Crianças hiperativas ou mais mexidas do que antes? Sociedade mais atenta ou menos tolerante ao movimento? As dúvidas de medicar. A hiperatividade parece estar na moda, envolta em muita controvérsia.
Aos três meses Pedro já rebolava. E, por força disso, “teve de ser criado no chão”. Aos seis começou a gatinhar e aos 11 não andava, corria. Na horizontal e na vertical. Trepava tudo o que podia e não devia. “Nesse momento acabou o ‘sossego'”, conta a mãe, Patrícia. Seguiram-se as quedas, as nódoas negras e os dedos trilhados. Só acalmava quando estava a dormir. O problema é que dormia pouco: 30 minutos antes e depois de comer, que passaram a uma hora por dia e três por noite aos dois anos de idade. Mais do que isso só viria a dormir mais tarde, graças à medicação.
Com ano e meio Pedro foi encaminhado para a consulta de psicologia, aos quatro tomava Risperidona — um antipsicótico para lhe travar os impulsos, também usado, por exemplo, no tratamento da esquizofrenia — e era seguido uma vez por mês no pedopsiquiatra. Mas o verdadeiro diagnóstico só chegou aos sete anos: perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA).
Miguel começou a dar sinal de “bichos-carpinteiros” ainda mais cedo, logo às 16 semanas de gravidez. Quando nasceu foi-lhe diagnosticada uma perturbação grave do sono que o deixava dormir apenas por períodos de meia hora, com intervalos de cinco horas. Aos nove meses já arrastava bancos e subia para cima deles, abria o frigorífico e “ratava o queijo todo que encontrasse”. E aos 14 meses tomava Atarax, um ansiolítico para dormir, que a mãe Ana lhe retirou ainda antes dos dois anos porque “não ajudou nada”. Com seis anos recebeu o diagnóstico de PHDA.
Pedro e Miguel são apenas duas dos milhares de crianças que, nos últimos anos, foram diagnosticadas com perturbação de hiperatividade e défice de atenção. Um número que não para de crescer, em Portugal e um pouco por todo o mundo, ao ponto de ser considerada uma das perturbações do neurodesenvolvimento mais frequentes nas crianças.
Não há estudos de prevalência que permitam saber, em detalhe, quantas crianças têm esta perturbação em Portugal, mas as várias estimativas apontam para percentagens entre os 3% e os 7%, em linha com os números citados a nível mundial, na ordem dos 5%. Embora haja países com uma prevalência estimada bem superior, como é o caso da Holanda, ou dos Estados Unidos onde, em 2011, segundo o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, 11% das crianças entre os 4 e os 17 anos estavam diagnosticadas com PHDA.
Há hoje mais crianças hiperativas?
Há quem fale em “moda” e a verdade é que cada vez mais se ouve falar em hiperatividade. Desde logo nas escolas, onde se multiplicam os relatos de professores que dão conta de um número crescente de meninos medicados no 1.º ciclo. Mas o que explica que haja cada vez mais crianças “hiperativas”?
“O que acontece é que há um maior conhecimento e uma maior sensibilidade por parte dos médicos para este problema. Crianças que antes eram só rotuladas como mal-educadas, ou menos inteligentes, hoje em dia percebe-se que, entre outros problemas, podem ter critérios de diagnóstico de PHDA”, arrisca Filipe Silva, pediatra do desenvolvimento na unidade de neurodesenvolvimento do Hospital CUF Descobertas, em Lisboa, acrescentando que “o que tem acontecido nos cuidados de saúde infantis, em geral, é que como a mortalidade foi controlada sobrou mais disponibilidade para estarmos atentos a estas questões do comportamento. Há uns 10 anos havia outros problemas prioritários ao nível físico”.
Uma justificação partilhada pelo pediatra Gomes Pedro. “Quando estive na faculdade ninguém me ensinou sobre comportamento, perturbações de atenção e de sono. As doenças do foro emocional e social ficavam muitas vezes por diagnosticar, porque a orientação clínica era mais morfológica e menos neurológica.”
