quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

SEMEAR A MUDANÇA

Sensibilizar a sociedade civil. Há seis anos que o BIPP – Soluções para a Deficiência implementa estes dois objetivos, promovendo a inclusão de jovens com deficiência no mercado de trabalho, dando-lhes autonomia e qualidade de vida. Há duas semanas, a instituição viu o seu trabalho reconhecido com a atribuição do primeiro lugar do Prémio BPI Capacitar. Com o dinheiro que vai receber, ajudará ainda mais jovens a entrar no mercado de trabalho.

Não fora o frio que se faz sentir nesta manhã de dezembro e até parecia que estávamos na primavera. Os tons de verde, o cheiro a terra molhada e o sol que aquece este pedaço de terreno da Tapada da Ajuda ajudam a esquecer o calendário. Estamos numa zona privilegiada de Lisboa onde o silêncio impera. Aqui, respira-se tranquilidade.

Mas a azáfama é muita. Alguns dos 42 formandos do projeto Semear impulsionado pelo BIPP – Soluções para a Deficiência sorriem ao ver-nos chegar. Outros continuam o trabalho de enxada na mão, a semear couves ou a ouvir os formadores. São jovens adultos com necessidades especiais divididos em duas turmas e integram o projeto desde o seu arranque, em outubro do ano passado. O programa, que inclui formação técnica em jardinagem e agricultura, visa ainda a capacitação social e pessoal com vista à posterior integração no mercado de trabalho.

Todos estes jovens, com idades entre os 19 e os 45 anos, estavam desempregados e inscritos no Instituto de Emprego e Formação Profissional. «Alguns são dependentes de subsídios e não estão devidamente integrados na sociedade», diz Joana Santiago, presidente da direção da instituição particular de solidariedade social. «O nosso objetivo é que deixem de ser subsidiodependentes para passarem a ser ativos e contribuintes.» Os dias que outrora eram passados em casa, no café ou em instituições foram substituídos por aulas teóricas em sala e formação prática em campo. «O projeto Semear vai dar-lhes mais autonomia e maior capacidade financeira porque muitos deles vivem em famílias socialmente desfavorecidas e são oriundos de contextos de abandono e institucionalização.» (...)

ACABAR COM OS MITOS que persistem acerca das pessoas com deficiência é outra das metas do Semear. Mudar as suas perspetivas de vida também. «Se não conseguirmos investir na capacitação pessoal e social destes jovens não iremos conseguir integrá-los», diz a presidente da direção. «Eles precisam de ser treinados na sua autonomia, aprender a viver em sociedade, saber usar o dinheiro, saber andar de transportes públicos, tomar conta de si próprios, gerir o seu próprio rendimento…»

Aos poucos cada um deles demonstra aquilo que sabe fazer melhor e quais as tarefas em que mais se destaca. «A deficiência intelectual esconde-se. Não se vê na cara. Estes jovens normalmente não são aceites na sociedade. Muita gente espera deles aquilo que eles não conseguem dar. Ainda persistem muitos tabus em relação à deficiência e às incapacidades mas estas pessoas são fantásticas a trabalhar quando são bem integradas», reforça Joana. É nesta diferenciação que se baseiam as escolhas profissionais mais tarde. Para isso contribuem os estágios em contexto de trabalho, como aconteceu recentemente numa empresa no setor agroalimentar, a ELS, onde os formandos do Semear tiveram a oportunidade de mostrar as suas capacidades profissionais. A experiência de uma semana foi bem recebida e alguns gostariam de a repetir.

É o caso de Miguel Ribeiro, 27 anos. Define-se como «rápido e eficaz» e gostaria de ter passado mais tempo na formação da empresa de Loures. «Gosto muito de semear e de trabalhos que puxem pelo físico.» Tal como o colega Diogo Oliveira (na foto), que gostaria de ser «jardineiro para sempre», como diz repetida e convictamente. Com 20 anos, e ao contrário de Miguel, não gosta muito de semear. Prefere «tirar pedras do caminho». No fundo, é isso que este projeto faz – afasta possíveis obstáculos do percurso de cada um destes jovens proporcionando uma nova vida. Diogo lembra-se de ter sido elogiado na formação no exterior, na empresa agroalimentar, por ser considerado «muito rápido a embalar». Ainda assim, também se cansa. E, na Tapada da Ajuda, sempre que precisa de descansar, escolhe sempre o mesmo local para relaxar as pernas e respirar fundo.

