Quando o toque de entrada interrompe o bulício próprio de uma escola com 1500 alunos, as portas das salas de aula funcionam como uma espécie de funil para onde escorre a multidão, que em segundos deixa o corredor vazio. Numa dessas salas da secundária Avelar Brotero, em Coimbra, entram apenas cinco adolescentes. O resto da sua turma, do 11.º ano do curso profissional de Multimédia, estará a aprender estatística ou trigonometria. Estes sentam-se, abrem os dossiers e copiam, do quadro, o sumário. Vão corrigir a ficha de avaliação de Matemática e a professora, Ana Janela, aproveita para fazer revisões: “1+1? 2+1? 3+1?”
Para Manuel, Miguel e Áurea, o resultado não é óbvio. Não teriam dificuldades se estivessem a contar maçãs, lápis, pedras – qualquer coisa que pudessem ver e tocar. E é por isso mesmo que a professora insiste: “Manel, 4+1?” Para estes jovens que têm 18, 17 e 16 anos, respetivamente, explorar a capacidade de abstração representa “um esforço imenso, mas necessário”, explica Paula Baião Constantino, a coordenadora da Educação Especial na escola. “Eles só serão capazes se as pessoas, à volta, acreditarem que são capazes”, diz.
Tal como Luís, de 18 anos, e Ana, de 17, Manuel, Miguel e Áurea fazem parte das crianças e jovens com necessidades educativas especiais (NEE) que frequentam as escolas portuguesas – 75.032, em 2013/2014. Mas integram um grupo particular: o daqueles que, devido a défices cognitivos mais ou menos severos, associados ou não a outras doenças, têm, desde o ensino básico, um Currículo Específico Individual (CEI), a medida mais restritiva do universo das que são aplicadas aos alunos com NEE. Há menos de uma década seriam conhecidos como deficientes mentais e estariam confinados às escolas de ensino especial. Hoje estão no ensino regular: são 13.037 e 2158 estão no secundário.
“Então? 4+1?” É Miguel que responde: “Cinco”. Como Manuel, Miguel tem Trissomia 21. Sabe ler, escrever, comunica com a mãe por SMS, utiliza o chat do Facebook, tem aulas de música e joga basquetebol fora da escola. Fez parte dos primeiros grupos de crianças a beneficiar da legislação de 2008 que esvaziou as escolas de ensino especial e abriu as portas do ensino básico a crianças com NEE até aos 15 anos ou ao 9.º ano de escolaridade. Mais tarde, há três anos, apanhou o alargamento da escolaridade obrigatória para o 12.º ano ou 18 de idade.
Transição sem recursos
Nenhuma das transições foi fácil. No ensino básico, os alunos com CEI acompanham a turma do 5.º ano para o 6.º, deste para o 7.º e assim sucessivamente, mas não partilham necessariamente com ela a sala de aula, não fazem testes ou exames e também não têm direito a diploma. Podem estar com a turma em várias disciplinas, em apenas duas, uma ou em nenhuma – depende do que é definido como adequado a cada um deles.
Enquanto aos colegas é pedido que aprendam gramática e façam equações, a estas crianças podem ser colocadas metas aparentemente tão simples como escrever o próprio nome, apanhar o autocarro certo para chegar à escola ou saber determinar a quantidade de leite necessária para fazer uma mousse de chocolate.
Alguns, não serão capazes de cumprir qualquer uma destas tarefas, outros conseguem fazer muito mais. Nem a todos são dadas as condições desejáveis, como denunciou há pouco mais de um ano o Conselho Nacional de Educação (CNE). “A atitude voluntarista do legislador não encontra respaldo na capacidade de mobilização equitativa de recursos”, pode ler-se no relatório daquele órgão consultivo do Governo, publicado em julho de 2014.
Dois anos antes, já investigadores de Educação Especial e dirigentes de associações de pais e de professores e investigadores tinham alertado para os problemas que surgiriam daí a meses, quando os alunos com défice cognitivo chegassem às escolas do ensino secundário.