Mas se é verdade que os médicos estão mais atentos, não é menos verdade que estes problemas saltam hoje mais à vista. “Descemos a idade de entrada na escola e a exigência no 1.º ano é muito superior à que tinha no meu tempo. Está-se a exigir mais do que aquilo que uma criança daquela idade pode dar. Além disso, antes tínhamos regras muito mais rígidas em casa e na escola. As reguadas punham os miúdos quietos. E estes miúdos, que têm PHDA, precisam de regras bem definidas. Eles são caóticos e se houver regras ajuda-os bastante”, defende o neuropediatra de Coimbra, Luís Borges.
Já o pedopsiquiatra Augusto Carreira argumenta que há cada vez menos crianças com um padrão de vinculação seguro (figura da mãe) pois vão muito cedo para os infantários e isso, afirma, “aumenta a probabilidade de virem a ser hiperativas”. Há ainda outros fatores ambientais que podem contribuir para o aumento de crianças com PHDA como estas serem postas em contacto com estímulos visuais e sonoros desde muito cedo e estarem cada vez mais “confinadas a atividades programadas, com grande repressão de movimentos”.
“Se a criança não tem, desde muito cedo, a experiência de poder expandir-se com alguma liberdade, vai ter muito mais dificuldades em harmonizar o seu movimento. Além disso, há crianças que ficam relativamente hiperativas para contrariar esta tentativa de repressão do movimento e isto pode confundir os diagnósticos”, defende o diretor do serviço de pedopsiquiatria do Hospital D. Estefânia, que não tem dúvidas em afirmar que “as crianças estão mais agitadas neste momento do que há 30 anos”.
A somar a tudo isto acresce o facto de a escolaridade obrigatória ter vindo a subir, estando agora no 12.º ano, o que faz com que as crianças e jovens com mais dificuldades, por este ou outros motivos, sejam mais notados. Antigamente a solução era abandonarem a escola porque “não davam para os estudos” e assim “resolvia-se” o problema. Por este motivo, muitos especialistas costumam dizer que se não houvesse escola não havia tantos diagnósticos de PHDA. É porque é precisamente em situações que exigem mais atenção e concentração, que estas crianças sentem mais dificuldades e revelam mais diferenças em relação aos outros meninos da mesma idade.
Acontece que as mudanças não se ficam por aqui. A sociedade também mudou e “está menos tolerante para o movimento, o que faz com que qualquer ‘excesso’ ou variante disto seja logo interpretada como uma perturbação de hiperatividade com défice de atenção”, acrescenta o pedopsiquiatra Augusto Carreira.
Além do mais, a inexistência de marcadores que permitam diagnosticar esta perturbação do neurodesenvolvimento torna tudo muito “subjetivo”, admitem os especialistas, uma vez que o diagnóstico é feito sobretudo com base na observação da criança e em inquéritos feitos aos pais e aos professores.
“Depende sempre muito do observador. Tenho tido experiências de crianças que me chegam com diagnóstico de PHDA, mudam de professor e o novo, que é muito mais tolerante, deixa de valorizar a irrequietude como sendo um sintoma importante. Também há pais que, se uma criança mexe uma perna, eles já estão a dizer ‘Está quieto!’ e há outros em que ela pula e brinca e não dizem nada e acham normal”, exemplifica Augusto Carreira.
Filipe Silva diz que só há uma forma de reduzir esse risco da subjetividade: “cruzando informações” dos pais e dos professores, ou seja, dos diferentes contextos e “não só as atuais como as passadas”. “Se houver uma PHDA tem de haver uma série de queixas para trás.” Conta também a observação da criança em consulta, com o problema de, muitas vezes, estas consultas serem muito rápidas ou não serem com o especialista indicado. Na dúvida, “não se deve fazer o diagnóstico ou propõe-se uma reavaliação para daí a três ou seis meses”, aconselha Filipe Silva.
Sobrediagnóstico ou subdiagnóstico?
Apesar de todos estes constrangimentos, os médicos ouvidos pelo Observador, na sua esmagadora maioria, preferem falar em subdiagnóstico, sobretudo no caso das crianças que têm PHDA do subtipo desatento, ou seja, aquelas que são muito desatentas, mas que não manifestam sintomas de hiperatividade e, por isso, dão menos nas vistas, porque não incomodam. Embora admitam que possa haver avaliações mal feitas, que resultam, em alguns casos, em sobrediagnóstico.