Os formandos têm direito a um intervalo a meio da manhã e outro a meio da tarde. Alguns aproveitam para lanchar, outros sobem a um pequeno bar onde bebem café e uns quantos aproveitam para falar um pouco das suas vidas. «Eu também gostava de ser gravado», diz Artur, enquanto se prepara para partilhar um pouco do seu dia-a-dia. Alexandre Pereira, 26 anos, elogia os formadores e a iniciativa, mas confessa que as aulas teóricas lhe custam um pouco. «Tomo medicação e se fico muito tempo em sala adormeço.» O sol deixa-o bem-disposto e o trabalho no campo também. «É um trabalho que me alegra.»

Duas vezes por semana «vendem» o que cultivam, a um preço simbólico, no edifício principal do Instituto Superior de Agronomia. «Vendemos os produtos para podermos angariar verbas para comprar ferramentas e material. Claro que a iniciativa não gera o dinheiro suficiente para o que necessitamos mas é interessante sensibilizar professores, colaboradores e pessoas de fora do ISA», diz Joana. Quando há excedente de produção, o Semear promove o escoamento para uma empresa parceira, a Frustock, e também a doação de alguns produtos ao Banco Alimentar.

Os formandos produzem consoante os módulos de formação que estão a ter. «Já cultivámos couve-coração-de-boi e neste ano estamos a produzir couve-lombarda, fava, cenoura, alface, alho, tomate, para consumo em fresco. Já tivemos melão, que foi um sucesso enorme, algumas ervas aromáticas (alecrim, tomilho, erva-príncipe, erva-cidreira) e também já semeámos ervilha apesar de ainda não ter dado nada», explica o formador agrícola Fernando Quintela. «Esta terra é nutritiva e ótima, as plantas dão-se lindamente, mas é também argilosa e pesada. Para trabalhar, é difícil, e se chove um pouco a terra agarra-se às botas e às ferramentas, o que dificulta muito o trabalho.»

Apesar das caraterísticas da terra, os jovens que integram o Semear veem nela a oportunidade de ter um futuro diferente. Não têm medo do trabalho duro do campo, não se negam a pôr as mãos na terra nem se importam de sujar as botas. E é com ansiedade que querem ver o resultado das culturas que semeiam. «Perguntam constantemente quando podem colher aquilo que plantaram», diz Fernando. No começo desta formação, levavam alguns produtos. «Chegar ao fim do dia, poder levar para casa os hortícolas e frutos que cultivaram era verdadeiramente entusiasmante. Vale mesmo a pena assistir à reação deles.»

«Os formandos preparam umas linhas de terra a que chamamos de “camalhões” porque fazem de cama às plantas e servem para drenar o excesso de água quando o solo é regado», explica Helena Santos, formadora do módulo das brassicáceas, recém-chegada ao projeto. As brassicáceas integram todas as plantas pertencentes ao género «brássica», como as couves, a rúcula, as mostardas-vermelhas, o nabo, a nabiça, entre outras.

«Recebemos as sementes e colocamo-las diretamente na terra, como no caso da rúcula.» Os formandos aprendem a preparar o solo, quais os cuidados a ter com as plantas, os compassos de plantação, as características das plantas, as utilidades das culturas, se são culturas de inverno ou de verão, como e quando deve ser feita a colheita, etc. Helena confessa que o maior desafio dos formadores é lidar com a heterogeneidade do grupo. «Temos de aprender a lidar com isso, quer individualmente quer na dinâmica do grupo. Todos os dias aprendemos um pouco.»

UMA VEZ POR SEMANA, os estudantes de Agronomia têm a oportunidade de trabalhar com os formandos do Semear. A hora de almoço é passada nesta atividade conjunta em que cada aluno é mentor, mas também acaba por aprender com aquilo que os jovens que integram o projeto do BIPP têm para partilhar. Acima de tudo, pretende acabar-se com os preconceitos existentes na sociedade relativamente a pessoas com necessidades especiais. Os estudantes do ISA têm também aqui uma oportunidade de aplicar na prática os seus conhecimentos. «Os meus alunos estão constantemente com as mãos na terra e não têm problemas em agarrar-se às enxadas, acabando por ser um exemplo para estes estudantes do ensino superior», diz Fernando Quintela. «É uma experiência nova para todos.» Tratam-se pelo nome, cumprimentam-se, fruto de uma enorme cumplicidade que, semana a semana, vai sendo aprofundada.