Escolas “tiveram de reagir”
Nessa altura, aquela que à época era própria diretora de serviços de Educação Especial do Ministério da Educação e Ciência, Filomena Pereira, admitiu que as escolas pudessem “não estar preparadas". “Mas quando um pai e uma mãe têm um filho deficiente, também não estão e reagem”, comparou (...).
“Tiveram de reagir. Que remédio…. Só que umas reagiram melhor e outras pior, sempre de acordo com as circunstâncias de cada uma e segundo a sensibilidade dos professores e das direções – não há garantias de equidade”, comenta, hoje, João Adelino Santos, professor de Educação Especial e diretor do Agrupamento de Escolas de Vila Nova de Paiva, que há anos vem acompanhando e tomando posições sobre o processo no seu blogue, o Incluso.
A primeira portaria a definir o modelo de integração de alunos com CEI no secundário, publicada já os estudantes estavam na escola, foi contestada por pais, por professores e pelo próprio CNE, antes de ser revogada, este ano. Quer João Adelino Santos quer Paula Baião Constantino afirmam que ela era “tão absurda, que nunca foi aplicada”. Era prescritiva em relação ao que os jovens tinham de aprender e definia que eles só deveriam passar cinco horas por semana na escola – “Era uma espécie de regresso ao ensino especial dos jovens com défice cognitivo”, resumem.
Depois de vários debates na Assembleia da República e de recomendações dos próprios partidos que sustentavam o Governo, o PSD e o CDS/PP, o controlo do processo foi entregue às escolas do secundário, que passaram a ser responsáveis pelo desenho dos CEI e pela organização dos Planos Individuais de Transição (PIT) para a vida pós-escolar dos alunos, que implicam algum contacto com o meio profissional.
Inclusão, numa sala à parte
“Em cada escola se faz o melhor que a direção e professores sabem”, acredita João Adelino Santos. O que isso significa, não sabe. Por exemplo: será que em alguma os jovens estão com as turmas de referência noutra aula que não a de Educação Física? “Os professores nem têm formação para lidar com estas crianças nem meios para o fazer. Com turmas de quase 30 alunos (porque a legislação não prevê a redução do número de estudantes, nestes casos) não conseguem atender à heterogeneidade dos restantes, quanto mais destes…”, comenta Paula Constantino.
Ana Janela é professora de Educação Especial e abriu a manhã com uma aula de Português. Ana, Áurea, Luís, Manuel e Miguel começaram por contar o que fizeram no fim de semana, uma atividade que ocupa a maior parte da aula. Nem para todos é fácil perceber que o fim de semana tem dois dias, o sábado e o domingo, e que cada um se pode dividir em manhã, tarde e noite. Têm de se concentrar, para recordar e situar no espaço e no tempo o que fizeram.
Enquanto os colegas da turma estudam o Sermão de Santo António aos Peixes e se preparam para ler Os Maias, os cinco adolescentes observam Ana Janela, que desenha no quadro uma tabela com duas colunas, uma para cada dia, divididas, na horizontal, em três blocos, correspondentes à manhã, tarde e noite. Interrogando pacientemente cada aluno vai preenchendo os quadrados, ao mesmo tempo que aproveita qualquer pretexto para estender a conversa à turma. Se o Miguel foi apanhar azeitonas, Ana Janela quer saber quem conhece o nome da árvore.
A professora aproveita a conversa, também, para ensinar regras que depois lhes há de mostrar sistematizadas, num PowerPoint: “comunicamos com palavras e com o corpo; devemos estar atentos quando o outro fala; olhá-lo nos olhos, não o interromper, guardar algum espaço, não lhe tocar”, explica, pouco antes de o som da campainha soar para a saída e Miguel a abraçar.
“E se fosse 13+6?”