“Efetivamente não acho que haja mais crianças diagnosticadas do que aquelas que têm o problema. Acho que continua a haver diagnósticos que não são bem feitos. Já tive experiência de alguns miúdos que não tinham esse problema, mas tinham outro, normalmente do espetro autista. E, ao mesmo tempo, há muitos diagnósticos que continuam por fazer”, afirma Ana Rodrigues, docente do departamento de ciências da educação sociais e humanidades da Faculdade de Motricidade Humana e com formação específica em PHDA, por Harvard.
“Há crianças que efetivamente terão PHDA, mas muitas estão mal diagnosticadas por causa desta necessidade que muitos pais e professores têm de que as crianças fiquem quietas”, denuncia Augusto Carreira. E não está sozinho nesta avaliação. O neuropediatra Luís Borges aproveita o momento para gracejar: “Parece que toda a gente queria ser médico. Eu recebo mais diagnósticos de PHDA do que aqueles que faço”.
Aliás, o último relatório Saúde Mental em Números, da DGS, deixou um alerta para esta questão: “Vamos sabendo da facilidade com que em Portugal muitos profissionais, licenciados ou não em medicina, sugerem ou mesmo ‘diagnosticam’ ‘hiperatividade infantil'”.
Foi, provavelmente, essa “facilidade” que fez com que a filha de Rafaela, Beatriz, estivesse a tomar metilfenidato durante um certo período, sem sequer ter PHDA. “No final do segundo ano deram-me uma carta na escola para eu ir ao médico porque ela não tinha adquirido conhecimentos e estava muito aquém dos outros meninos, dando-me a entender que seria autismo. Fui a uma psicóloga e saí de lá com o diagnóstico de PHDA. Com esse relatório fui ao pedopsiquiatra que o confirmou e me receitou logo Ritalina. Tomou durante um ano letivo e meio e nada mudou em temos de aquisição de conhecimentos. Mais tarde decidi ir a outra pedopsiquiatra que me disse que era impossível ser PHDA. Agora penso que poderia ter feito as coisas de outra forma, mas eu fiz o 12.º ano e mal e não estudei para médica. Fui a vários profissionais de saúde e eles é que erraram.”
O pediatra Gomes Pedro não tem dúvidas que deveria caber unicamente aos pediatras o diagnóstico desta perturbação, pois são os médicos que conhecem as crianças desde bebés, assim como o seu percurso. O problema, diz, é que há muitos profissionais a reclamarem para si o direito do diagnóstico. Inclusive os professores.
Mas do lado dos docentes também se ouvem queixas. “Nem sempre nos são pedidas informações a propósito das crianças. Devia haver um trabalho colaborativo e muitas vezes não acontece”, critica Carla Ferreira, professora de educação especial do Agrupamento Escolar Serpa Pinto, em Cinfães, afirmando que “cada vez mais nos chegam à escola relatórios médicos e temos cada vez mais crianças medicadas para o efeito”.
Medicar ou não medicar, eis a questão
E a verdade é essa. Há cada vez mais crianças a serem medicadas um pouco por todo o mundo com psicofármacos. Em 2014, foram vendidas, em Portugal, mais de 270 mil embalagens de metilfenidato (o psicoestimulante que aumenta os níveis de dopamina, melhorando as funções executivas do cérebro), de acordo com o Infarmed, um número que tem vindo a crescer consistentemente desde que este fármaco começou a ser comparticipado pelo Serviço Nacional de Saúde (em 2003). E se este indicador pode sofrer alguma influência da crise financeira — porque as pessoas para não gastarem tanto dinheiro de uma só vez podem optar por ir comprando embalagens mais pequenas, e por sua vez mais baratas, o que resulta no final do ano em mais embalagens vendidas — isso já não acontece no indicador das doses diárias definidas (DDD) e também esse revela um aumento continuado do consumo ao longo da última década, tendo atingido, em 2014, cerca de 13,4 DDD por 1.000 habitantes por dia, conforme dados publicados, este ano, pelo Infarmed. O relatório Saúde Mental em Números 2014 fala em “fúria farmacoterapêutica”.
