Nasceu para baralhar as estatísticas. Tem uma cromossomopatia única no mundo e os médicos não lhe davam mais que umas horas de vida, dois dias no máximo. Maria tem 15 anos, vai fazer 16. Para contar a história é preciso falar da mãe, dos médicos, dos hospitais, do seu irmão Tomás e de Bagão Félix. Sim, foi o primeiro a receber Ana Rebelo, já desesperada por não haver uma escola que aceitasse a filha
Soube que alguma coisa não estava bem às 27 semanas, numa ecografia de rotina, acabadinha de chegar de férias, sentia-se lindamente. Aparentemente, o bebé tinha parado de crescer. Mandaram-na ficar em casa em repouso absoluto e pediram uma bateria de exames. Foi então que começaram a desconfiar de um problema genético. Até que chegou o veredicto: uma cromossomopatia que não é rara, é única no mundo.
Ana Rebelo tinha 25 anos na altura e passou-lhe tudo pela cabeça. Nem sabe ao certo em que pensou porque os acontecimentos sucederam-se. Para Maria, que nasceu para contrariar as estatísticas, uma cromossomopatia era pouca coisa. “Disseram-nos que ela tinha o coração hipoplásico [o lado que bomba sangue demasiado pequeno para o fazer funcionar] e que iria viver, no máximo, 48 horas. Entrei em stop.”
A interrupção da gravidez foi discutida, foi tudo discutido. Mas na data prevista, na Maternidade Alfredo da Costa (MAC), essa sim já falecida, “a Maria nascia, depois de um parto difícil”. A mãe foi aconselhada a não ver o bebé para não criar laços ou expectativas, além de que não se conhecia exatamente a extensão das malformações. As primeiras horas foram uma eternidade. Maria acabaria por ser operada ao coração já com um mês. Pelo meio, hipertensão pulmonar e uma hérnia do hiato, que provocava refluxo e a fazia deitar fora o que comia.
Quando chegou aos cinco meses pensaram em operar. “Queriam mandá-la para casa com uma sonda gástrica, mas eu não aceitei, porque eram os pais que tinham de a colocar. Um tubo que se enfia pelo nariz e se errarmos o alvo perfuramos um pulmão e matamos a criança. No hospital é feito por médicos e enfermeiros. Foi operada e aos sete meses veio para casa.”
Finalmente em casa e a ganhar peso. Mas é a Maria, a que veio para desafiar as estatísticas. As coisas não ficaram por ali. Depois do terceiro dia, ao mudar-lhe a fralda, Ana reparou numa massa branca dentro do olho. “Pensei: estou louca, já estou a ver coisas. Desde que nasceu até aos sete meses no hospital vem para casa e vejo uma massa. Entrei em pânico, telefonei aos médicos todos que conhecia, marquei uma consulta no oftalmologista, levei-a de urgência e mal ele a observou viu logo. Sentou-se e nem foi preciso dizer nada. Encaminhou-a para o IPO – Instituto Português de Oncologia, e depois foi marcar a viagem para a Suíça, Lausanne – é lá que os olhos têm mais hipóteses de se salvar. Já não conseguimos fazer nada pelo da Maria. Que entretanto entrou em paragem cardíaca e em vez de dez dias ficou um mês e meio na Suíça. Veio medicalizada para Portugal e foi outra vez para Santa Marta. Ao contrário do que estávamos à espera, quando vieram os resultados das análises ficámos a saber que teria de fazer quimioterapia – seis ciclos.”
Foi nesta altura que Ana soube que estava grávida do Tomás, que tem uma diferença de 19 meses de Maria. “Fiquei feliz porque não calha duas vezes à mesma pessoa. E infeliz porque me disseram que não podia estar com a Maria ao colo por causa dos químicos. Mas tudo se gere.” E tudo se geriu.
“Isto é tão disparatado que me lembro de me chamarem ao Hospital de Santa Marta, a mim e ao meu marido, e pensar que por fim ia ter notícias da Maria, quando o médico chega ao pé de nós, muito sério, e diz: queria falar convosco por uma questão.
É que normalmente 95% dos casais que têm o primeiro filho assim divorciam-se. E eu pensei, isto não é normal.” Faz parte dos 5%.
