No fim de mais uma sessão de equitação terapêutica, Rodrigo entrega uma cenoura a Cookie e esta devora-a em tempo recorde. É um momento rápido, difícil de captar em vídeo ou fotografia, mas cheio de importância. Faz parte da terapia e reforça a relação de amizade entre o menino de 6 anos com paralisia cerebral e o pónei castanho de aspeto dócil. Cookie é um dos dez póneis da família do Pony Club do Porto, associação solidária que se dedica a equitação desportiva, terapêutica e adaptada, voltada para crianças e adultos com deficiência.
Pousado no chão da zona de escovagem dos animais está um balde repleto de cenouras. Já percebemos que são a guloseima favorita dos póneis e dos cavalos, que também adoram o momento da lavagem e da aparelhagem. As crianças chegam pela mão dos pais e dos avós, a chamar os póneis pelos nomes: Gordito, Cookie, Tião. Vão buscá-los às cavalariças e esmeram-se nas festinhas, ajudadas pelos monitores. Este processo de preparação demora perto de 15 minutos e é um momento integrante das sessões, a decorrer no picadeiro coberto do outro lado do centro hípico doSport Club do Porto, em Paranhos, onde o Pony Club se localiza. Meninos e meninas de idades variáveis vestem pólos azuis com o logótipo do clube e percorrem o caminho de terra batida de forma pausada, sorriso no rosto. [Vê a galeria]
“O leque das dificuldades das crianças é muito variado, desde autismo até trissomia 21 e paralisia cerebral, passando por meninos com défices de atenção ou hiperativos”, vai explicando João Magalhães, diretor técnico. A intervenção dos póneis e da equipa técnica é condicionada pelo avanço que se quer ter com o utente, nas áreas social e física. “O próprio andamento do cavalo simula o andamento de uma pessoa”, refere, enquanto ouvimos os cascos a bater na terra, som presente em todos os momentos da visita, nas vésperas do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência. “Imagine uma pessoa que não sente as pernas”, propõe. “O cavalo faz a simulação do andar e está provado que a musculatura do tronco, não habituada a senti-lo, passa a funcionar.” O Rodrigo, que chega acompanhado da avó, Fátima Almeida, não conseguia segurar objetos, deixava-os cair assim que lhes pegava. Agora, um ano e meio depois de ter iniciado a equitação terapêutica, “já consegue dar a volta ao picadeiro montado na Cookie e com as argolas coloridas na mão”, orgulha-se a avó.
Também a autoestima é trabalhada em cima do cavalo. Ana Vasconcelos, fisioterapeuta, destaca o facto de crianças e adultos “conseguirem fazer coisas que achavam que nunca iriam ser capazes de fazer”. Conduzir o cavalo, fazer o trote (mais rápido e exigente em termos corporais), parar. “É gratificante ver que evoluem não só a nível da fisioterapia ou cognitivo mas também da própria formação pessoal, tão importante numa fase mais adulta”, diz Ana, 23 anos e um “gosto imenso” por cavalos e pelo potencial de entreajuda entre estes e as crianças. Enquanto fala connosco não deixa de dar atenção ao Gordito, um pónei de 19 anos que, por ser grande, parece um cavalo. “O Gordito ajuda-nos imenso porque é grande mas é um doce, (…) não apresenta riscos para as nossas crianças”, garante. Acompanha meninos com 12 ou 13 anos — o limite comum em termos de idade e de peso — e também pessoas mais velhas, com necessidades especiais.
Mudar hábitos com os póneis
Fátima Pinto está à frente do Pony Club do Porto desde o arranque, em maio de 2013. O pai — José Ferreira Pinto — é o presidente da associação, cujos mecenas “são um grupo de empresas ligadas ao setor do calçado”. Como Fátima não tinha experiência na área da equitação, rodeou-se de uma equipa especializada. Em dois anos e meio, ultrapassou a marca dos 180 utentes. A maioria são crianças, que se dividem pela equitação desportiva e pela terapêutica, e que chegam também através de instituições da cidade com as quais foram assinados protocolos. Crianças e adultos com necessidades especiais montam os póneis e os cavalos do clube e, a partir de 2016, vão poder contar com sessões terapêuticas de fisioterapia.