“Antes davam-se reguadas, depois a estratégia era mandar os alunos para a rua e agora medicam-se as crianças. Para alguns isso é uma evolução, porque as crianças já não vão para a rua, nem são batidas. Para outros esta ainda não é a resposta adequada”, relata Augusto Carreira, diretor de pedopsiquiatria do Hospital D. Estefânia, acrescentando que, “muitas vezes, há a tentação de medicar os miúdos para satisfazer esta predisposição dos pais para ver nos filhos uma hiperatividade”, levando, em alguns casos, a um sobrediagnóstico acompanhado de um sobretratamento. E esta atitude faz com que “muitas crianças estejam a ser medicadas sem ser necessário”, denuncia o neuropediatra Luís Borges.
O neuropsicólogo Fernando Rodrigues não hesita em falar em “sobremedicação”, muito por causa dos “professores que pedem aos pais para levarem os filhos ao pedopsiquiatra e medicarem as crianças”, e recupera as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) para lembrar que “em qualquer domínio da saúde mental a primeira linha recomendada nunca é a medicação”.
O próprio Infarmed (autoridade do medicamento em Portugal) deixa claro, nos documentos informativos que tem publicado sobre este remédio, que o metilfenidato só é recomendado, a partir dos seis anos de idade, “quando as medidas terapêuticas isoladas provarem ser insuficientes”. E por medidas terapêuticas isoladas entende-se intervenção psicossocial como educação especial, psicoterapia, psicomotricidade, entre outras. Mas uma coisa é o que o Infarmed, e outras organizações internacionais recomendam, outra é a realidade.
Por um lado, há médicos que se sentem pressionados a fazê-lo, como denuncia o psiquiatra Álvaro Carvalho, coordenador nacional para a Saúde Mental. “Os pedopsiquiatras têm vindo a queixar-se de prescrever anfetaminas em situação que são até falsas hiperatividades, que chegam com diagnóstico já feito ao consultório”, conta ao Observador, explicando que isso acaba por acontecer porque “eles são poucos, têm muito que fazer e depois são chateados e pressionados por todos os lados”. Na sequência destes dados empíricos foi criado um grupo de trabalho que, no primeiro trimestre do próximo ano, apresentará conclusões, confirmando ou negando esta informação, que poderão resultar em normas de orientação terapêutica para os médicos.
Por outro, há especialistas que realmente defendem esta intervenção farmacológica. O neuropediatra Luís Borges explica que “em muitos casos, a partir dos sete ou oito anos, a intervenção psicoterapêutica vai ser inoperante e deve-se começar logo com a medicação”. Também o pediatra Gomes Pedro defende que “quando a PHDA é real, não deverá tardar o início de uma estratégia medicamentosa”. Na mesma linha, o pediatra do desenvolvimento Filipe Silva entende que se em queixas mais ligeiras e numa fase inicial se pode começar pelas medidas pedagógicas e comportamentais, “quando existem queixas muito intensas a medicação tem um papel importante”.
Que o diga Patrícia. Mal recebeu o diagnóstico de PHDA, Pedro começou a ser medicado com metilfenidato. “Ficou muito melhor ao nível da agitação motora, e com os impulsos travados, sem nunca ficar apático, nem tipo zombie“, atesta a mãe, contrariando aquela que é uma das críticas mais apontadas a este tipo de fármaco: que deixa as crianças dopadas, apáticas, sem reação, sem alegria e sem criatividade.
“A medicação é extremamente bem tolerada. Tem sucesso em 80% dos casos”, garante Luís Borges, que tem uma vasta experiência no ramo da neuropediatria. Filipe Silva acrescenta que esses efeitos só se verificam de forma relevante “quando as crianças estão mal medicadas, com doses excessivas, ou porque simplesmente aquele não é o medicamento apropriado” e, quando isso acontece, “pode ter de haver acertos de dosagem”, explica Ana Rodrigues. “Deixar de medicar, se a criança precisa, não é, de todo, a solução”, enfatiza a professora da Faculdade de Motricidade Humana, admitindo que há casos em que não é preciso medicar, mas que essa avaliação cabe ao especialista, que terá de perceber se os critérios de diagnóstico da PHDA estão a causar muitos problemas na vida da criança ou não. E lembra que uma criança com PHDA não medicada tem muito mais probabilidades de vir a desenvolver problemas de adição (drogas, álcool, entre outros) e uma maior predisposição para vir a ter depressão em adulto.