Mesmo dentro da pequenina turma, cada um dos alunos é muito diferente dos outros. Por exemplo, Ana e Luís fizeram uma ficha de avaliação de Matemática “ajustada às suas competências”. Para eles, a correção está no lado esquerdo do quadro branco: “9+4=13; 13+4=17; 19+4=21”. “E se fosse 13+6?”, pergunta a professora. Luís, que entre outros problemas tem hiperatividade, está impaciente e diz de imediato que não sabe. Ana conta seis dedos, despachada: “14, 15, 16, 17, 18, 19. Dezanove!”
Ana é chamada muitas vezes a ajudar a professora. E também ajuda quando não é chamada a fazê-lo – levanta-se sem aviso e vai ver se um colega deu erros ortográficos. Luís faz o mesmo, mas só em relação a Áurea. É um rapaz alto e forte, que se apressa a responder sempre que ela hesita e que lhe rouba o dossier para o abrir na página certa quando Áurea ainda o está a folhear. Começaram a namorar há seis meses e não há conselhos de pais e professores capazes de convencer o rapaz de que a hiperproteção em relação à menina de traços delicados e sorriso doce lhe está a fazer mais mal do que bem.
“Deixa a Áurea responder, Luís! Dá-lhe espaço! Deixa-a crescer!”, pedem os professores. “Gosto tanto dela! Estou sempre a pensar nela, a querer falar com ela, a querer estar com ela”, comenta, no recreio, Luís, de sorriso rasgado, o braço sobre os ombros de Áurea, que se aninha naquele abraço. Ela tapa o sorriso com a mão, envergonhada. Luís enche-a de beijos alegres: “Merece tudo”.
Autónomos, como os outros
Não andam atrás uns dos outros. No intervalo dirigem-se todos para a cantina, mas separados. Mal saem da sala, ou estão abraçados, como Áurea e Luís, ou cada um deles é engolido pela multidão de colegas que voltam a encher o corredor quando a campainha toca. Ninguém se aflige: já conhecem todos os cantos da escola enorme e são autónomos – sabem carregar com dinheiro os cartões que usam para adquirir material escolar ou as refeições, vão para a fila, transportam os tabuleiros até às mesas e sentam-se onde querem.
É assim que se forma um dos grupos. A uma das mesas Áurea, Luís e Ana encontram-se com Ana Filipa e João, alunos do 12.º ano que também têm currículo específico individual.
Luís, que faz as apresentações, revela, com um risinho, que Ana e João são namorados. “Uma história complicada”, diz João, depois de se fingir zangado com a inconfidência. Trata Ana por “amor” e daí a algumas horas há de fazê-la chorar, quando, num convívio de outono, aceitar cantar “O meu Verão não acabou”, de FF. Namoraram, acabaram, e recomeçaram precisamente no verão: “Então, amor!?”, dirá João, a rir, contente por Ana se ter emocionado.
Ao almoço, João, de 20 anos, diz gostava de ser cantor. Ou professor. Para já, vai fazer um dos cursos profissionais para pessoas com deficiência e incapacidades, disponíveis numa das instituições da cidade, para ficar com o diploma do 9.º ano e uma certidão profissional. “Depois, quem sabe? Ainda sou novo. Tenho tempo”.
Paula Constantino aponta João como exemplo de um dos alunos com CEI que poderiam ter tido uma vida diferente. Vasco, que está no 10.º ano, é outro que “tem muitas capacidades”: “Não sei se no ensino básico se explorou ao limite a possibilidade de eles se manterem no ensino regular, num curso de Educação e Formação, por exemplo”.
Agora não há nada a fazer. Não podem frequentar um curso profissional ou, sequer, vocacional, no ensino regular, porque antes não tiveram um currículo normal. Eles não se importam: “Estou bem assim”, diz João.
Sem perdão
Já almoçaram, a cantina foi-se esvaziando da primeira leva de alunos. Eles ficam para trás, a conversar: no básico, nem um gostava de estar com a turma de referência; Ana diz que os colegas lhe chamavam "estúpida", de Luís diziam que era "burro"; João despacha o assunto, não lhe apetece falar disso, mas adianta que resolveu "problemas parecidos” à sua maneira. Ana diz que se encolhia. Conta que alguns dos antigos colegas já tentaram contactá-la através do Facebook, mas ela não lhes perdoa: “Nunca”.
