do total. As crianças até aos cinco anos são o segundo maior grupo com processos instaurados. Nessas circunstâncias, são 7378.
3919
No conjunto das crianças até aos cinco anos, os bebés até aos dois anos representam mais de metade. Ou seja: a situação de 3919 bebés até aos dois anos (13% do total) motivou a abertura de um processo no ano passado.
Fonte: Público
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