Os efeitos secundários mais comuns, e que têm de ser muito bem vigiados devido à sua gravidade, têm a ver com a perda de sono e a perda de apetite. Ainda assim, “se tomarem um bom pequeno-almoço antes da medicação, depois ao almoço podem perder o apetite mas ao lanche e ao jantar já comem, porque entretanto passou o efeito da medicação”, explica Luís Borges, sublinhando que tudo isto tem de ser monitorizado pelo médico. Para contornar a perda de sono, basta ter cuidado com a hora a que se dá o medicamento.
A ideia de que este psicofármaco vicia e cria dependência é também afastada pelos especialistas. Já em relação aos efeitos a longo prazo, nada conseguem garantir. Nem eles, nem ninguém, apesar dos inúmeros estudos que têm sido desenvolvidos. Aliás, neste preciso momento, está a ser realizado pelo menos um estudo com o propósito de responder a essa dúvida, conduzido pelo psiquiatra norte-americano Allen Frances, que trabalhou na terceira e coordenou a quarta edição do DSM (o manual da associação de psiquiatria norte-americana que elenca e traça critérios de diagnóstico dos vários transtornos mentais, incluindo a PHDA).
Allen Frances tem sido muito crítico em relação à forma como a associação de psiquiatria, que anda de mãos dadas com a indústria farmacêutica, tem introduzido, ao longo dos anos, cada vez mais transtornos naquele manual, transformando problemas do quotidiano em transtornos mentais — em França os médicos não se guiam pelo DSM e a estimativa de prevalência de crianças com PHDA é muito baixa — e tem alertado muito para os perigos da medicação.
E precisamente por não saberem que consequências a longo prazo apresenta este medicamento e por não aceitarem que o filho pudesse alterar a sua personalidade, Maria e o marido optaram por nunca acatar a recomendação dos diferentes médicos por onde passaram. O filho, que começou a revelar os primeiros sintomas aos quatro anos e a quem foi diagnosticada PHDA no primeiro ano da escola, não toma qualquer medicação. Está no 5.º ano, “tem uma péssima autoestima, enorme dificuldade em concentrar-se, uma grande impulsividade e fala pelos cotovelos”, mas Maria prefere que ele “aprenda a trabalhar e a viver com o que tem do que lhe dar medicamentos”.
“A decisão de não medicar é difícil, mas medicar também é. Nós sabemos o que vamos enfrentar. Sabe quando eles são pequenos e não gostam de chucha? Isto é um bocado a mesma coisa. Eu não tenho ‘chucha’ para o calar. Há dias extenuantes”, resume Maria, que também decidiu acabar com a consulta semanal com a psicóloga, depois de ano e meio. “Ele começou a tornar-se agressivo porque via aquilo como castigo. Revoltou-se contra mim e contra o irmão.”
A única via que lhes resta é lidar com o problema, usando outras estratégias, sem nunca esquecerem que tem de haver regras bem definidas e até apoiadas em suportes visuais como tabelas e quadros com as tarefas, as horas, e bonecos com caras felizes e tristes sempre que as crianças fazem tudo bem ou mal.
Ana Rodrigues e o neuropediatra Nuno Lobo Antunes, no livro “Mais forte do que eu!”, dão algumas dicas aos pais com filhos com PHDA. As instruções devem ser curtas, dadas de forma positiva, com conteúdos específicos. Por exemplo: se o objetivo é que o filho não esteja sempre a interromper as conversas, o que devem dizer à criança, por exemplo, é que, quando ele quer dizer alguma coisa e os outros estão a falar, deve levantar a mão e esperar para falar, ou meter a mão à frente da boca; se querem que ele não bata nos outros meninos quando se enerva, podem dizer-lhe, por exemplo, para guardar as mãos para ele mesmo quando está enervado.
E estes truques e dicas valem igualmente para quem opta pela medicação. É que os medicamentos só fazem efeito durante um período de tempo (entre quatro a 12 horas, consoante o medicamento que seja dado – Concerta, Ritalina ou Rubifen) e quando os miúdos chegam a casa, ao final do dia, estão “ao natural”. Ou seja, o problema não desapareceu, pelo que continua a ser importante ajudar as crianças a gerirem os seus comportamentos e a lidarem com as dificuldades que têm.
