Em todas as gerações há quem se queixe contra o grau imenso de ignorância dos seus tempos. Essa atitude está certa e errada, em simultâneo. Porque é verdade que a ignorância e outros fenómenos equivalentes tendem a aumentar, mas é mentira no sentido em que a ignorância e a estupidez são infinitamente renováveis e acontecem em todas as gerações, bem como as boas vontades e a solidariedade humana. Porque os “bons velhos tempos” apenas o foram porque se era mais novo e não necessariamente porque tudo fosse melhor.
Nas últimas semanas temos sido presenteados de um modo generoso com quantidades absolutamente polifémicas de preconceitos gritados vocalmente ou com muitas maiúsculas nas redes sociais em relação a duas situações: os refugiados — eufemisticamente “migrantes” — do Médio Oriente e o chamado “momento político”.
De modos diferentes, mas com alguma coincidência dos produtores desse discurso, quantas vezes com origem em sectores da sociedade que alegam professar credos de caridade humanitária, viu-se até que ponto a mesquinhez humana pode atingir píncaros de sobranceria preconceituosa. Numa manhã da semana que passou, pelas 8h30, numa rádio que até é pública, uma personalidade radialista e televisiva de notoriedade mediana na melhor das hipóteses insurgia-se em rubrica pretensamente cómica e bem pensante contra o facto de um jornal ter feito um título com referência ao facto de António ter chamado ao Governo “uma cega e um cigano”. E rematou dizendo— e passo a citar com aproximação muito razoável na ausência de podcast —que parecia um título feito “por um taxista”. Aparentemente, só ao verbalizar o que escrevera é que percebeu que era igual ao que criticava e tentou remediar tardiamente a situação, o que demonstrou até que ponto não era um exercício de humor seco muito britânico.
E é aqui que entra o papel da Educação, familiar, claro, mas também escolar. Porque, quando tudo o mais falha, a Escola com Maiúscula deve tornar-se um espaço não de doutrinação confessional ou política, mas certamente de apresentação de alternativas para o comportamento cívico dos futuros cidadãos. Confesso que me apetecia escrever isto de forma mais curta e directa, mas estou a tentar exercitar alguma contenção na adjectivação. E não me venham com a bizantinice de distinguir “ensino” de “educação” nestes casos.
A Escola, enquanto serviço público universal e onde se podem e devem cruzar todas as tonalidades e pensamentos, deve ensinar a conviver em sociedade e a basear as convicções em argumentos válidos e em demonstrações que ultrapassem a ansiedade de um candidato a assessor ministerial (estão a ver um preconceito orgulhoso em prática?) ou a fúria de uma criatura que ontem desancava os sem-abrigo como inúteis e os beneficiários dos rendimentos sociais como parasitas que só dão “despesa”, como hoje desanca os “refugiados estrangeiros” que podem vir para Portugal (atenção, nem sabem se já algum efectivamente chegou) beneficiar daquilo que dizem ser negado àqueles portugueses que antes consideravam não ter rendimentos por não quererem trabalhar.
Ao contrário do que se diz, não é um fenómeno nascido nas redes sociais, em blogues ou em caixas de comentários de jornais, é um atavismo que se vai mantendo e que, pela forma intensa e ácida como se manifesta nestes períodos, revela o ponto em que a nossa Educação mais terá falhado, ou seja, a capacidade para ajudar a população a ultrapassar os seus instintos mais básicos de preconceito social e xenofobia. Um ser humano a fugir da guerra é apresentado como alguém que vem “roubar” os nossos recursos e a sua bondade é definida com base na sua posição em relação a uma fronteira.
E, mesmo sabendo que entre os professores há gente de todo o tipo, sendo um caldeirão de tudo o que a sociedade tem de bom e mau, fico com aquele travo de desgosto quando vejo quem tem o ofício de ensinar, educar, instruir, o que quer que seja, mas que sabemos bem o que deve ser, a destilar ódios e etno ou sociofobias variadas, equivalentes no seu radicalismo ao multiculturalismo destemperado e relativista de uma outra trincheira. Que não é oposta, mas apenas a continuação da soberba preconceituosa a que a Educação não conseguiu transmitir um mínimo de humanidade – cuja carência se nota mais em tempos magros, de necessidade de partilha e de solidariedade.
Mesmo sendo uma minoria que assim age, não deixa de ser algo frustrante. Porque sou dos que acham que o professorado deve ser e funcionar como uma espécie de reserva moral cívica e um exemplo para os seus alunos. Mesmo com todas as suas imperfeições.
Por Paulo Guinote
Professor do 2.º ciclo do ensino básico
Fonte: Público
Sem comentários:
Enviar um comentário