Na verdade, nada era normal. Até ao ano e meio, Maria foi vivendo sempre a prazo, primeiro umas horas, depois umas semanas, depois uns meses. “Mas os prazos foram aumentando, já não me diziam que era mais uma semana ou até ao dia seguinte.”
Ana ficou na maternidade apenas as primeiras 24 horas após o nascimento de Maria. “Nos hospitais portugueses não há condições nenhumas. Era impossível, eu tinha pontos até às costas depois de ela nascer. Eles queriam que eu ficasse, mas ela já lá não estava, tinha sido transferida. Assinei um termo de responsabilidade e fui para casa.”
Ao quarto mês já trabalhava. “Fui eu que pedi à minha entidade patronal para voltar a trabalhar, porque pensei que ia ficar maluca, sempre sob uma carga tão negativa. Ia todos os dias de manhã ao hospital dar-lhe o pequeno-almoço, dar-lhe banho, ia trabalhar, voltava para almoçar com ela, regressava para o trabalho e voltava ao hospital no final do dia.” Num dia normal Ana passava cerca de seis horas no hospital.
A partir do ano e meio tudo começou a correr melhor. Mesmo assim, Ana lembra-se da relação cúmplice do Tomás com Maria. Afinal chegaram os dois a casa quase ao mesmo tempo. Ele assistiu a coisas que Matilde, agora com dez anos, não presenciou. A mãe lembra-se de entrar com Maria debaixo do braço e ir fazendo Tomás avançar com pontapés carinhosos no rabiosque para entrarem em casa porque não podia com os dois ao colo: “Vá lá, bebé, anda.”
“O Tomás viu a Maria muito mal. Viu a irmã a morrer. Volta e meia era uma questão de minutos chegar ao hospital para ela sobreviver. Ele tinha nove meses quando ela teve um problema grave e ficou internada. Penso que percebeu pela primeira vez que ela não voltava para casa e esteve três dias sem dormir, sem comer, sem sorrir. Pensei que também teria de ser internado. Quando a viu regressar começou a rodar, a rodar sentado no chão, até cair para o lado, parecia maluco. De alegria.”
O tempo foi passando e as ansiedades também. Nunca houve percentis ou planos, o que era preciso era viver o dia-a-dia, minuto a minuto. Mais tarde os problemas passaram a ser outros. “Não há qualquer sinal de ligação entre uma criança diferente e a sociedade, que não está preparada para a receber, para a incluir. Tivemos de enviar cartas à maluca, pedimos para ser recebidos até por Bagão Félix, que era então ministro da Segurança Social, e foi o único que nos recebeu e organizou todo o processo da Maria”, conta Ana.
Bagão Félix fica enternecido com a ideia de ter ajudado e quer recuperar esta memória. “Vivemos numa espécie de tecnocracia social. As dificuldades têm de ser resolvidas, mas o Estado não está preparado para isso, não tem omnisciência afetiva. É indispensável humanizar, mas a sociedade não está a tender para isso. Se eu tivesse de definir o principal mal da sociedade contemporânea, seria a indiferença e a banalização das coisas más”, diz.
Também com a ajuda da Fundação LIGA, Maria esteve na escola Tartaruga e a Lebre, primeiro, e no Jardim de Infância de Telheiras depois. “Nessa altura ainda havia apoio de educadora de ensino especial, agora já não há nada. Tive de arranjar um colégio, bati a todas as portas, fui a todas as escolas, e ninguém tinha vagas. Todos tinham, mas ninguém a queria. Até que descobri que ia abrir uma escola nova, o Colégio Oriente, e fui lá inscrever os meus filhos, que então já eram três. A relação não começou nada bem, e tive de os ameaçar de que mandaria fechar a instituição porque me diziam que a inscrição da Maria estava mal feita. Mas tudo se resolveu, funciona às mil maravilhas e a Maria está mais que integrada. Eu não me preocupo com absolutamente nada, tudo é partilhado, tenho reuniões com a psicóloga que a acompanha e faz o processo dela, falamos com a direção, tenho uma equipa de terapeutas que é exterior a trabalhar dentro do colégio e que sou eu que pago, mas a que eles abrem a porta, e desde então têm incluído mais meninos e corre tudo muito, muito bem.”