O Pedro “durante o dia é a Cinderela, chega à noite vira abóbora. Costumo dizer que o meu filho é como um carro de Fórmula 1 sem travões”, diz, sorrindo, Patrícia. Hoje com 12 anos, Pedro está no 7.º ano e já começou a estudar sozinho. Entretanto mudou de escola cinco vezes “para conseguir avançar”. “As escolas não estão adaptadas. Vivemos numa sociedade autista.”
A escola tem de se adaptar às crianças
Tal como Maria, muitos outros pais acabam por mudar os filhos de escola em busca do sítio que mais se adeque aos filhos, com professores que entendam o problema, e onde eles se sintam melhor, visto que com esta perturbação vem, quase sempre, o mau desempenho escolar, por conta da grave falta de atenção e da impulsividade, que prejudicam na parte das relações com os outros meninos.
Mas a verdade é que “os sintomas da PHDA podem não causar problemas se o ambiente for adequado, se a escola se adaptar”, avança o neuropediatra Luís Borges. “Agora se continuar a exigir fichas e mais fichas teremos cada vez mais crianças diagnosticadas e a revelarem dificuldades. Há uma dissonância entre as capacidades da criança e o sistema. Estamos a exigir demasiado às crianças.”
E Luís Borges não está sozinho. O neuropsicólogo clínico Fernando Rodrigues concorda que se “devia mudar a escola para que esta se adaptasse à nossa individualidade. O insucesso escolar é maior porque a criança não tem uma adaptação àquele sistema”. E até deixa uma sugestão: “Porque é que não se espaçam mais as aulas? Logo às primeiras horas as crianças tinham as aulas que requerem mais atenção, depois vinha o exercício físico, depois o almoço, outra aula e novamente exercício. O movimento ajuda estas crianças a focar”.
A terapeuta ocupacional infantil norte-americana Angela Hanscom também defende a importância do movimento, na medida em que ajuda ao desenvolvimento das funções executivas, que são aquelas que falham nestas crianças. “Para que as crianças aprendam, elas precisam de ser capazes de prestar atenção. Para prestar atenção, precisamos de deixá-las mexer-se” durante algumas horas por dia, escreveu Angela Hanscom, há um ano, num artigo no seu blogue, que acabou por ser publicado no The Washington Post. Quando se obriga estas crianças a estarem muito tempo quietas numa sala de aula o cérebro delas “adormece”, explica. A mesma terapeuta aconselha a utilização de bolas tipo pilates nas salas de aula em substitução das habituais cadeiras.
“Não tenho dúvidas que o método de ensino pode condicionar fortemente a expressão de determinado tipo de sintomas. Se tiver um método que permita uma maior liberdade de movimentos na sala de aula, vou ter menos necessidade de controlar essas crianças com fármacos”, corrobora Augusto Carreira.
Também Ana Rodrigues afirma que “não é benéfico ter 90 minutos de aulas, poucos intervalos e nenhum exercício físico”.
Uma vez que o método de ensino teima em não se adaptar, seria fundamental que todos os professores compreendessem esta perturbação e soubessem lidar com ela. “Os professores têm aqui um papel muito importante, não só no diagnóstico como na intervenção. Não é fácil encontrar estratégias, mas é possível. Muitas vezes o que acontece é que os professores até sabem do problema mas depois, na hora, quando o miúdo perturba, eles não associam isso ao problema da PHDA e a estratégia que encontram é mandar estar quieto e calado. E isso não funciona com estas crianças”, explica Ana Rodrigues.
Contudo, o facto de as turmas terem cada vez mais alunos, e de haver cada vez mais metas a cumprir e matéria a dar, faz com que os professores tenham “pouco tempo para tomar em atenção essas distinções das crianças que têm a ver não só com a sua personalidade, mas com a maturidade da criança”, lamenta o pediatra Gomes Pedro.
[Os nomes das mães e das crianças com PHDA utilizados ao longo do artigo são fictícios]
Fonte: Observador
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