“Decisivo [para o sucesso do projeto] foi termos este espaço”, assegura João Magalhães. “Primeiro porque é bonito, segundo porque é funcional e terceiro porque tem excelentes condições.” O Pátio Huguenot, da autoria de Tiago Reis de Oliveira, já existia antes da criação do Pony Club: nasceu com o pedido de um cliente particular do Sport Clube do Porto. “A ideia foi criar um espaço que refletisse a imagem portentosa do cavalo”, conta o arquiteto, em visita guiada pelo pátio. “A madeira era importante porque se pretendia que a grande percentagem deste pavilhão pudesse ser desmontado e levado para outro sítio”, explica. Já a escolha do betão aparente prendeu-se “com uma imagem mais funcional do ponto de vista da manutenção (…) e também trouxe alguma força ao pátio”. Em outubro, o projeto do jovem arquiteto natural de São João da Madeira venceu o Prémio Internacional de Arquitectura de Baku, no Azerbaijão, na categoria de edifícios públicos.
Além das cavalariças, voltadas para o picadeiro do Sport Club do Porto, existe ainda uma sala que recebe festas de aniversário e “campos de férias inclusivos”, abertos a sócios e não sócios do clube. Lado a lado com as bancadas, que acolhem os espetadores das provas do centro hípico, existe o outro picadeiro, coberto. Construído de raiz para o Pony Club, está adaptado para pessoas com necessidades especiais, com uma rampa que permite a subida de cadeiras de rodas e facilita a mobilidade na hora de montar. É lá que encontramos Diana Pinto, psicóloga de 32 anos especializada em técnicas de saúde em equitação terapêutica. Monta a cavalo desde criança e, tendo isso em mente, decidiu aliar a psicologia ao desporto que sempre a apaixonou. Tem, “felizmente”, muitos casos de sucesso para contar, no intervalo das várias sessões que tem por dia.
“Há meninos que mudam os hábitos alimentares, introduzindo a cenoura e outros legumes depois de começarem a montar”, aponta Diana. O “amigo Gordito” e a “amiga Cookie”, como são tratados pelas crianças, têm uma dedicação invejável, comparável apenas à dos técnicos e monitores que dão volta ao picadeiro dezenas de vezes por dia. Falam muito com as crianças, fazem perguntas e incentivam, aplaudem quando uma argola é colocada no sítio certo. O próprio “barulhinho de pôr o cavalo a andar” ajuda à interacção. “Com a terapia, estes meninos revelam-se uma caixinha de surpresas”, resume Diana.
Para Liliana Marques, foi precisamente isso que se verificou com o filho. Cláudio tem 10 anos e paralisia cerebral. Frequenta as aulas do Pony Club há perto de três meses e a evolução admirou a mãe. “Pensei que a abordagem ia ser difícil, mas afinal foi muito fácil porque o Cláudio depressa se interessou pelo pónei. Não teve medo”, comenta. Mal monta, a postura da criança muda, tal como a concentração. Para Liliana, esta é “uma terapia de sonho” que compensa a deslocação de Vila Nova de Gaia até ao Porto, possível devido a um protocolo com o Centro de Paralisia da cidade. “O meu próximo sonho é que ele ganhe gosto pela equitação e, mais tarde, seja um ‘hobby’, além de uma terapia.”
No Pony Club do Porto, o dia chega ao fim pelas 20 horas, depois de muitas aulas e muitos passeios. O picadeiro coberto esvazia-se e os póneis fazem o caminho inverso, de regresso às cavalariças e às cenouras que os esperam. As crianças despedem-se, os pais esperam e os técnicos e monitores arrumam as selas e outros aparelhos dos cavalos nas prateleiras que lhes correspondem, com direito a etiqueta personalizada. A psicóloga vai repetindo, enquanto passa a escova no pêlo de Cookie: “Estes póneis são muito boas pessoas.”
Fonte: Público
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