Mas Ana Rebelo sabe o que é ter de fazer valer os seus direitos, os direitos de Maria, dar-lhe uma vida plena. “A inclusão em Portugal é uma realidade muito difícil de encontrar, mas estes 15 anos ensinaram-me que uma criança com problemas tem de ter médicos por trás e tudo o resto é melhor se ela puder partilhar normalmente. Eu não tenho um curso de mãe de deficiente, os meus filhos não têm curso de irmãos de criança deficiente, os professores também não precisam de ter curso de professores de aluno deficiente. Claro que tem de haver equipas, e aí sim, o Estado tem de dar apoio nas escolas públicas. Não faz sentido haver inclusão até ao seis anos e de repente, a partir daí, não haver mais nada a não ser unidades de multideficiência em que põem crianças deficientes a viver com deficientes. Se aprendemos por mimetização, quando temos oito crianças com deficiência o que vai acontecer é que vão repetir os comportamentos umas das outras. Isso não é bom, não é saudável.”
E por isso Maria está sempre bem. É uma miúda serena, carinhosa e que transmite muita calma às restantes crianças da turma. Está inserida na pré, nos cinco anos, no ensino regular, e é um deles. Em tudo. No Centro Helen Doron do Parque das Nações, onde tivemos esta conversa, está a aprender inglês e já diz muita coisa, como “I love you”, que repete seguido de uma gargalhada. “Consegue criar um espírito de equipa e de amizade e transmite valores como a persistência. Os amigos vão para casa e dizem aos pais: ‘A Maria ontem não conseguiu fazer uma coisa e hoje a primeira coisa que fez foi tentar outra vez.’”
As crianças não são sempre o problema. Mariana Torres, responsável pelos centros Helen Doron em Portugal, conta uma história que se passou no centro de Odivelas, numa aula de demonstração, e que ilustra também a crítica de Bagão Félix e Ana Rebelo. No final da aula, duas mães dirigiram-se à secretaria e disseram que gostariam de inscrever os filhos mas não os queriam na mesma classe que uma criança que viram ali, numa cadeira de rodas (um deficiente motor). Mariana Torres foi chamada e acabou por agradecer às duas senhoras a sua presença e explicar que os seus filhos não tinham ali lugar.
Houve uma altura em que Ana se revoltava com estas situações. “Agora vejo que não fomos ensinados e temos medo do desconhecido. Por isso em breve vou lançar um projeto para mostrar à sociedade que estas crianças não são umas coitadinhas. O objetivo é abrir mentalidades, através de uma campanha nacional dinâmica, que vai apontar caminhos, soluções.”
Mas Maria faz muito mais coisas, está na equitação, por exemplo. Dos três irmãos, é a que tem mais atividades extracurriculares, tirando as terapias. A Ana pode pagar e sabe isso. As suas despesas mensais são, no total, perto de 5 mil euros: “Se a Maria não tiver de mudar uma prótese, refazer uma operação mal feita pela qual o médico não quis responsabilizar-se ou não tiver de viajar por qualquer motivo de saúde”, bem entendido. Até setembro de 2013,
Ana foi responsável por uma multinacional em Portugal e trabalhava quase 17 horas por dia para conseguir pagar as contas, até ao dia em que o pai morreu e ela decidiu despedir-se. Hoje tem a sua empresa, trabalha que se desunha, mas tem tempo para pensar. “E sou uma cigana a negociar terapias: 45 minutos custam mais ou menos 50 euros, mas eu pago 25”, ri-se.
Nesta matéria, Bagão Félix não tem dúvidas: “É aqui que o Estado tem de aplicar o princípio da subsidiariedade”, diz. “É nisso que se baseiam as prestações sociais, é para isso que servem.”
Em breve Maria fará uma grande operação à boca. Detesta tratamentos, podemos todos imaginar porquê. Adora gelatina e foi uma das primeiras palavras que disse, depois de alguma chantagem, confessou Ana. A primeira, todos adivinham qual foi... “Mãe.” Pronto, também foi com chantagem.
E agora, enquanto a Ana vai pensando no novo blogue e falando com a professora de Inglês, a beneficiária sou eu. É que nesta altura a Maria está ao meu colo e, à vez, vamos dando abraços uma à outra e, entre risos, exclamando “tão bom!” Isto sim, é terapia. Vá, roam-se de inveja.
Nota: Destacado no texto pelo autor e editor do blog.
Fonte: Jornal I
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