Francisca Viveiros tem 19 anos e é aluna do terceiro ano de Engenharia Agronómica do ISA. «No início estava um pouco assustada com a mentoria porque tinha receio de que estes jovens fossem de facto muito diferentes e que sentisse dificuldade em lidar com eles. Acabei por concluir que é muito fácil e que não se nota qualquer tipo de diferença.» Defende que a iniciativa deveria ser alargada a mais dias ou de forma mais ativa por parte dos mentores. «É uma experiência em que se ganha muito e não há nada a perder.» Enquanto potenciais futuros empregadores, estes jovens começam a ser sensibilizados para as capacidades das pessoas com deficiência.

E desengane-se quem pensa que os formandos ficam por aqui… Há quem vá mais além, como Carlos Alves, 45 anos, responsável pelo projeto de intervenção comunitária Pensar Verde numa zona carenciada de Lisboa, o Bairro da Liberdade, em Campolide. «É um local onde é difícil, mas não é impossível, sonhar», diz Carlos, que considera a formação Semear um desafio diário. «As pessoas não se definem pelo tipo de deficiência que têm, mas por aquilo que querem fazer. Esta formação pode abrir muitas portas. O conhecimento nunca é de mais. Há cada vez mais espaços verdes e qualquer junta de freguesia teria a ganhar ao ter pessoas como nós a trabalhar.» Não se deixa desanimar pelas dificuldades e gosta de «motivar os desmotivados». Transformar terreno baldio num espaço dedicado a hortas comunitárias comercializando produtos hortícolas é o objetivo do projeto.

JOANA SANTIAGO viu a sua vida dar uma volta completa com o nascimento, há 18 anos, de Francisco, o terceiro filho, que tem «uma deficiência sem diagnóstico, motora e intelectual». No ano passado deixou a profissão de enfermeira para se dedicar a tempo inteiro aos desafios que o BIPP lhe coloca diariamente. Criou o Banco de Informação Pais a Pais (BIPP) em 2005, em Cascais, mas só abriram portas em 2009. Além do Semear, o BIPP desenvolve outros projetos de inclusão para pessoas com deficiência. Sente-se «responsável por esta casa» e defende de forma acérrima a necessidade de criação de soluções para estes jovens.

«Não concebo que um jovem chegue à idade adulta e fique fechado numa instituição o resto da vida. Não se arrumam as pessoas assim.» Critica a falta de união e sinergia entre as várias instituições em Portugal. «Podemos fazer coisas juntos. É isto que falta no nosso país: a sinergia institucional enquanto objeto de mudança.» A vida obrigou-a a adaptar-se e motivou-a a lutar pela igualdade de oportunidades na diferença. Não só pelo Francisco, mas também para todos os jovens como ele. Que podem ser felizes e ter uma vida dita normal.

EMPREGAR JOVENS COM DEFICIÊNCIA
O que distingue o Semear de outros projetos que trabalhem com pessoas com deficiência é a perspetiva de empregabilidade. «Estas pessoas tinham duas opções: serem institucionalizadas ou ficarem à mercê do que a sociedade tem para lhes oferecer», diz Catarina Bento, técnica de reabilitação psicomotora do Semear. O setor primário é dos que mais se adequam às capacidades de trabalho de jovens com deficiência intelectual. «Cerca de um terço da turma tem uma vida autónoma, mas não é completamente funcional, daí que seja estabelecida uma rede de suporte para que os jovens continuem integrados no mercado de trabalho.» Caso as tarefas não correspondam ao que mais gostam de fazer, não se insiste. «Temos de procurar atividades em que se sintam motivados, pelo que iremos encaminhá-los para empresas adaptadas ao seu perfil. Não nos interessa ter jovens a andar de formação em formação. Escolhemos jovens devidamente maduros para integrar ativamente o mercado de trabalho e com aptidão para esta atividade», acrescenta Joana Santiago, presidente da direção do BIPP – Soluções para a Deficiência, a instituição particular de solidariedade social que fundou em 2005. (...)

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