Agora, a questão não se põe. Tanto, pelo menos. Ana Filipa diz que já lhe aconteceu ir sentar-se na mesa dos colegas de turma, só porque não havia outro lugar, e dizerem-lhe “aqui não” ou “está ocupado”. Luís, Ana e João não têm motivos de queixa nem de satisfação – só estão com eles a Educação Física e uma ou outra vez, quando há festas. Parecem ignorar-se mutuamente, como hão-de fazer daqui a meia hora, quando se encontrarem para um magusto.
Os quatro dão-se bem com os restantes alunos com CEI e todos parecem ser, realmente, amigos. Mostram-se alegres. Apoiam-se nas aulas e nos balneários, conversam nos intervalos, trocam mensagens de telemóvel ou de Facebook ao fim de semana, às vezes encontram-se fora da escola.
Dizem que são “mais felizes agora”, no secundário. “O ensino é mais exigente, mas os professores já não andam tanto em cima de nós; somos responsabilizados, mas também somos mais livres, estamos à vontade”, explica Vasco, que está no 10.º ano.
Antes do magusto, os alunos com CEI representam, para os colegas da turma de Multimédia, uma curtíssima peça sobre a lenda de São Martinho. Ensaiaram na aula de Português, mas não correu bem e estão ansiosos. Com as folhas de papel a tremer-lhes nas mãos lêem as frases que não conseguiram decorar, mesmo que que elas se resumam a duas palavras: “Tenho frio”.
Durante a peça nunca se faz silêncio – muitos dos colegas que assistem brincam, conversam entre si e riem baixinho de outras coisas. Os atores parecem não dar por isso. Quando a peça acaba, sorriem, aliviados. Vão ao centro da sala de atividades e fazem vénias para os aplausos. Não tarda, voltarão a encontrar-se com o resto da turma, para a aula de Educação Física.
Preparar a integração é discriminar?
A aula, no campo de jogos exterior da escola, decorre forma tensa e confusa. Os 22 alunos da turma de referência obrigam à vigilância permanente da professora. Apesar de esta se mostrar firme e severa, muitos desobedecem, riem nas suas costas, falam enquanto ela dá indicações.
É o único momento do dia em que é percetível o desconforto dos cinco alunos com CEI. Juntam-se num extremo do campo de jogos. E, apesar do vaivém da professora e da atenção constante de uma auxiliar de ação educativa, Ana Ladeiro, não sossegam..
Miguel quer praticar ténis sozinho, Manuel chora porque quer uma bola grande, Luís só quer jogar com Áurea e Ana interrompe várias vezes o que está a fazer, por se sentir indisposta. Durante alguns momentos, ao longo da aula, um ou outro faz o mesmo que o resto da turma, mas nunca todos ao mesmo tempo e nunca com os outros colegas.
A professora, Cristina Ferreira, mostra-se cansada e desanimada. “Sou a favor da inclusão, mas isto não é inclusão. Tínhamos de ser, pelo menos, dois professores, e deviam escolher a dedo a turma em que integram estes alunos e prepará-la, de alguma forma. Esta, com jovens com comportamentos desajustados e que não são solidários, não é adequada”, comenta.
Paula Constantino não pensa da mesma maneira. “Chegar a uma turma e dizer: “Vão ter colegas especiais, tratem-nos de forma especial”, não é, à partida, estar a promover a discriminação?”
Antes de tocar para a saída, todos regressam ao balneário. Miguel e Manuel são os primeiros a reaparecer e a aproximar-se de Ana Ladeiro, que espera por ambos, para os acompanhar ao portão da escola. Já não há sinais de lágrimas ou de nervosismo. Vêm sorridentes. Miguel – tal como fez com as professoras de Educação Especial – cumprimenta-a, mais uma vez, com um abraço: "Gosto de ti".
Fonte: Público
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